Em resposta ao avanço de ataques contra educadores por partidários do movimento Escola sem Partido, religiosos e conservadores, um grupo de entidades ligadas à educação e aos direitos humanos criou um manual de defesa contra perseguições de docentes e contra a censura nas escolas.
O material traz estratégias pedagógicas e jurídicas para atuação em diferentes casos de ataques, bem como desenha as premissas legais e pedagógicas que resguardam o trabalho dos professores. O conteúdo pode ser acessado pelo endereço www.manualdedefesadasescolas.org.
Assinam o manual cerca de 60 entidades, incluindo Ação Educativa, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação. O Fundo Malala e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal apoiam a iniciativa.
O grupo também preparou um apelo ao STF (Supremo Tribunal Federal) para que haja o julgamento sobre uma lei estadual de Alagoas inspirada no movimento Escola sem Partido e batizada por lá de Escola Livre. O julgamento estava previsto para quarta-feira (28), mas o presidente da corte, ministro Dias Toffoli, incluiu outro processo na frente, o que pode adiar indefinidamente a análise.
Há expectativa com relação ao julgamento do Supremo uma vez que essa lei de Alagoas foi suspensa, por decisão liminar do ministro Luís Roberto Barroso, ao ser considerada inconstitucional. Esse entendimento também é respaldado por parecer do Ministério Público Federal.
A definição do STF poderia influenciar o projeto inspirado no Escola sem Partido em trâmite no Congresso. Ele tenta limitar o que o professor pode falar dentro da sala de aula e ainda vetar abordagens sobre gênero nas escolas.
O apelo, direcionado a Toffoli, é para que o tribunal se posicione sobre leis que “ferem os princípios constitucionais” e “dê limite à escalada de ataques e perseguições a educadoras e educadores e de atos de censura contra escolas em diversos municípios e estados brasileiros”.
Segundo levantamento do Movimento Educação Democrática, já houve ao menos 181 projetos de lei em Câmaras Municipais e Assembleias em todo o país com teor semelhante. Mas o objetivo do manual criado pelo grupo de entidades é apoiar professores que, mesmo sem legislações em vigor, já têm sido atacados ou constrangidos.
Em vídeo divulgado no último sábado (24), o deputado federal eleito pelo Rio Daniel Silveira (PSL) ameaça investigar um colégio em Petrópolis (região serrana do Rio) e também a diretora.
Em outubro, um docente de história em Natal foi ameaçado de morte depois que o pai de um aluno entendeu como ataque político uma explicação dele sobre a Lei Rouanet. Uma escola tradicional do Rio proibiu, no início daquele mês, um livro que foi considerado comunista por pais (a obra “Meninos sem pátria” retrata a vida de família exilada na ditadura).
Em 2016, a escola municipal Desembargador Amorim Lima, no Butantã, na zona oeste de SP, recebeu em 2016 uma notificação judicial de um vereador para que fosse cancelado um evento que discutiria questões de gênero.
“O pior de tudo é o discurso de ódio contra os professores, que estão sendo ameaçados de todas as maneiras em todo o Brasil”, diz a professora Fernanda Moura, que atua na rede pública do Rio e faz parte do Movimento Educação Democrática e do grupo Professores Contra o Escola sem Partido.
O “Manual de Defesa Contra Censura nas Escolas” é estruturado em 11 casos simbólicos, inspirados em episódios reais que vão desde a aprovação de leis até a interferência de membros externos, como Justiça ou polícia. Para esses casos, há a descrição dos desdobramentos, bem como o que professores podem fazer.
Escrito coletivamente, o manual é contra a censura da escola, seja por ações de partidários do Escola sem Partido (que criticam professores sobre uma suposta doutrinação de esquerda) como por aquelas praticadas por conservadores e religiosos, que tentam vetar abordagens sobre gênero ou sexualidade.“O Manual de Defesa foi pensado para combater atos de perseguição que exploram uma eventual fragilidade individual dos profissionais da educação, criando um clima de medo e autocensura nas escolas”, cita parte do texto.
Além de um arcabouço legal sobre a censura na educação e sobre a pertinência legal e pedagógica da presença de temas como gênero e combate à desigualdades nas escolas, norteiam o material a valorização da gestão democrática escolar, a reafirmação da escola como ambiente de resolução de conflitos e a reafirmação da relação de trabalho dos professores, seja com a escola ou com o estado.
O entendimento de educadores, reafirmado no manual, é de que a intenção de “grupos ultraconservadores é impedir que diferentes interpretações e compreensões do mundo sejam debatidas nas instituições de ensino, estimulando uma educação para a obediência e para a naturalização das desigualdades sociais, do racismo, do sexismo, da LGBTfobia e de outras discriminações”.
Heleno Araújo, presidente da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), diz que os movimentos atuais de pressão contra professores têm fragilizado os profissionais e deteriorado as relações nas escolas. “Essa forma de atuação amedronta os trabalhadores e interfere na relação entre professores e alunos”, diz.
O professor Fernando Cássio, da UFABC, diz que o fato de o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) canalizar apoio ao projeto Escola sem Partido agrava a situação. “Os professores já estão muito vilipendiados, por baixos salários, condições ruins de trabalho, e ainda têm de ser humilhados e chamados de doutrinadores”, diz.
Para Denise Carreira, da Ação Educativa, os movimentos articulados ao Escola sem Partido negam a efetivação do direito à educação e prejudicam o acesso a um ensino de qualidade aos estudantes de escolas públicas e privadas.
“Além das questões legais, há consenso na área educacional de que esse discurso compromete totalmente a qualidade da educação, porque estimula a obediência e a mediocridade.”
Assim com Bolsonaro, o ministro da Educação escolhido pelo presidente eleito, Ricardo Vélez Rodríguez, é defensor do Escola sem Partido. Criado em 2004, o movimento ganhou força depois de que os filhos de Bolsonaro ingressaram de forma pioneira, em 2014, com projetos em forma de lei no Legislativo no Rio.
A agenda se consolidou ainda mais quando o ataque a abordagens de gênero na escola entram nos textos de projetos de lei, a partir de 2015.
Segundo estudiosos, a abordagem educacional sobre questões de gênero pode colaborar com o combate a problemas como gravidez na adolescência, violência contra mulher e homofobia. A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
Fonte: Folha de São Paulo