Escolas e universidades se tornam trincheiras de polarização e vigilância

“Orientação sexual” e “identidade de gênero” eram tópicos em uma apostila para alunos do 6º ano no Colégio Santo Agostinho, escola privada tradicional de Belo Horizonte. As diferenças entre homens e mulheres são culturais, discorre o texto, e o desejo é uma “escolha pessoal”, que “permite viver a sexualidade de forma prazerosa e saudável”. “Não existem comportamentos “normais”, e, por essa razão, a homossexualidade e a bissexualidade não são doenças e desvios.”

A filha de Elder Diniz recebeu o livro no início de 2017, para o descontentamento de seu pai. “Vincular orientação sexual a formas de prazer não é apropriado para a faixa etária de 11 anos”, afirmou o administrador de empresas, de 52 anos. “O mais apropriado seria salientar família e relacionamentos, com uma consideração de respeito.” Os pais do colégio se uniram, coletaram 120 assinaturas e se queixaram à direção. Os diretores responderam com a insinuação de que havia certo “pânico social” em reação à apostila e que ensinar igualdade de gênero e tolerância era essencial.

A tréplica veio por meio de uma notificação extrajudicial, com ameaças de responsabilização da escola e dos professores por danos morais. O colégio finalmente recuou e disse que o conteúdo não seria ensinado em sala de aula. “Foi aí que começamos a notar textos com muitas referências a questões homoafetivas, fazendo apologia à Revolução Russa, ao marxismo, com viés político à esquerda”, disse Diniz. O grupo de pais passou a supervisionar e denunciar essas inclinações esquerdistas via WhatsApp. Mais que isso, a vigilância se expandiu para outras cinco escolas de Belo Horizonte: Loyola, Santa Maria, Magnum, Fundação Torino e Santa Doroteia.

Criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib para combater a “doutrinação nas escolas”, o movimento Escola sem Partido ganhou nos últimos anos articulações espontâneas. Nas grandes capitais, grupos de pais como os de Belo Horizonte se tornaram corriqueiros. Com a onda conservadora que tomou o país nas eleições deste ano, os ativistas conseguiram furar a bolha das escolas particulares e ampliar a influência no dia a dia do ensino público. ÉPOCA contabilizou 46 casos que envolvem professores e livros didáticos nos últimos 12 meses, a maioria de pais conservadores contra docentes a partir do nível fundamental.

Foram 12 casos em instituições privadas, 29 em instituições públicas e outros envolvendo mais de uma escola ou universidade. Em 71% das ocorrências, houve articulação pelas redes sociais, com maciça divulgação de vídeos e fotos. Doze situações foram levadas às autoridades. Cinco professores relataram ter sofrido ameaças de morte. Destes, quatro dão aulas em universidades. A professora Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB), teve de apelar à proteção judicial durante o período eleitoral.

Uma professora do ensino fundamental foi demitida de uma escola particular, em São Paulo, por dizer durante a aula que não votaria em Bolsonaro. No Ceará, um docente do ensino médio humilhou alunos que defendiam o então candidato do PSL. “Quem está mentindo para você é o policial imbecil ou o pastorzinho vagabundo de sua igreja”, disse. No Vale do Paraíba, o Ministério Público Federal investiga um grupo de pais que fiscaliza docentes “esquerdistas” via WhatsApp. Nem todos os profissionais do ensino, é claro, são de esquerda. Um professor de matemática promoveu um churrasco em plena sala de aula, no Distrito Federal, para comemorar a vitória de Bolsonaro.

“Cinco professores relataram ter sofrido ameaças de morte”

Detalhes dos 46 casos que envolvem professores e livros didáticos nos últimos 12 meses

O professor de filosofia Vinicius Silva de Souza, que leciona em uma escola pública de ensino médio no Paranoá, na periferia de Brasília, relatou que, após a eleição, um pequeno grupo de alunos ameaçou gravar a aula se ele enveredasse por argumentações consideradas esquerdistas. Ele disse que expõe sua posição sobre assuntos políticos, mas não impõe uma opinião. “Doze alunas minhas, menores de idade, estão grávidas. Como eu não vou falar de sexualidade? Como não vou dizer para a aluna usar um preservativo?”, questionou. Doutrinação não seria possível “nem se quisesse”. Já é uma missão difícil demais, disse ele, fazer com que os alunos leiam o livro didático.

O estopim para o clima de “Estamos te vigiando” nas salas de aula, segundo professores ouvidos por ÉPOCA, foi o momento em que uma deputada estadual eleita por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSC), divulgou, logo após Bolsonaro ser eleito, um canal para denúncias de manifestações “político-partidárias ou ideológicas” de professores, incentivando alunos a gravar as aulas. A Justiça determinou a retirada da postagem da deputada das redes sociais, temendo ameaças à liberdade de expressão, mas a ideia já tinha feito sucesso em grupos de direita. O próprio Bolsonaro disse que é favorável a gravar professores.

Alguns dias depois da vitória do capitão, em um município pequeno no interior do Rio Grande do Sul, a direção de uma escola pública pediu que uma supervisora acompanhasse uma aula de história sobre ditadura militar, como garantia de que não haveria “partidarização” por parte do professor. Uma aluna se recusou a fazer um trabalho da disciplina sobre o tema. Alegou não se sentir confortável, já que seu pai defende que o regime militar não teve um impacto negativo na sociedade.

“Não fiz crítica a nenhum candidato, não debati eleições em sala de aula. Meu ofício, como historiador, é defender a verdade histórica de que, sim, houve uma ditadura”, disse o professor, que não quis se identificar. “O Projeto Escola sem Partido já está sendo implementado moralmente por direções que corroboram com essa visão de mundo (de direita). A sensação que tenho é que a ideia é constranger o professor para ele se autocensurar.”

Para os defensores do programa, o que está acontecendo é a reação tardia à censura que, até hoje, os direitistas dizem sofrer nos ambientes de ensino. “A eleição de Bolsonaro dá voz para a maioria sufocada”, disse o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS). “Os minoritários diziam “Eu sou gay, sou preto, sou índio e os outros me fizeram mal, me excluíram da sociedade”. A maioria ficou quieta porque a economia ia bem.”

O servidor público Daniel Barbosa, de 39 anos, afirmou ter sido perseguido por ter manifestado uma opinião dissidente no ambiente acadêmico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele mantém uma página no Facebook — “Quem a homotransfobia não matou hoje?” — que critica a metodologia empregada por pesquisas que contabilizam mortes de pessoas LGBT. Em fevereiro deste ano, na divulgação de uma pesquisa sobre lesbocídio, ele questionou o método das autoras, que, segundo ele, consideraram até acidentes de trânsito como mortes de mulheres “por serem lésbicas”. A discussão ficou acalorada, e a polícia retirou Barbosa do recinto.

Ele se disse incomodado com o viés com que são apresentadas informações sobre sexualidade e raça na mídia e na universidade. Após o evento, ocasião em que ele relatou ter sido agredido física e verbalmente, Barbosa foi processado pelas pesquisadoras e condenado, em primeira instância, a pagar uma indenização de 20 salários mínimos. Elas pediram também que o réu fosse proibido de citar seu nome e o conteúdo da pesquisa, o que foi negado pela Justiça. Ele está recorrendo da decisão.

O predomínio da esquerda nas ciências humanas pode ser exagerado por seus opositores, mas tem base na realidade. Uma pesquisa publicada em 2015 no Rio Grande do Sul apontou que, no Brasil, 84,5% dos professores de história se declaravam de esquerda ou de centro-esquerda. Para os insatisfeitos, a eleição de Bolsonaro é a oportunidade para mudar este cenário. O presidente eleito disse, em mais de uma ocasião, que tiraria os simpatizantes de Paulo Freire — pedagogo pernambucano, famoso por seu método de alfabetização com conscientização política — com um “lança-chamas” do Ministério da Educação.

Não são poucos, porém, os obstáculos institucionais que esse movimento tem pela frente, mesmo contando com o apoio do futuro chefe de governo. O primeiro sinal vermelho foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir, às vésperas da eleição, uma operação da Justiça Eleitoral que censurou manifestações políticas em mais de 23 universidades pelo país. A decisão da ministra Cármen Lúcia considerou que remover cartazes e proibir comícios fere “também a autonomia das universidades e a liberdade dos docentes e dos discentes”, mesmo levando em conta que a liberdade de expressão em período eleitoral deva seguir regras para garantir a igualdade entre os candidatos.

Uma das ações condenadas pelo STF foi a proibição do comício “Contra o Fascismo. Pela democracia”, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que contaria com Guilherme Boulos (PSOL), Tarso Genro (PT) e Maria do Rosário (PT). A Justiça acatou um pedido do deputado Jerônimo Goergen e do deputado federal eleito Marcel van Hattem (Novo) para vetar o evento. Segundo Goergen, o ato só poderia ocorrer se a direção abrisse espaço para simpatizantes do outro candidato, Bolsonaro.

Na mesma linha de argumentação, o deputado do PP está elaborando um Projeto de Lei para que os eventos políticos em ambientes universitários estejam sempre equilibrados politicamente. “Vai debater impeachment e chamar a Dilma? Tem de chamar o Eduardo Cunha. Quer dizer, o Eduardo Cunha não dá para chamar, mas de repente o Michel Temer.” Dada a decisão recente do STF sobre ações nas universidades, ele está ajustando o Projeto para não correr o risco de propor inconstitucionalidades.

Professores contrários ao Escola sem Partido criaram um estudo colaborativo que mapeou Projetos de Lei em 102 municípios e 15 estados. Segundo esse levantamento, 24 leis municipais já foram aprovadas e 18 foram rejeitadas até hoje. Os textos das leis são padronizados. “O Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”, determina um artigo. As leis também preveem a afixação de um cartaz nas salas para lembrar o professor que ele não deve se aproveitar “da audiência cativa dos alunos para promover os próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”.

 

Fonte: Revista Época