Saiba o que Bolsonaro pode mudar na educação com apenas uma ‘canetada’

“Noventa por cento do que eu quero fazer passa pelo Parlamento, 10% apenas por uma caneta presidencial”, afirmou Jair Bolsonaro em sua primeira entrevista na televisão após ser eleito. Apesar da declaração, o poder do próximo presidente de fazer mudanças por conta própria não é tão limitado assim. Na área da Educação, alterações significativas podem ser determinadas na base da canetada: do controle sobre o conteúdo dos livros didáticos a mudanças nos critérios de destinação de recurso para as universidades federais. É o que aponta levantamento feito pelo GLOBO a partir da análise da legislação e de consultas a ex-ministros, gestores atuais e especialistas na área.

Nada impede que medidas que contrariem princípios previstos na Constituição ou na Lei de Diretrizes e Bases da educação (LDB), entre outras legislações, sejam questionadas na Justiça. Mas há muito espaço para alterações.

— De forma geral, o MEC tem possibilidade de fazer quase tudo — resume Eduardo Deschamps, ex-presidente e membro do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Há medidas, já defendidas por Bolsonaro ou seus auxiliares, que precisariam passar pelo Congresso, como uma eventual extinção do sistema de cotas nas universidades federais, adotada em lei por um prazo determinadod+ a cobrança de mensalidades no ensino superior público, contrariando dispositivo constitucionald+ ou implantar ensino fundamental a distância.

1. Orientar o conteúdo dos livros didáticos e do Enem

O Programa Nacional do Livro Didático, de compra dos materiais usados nas escolas de educação básica, é regulado por resoluções, decretos e portarias. O MEC lança um edital com as diretrizes que considera importantes nas obras e também faz a seleção dos avaliadores, que examinarão os livros para indicar quais serão ofertados às escolas. Esse modelo foi implementado em 2016. Antes, as universidades tinham papel preponderante na avaliação pedagógica dos livros, mas o governo Temer modificou as regras por considerar que havia um viés ideológico. Alterações, portanto, são possíveis. No programa de governo, Bolsonaro defende “revisar e modernizar o conteúdo” e “expurgar a ideologia de Paulo Freire”. Ele se notabilizou com críticas a materiais planejados pelo MEC de combate à homofobia. Sobre o Enem, o presidente eleito afirmou que irá “tomar conhecimento da prova antes”, para que não seja focada em “questões menores”. Aplicado pelo Inep, uma autarquia vinculada ao MEC que tem área técnica para elaboração das questões, o exame pode ser modificado por decisão da Presidência.

2. Mudar critérios de destinação de recursos para as federais

Por um acordo antigo e informal das universidades federais com o MEC, hoje o custo por aluno das instituições é definido por meio de uma matriz, que traz parâmetros para determinar quanto será repassado por cada estudante, levando em conta curso, turno, entre outras variáveis. A metodologia rompe a lógica simplista de determinar um valor estático por universitário. Se o novo governo quiser, pode desconsiderar a matriz construída pela Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). “Seria um retrocesso acabar com o mecanismo para transformar o ministério num balcão de negócios, com cada reitor batendo à porta para obter orçamento”, aponta Reinaldo Centoducatte, presidente da Andifes. Bolsonaro mencionou em entrevistas e no plano de governo seu descontentamento com a divisão de recursos entre ensino básico e superior. “Precisamos inverter a pirâmide: o maior esforço tem que ocorrer cedo, com a educação infantil, fundamental e média”. A equipe do novo governo quer deslocar as universidades federais do MEC para o Ministério da Ciência e Tecnologia. O futuro ocupante da pasta, Marcos Pontes, já defendeu que as instituições contem com fontes privadas de financiamentos, além do orçamento público.

3. Influenciar nas diretrizes em elaboração para os temas: ensino religioso, orientação sexual e identidade de gênero

Os três assuntos estão sendo tratados atualmente em comissões do Conselho Nacional de Educação (CNE). As diretrizes sobre como abordar os temas no ensino fundamental só deverão ser submetidas ao ministro da Educação do próximo governo, que precisa homologar as decisões do conselho. As diretrizes do ensino religioso passaram a ser reformuladas após recente decisão do STF, que considerou constitucional a oferta da disciplina de caráter confessional. Já os temas da orientação sexual e da identidade de gênero precisam ser desenvolvidos por resolução do CNE, que aprovou a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino fundamental. Os dois temas foram retirados do documento após pressão da bancada religiosa, numa negociação do MEC com o CNE. A condição imposta pelo conselho era a de que as diretrizes seriam, então, elaboradas separadamente. Os assuntos são considerados polêmicos por Bolsonaro, que foi contrário a materiais vinculados ao MEC de combate à homofobia. “Mais matemática, ciências e português, sem doutrinação e sexualização precoce”, defendeu o presidente eleito no plano de governo.

4. Romper com a tradição de escolher o reitor indicado pela comunidade acadêmica

A tradição de se escolher como reitor o primeiro colocado de uma lista tríplice, enviada por cada instituição de ensino superior, pode ser quebrada pelo presidente da República. A legislação determina que ele escolha um nome entre os indicados, mas não necessariamente o da preferência da comunidade acadêmica. O acordo informal de escolher o primeiro vem sendo de forma geral mantido ao menos desde a gestão de Fernando Henrique Cardoso. Mas nada impede que seja abandonado, sobretudo se o governo considerar que é necessário ter um controle maior das universidades, espaços habituais de contestação política. Auxiliares de Bolsonaro falaram em reservado que escolher o primeiro da lista não será necessariamente um compromisso do presidente, mas não há planos claros nesse sentido.

5. Alterar regras para aprovação e fechamento de cursos superiores

Um alvo importante do lobby na Esplanada, o setor de regulação do ensino superior é construído por vários atos normativos internos, ou seja, passíveis de mudanças. Retirar documentações necessárias para abertura de curso ou modificar regras para o fechamento deles são medidas de grande impacto na qualidade das faculdades privadas — e também entre grupos empresariais de educação, do ponto de vista financeiro. Em abril deste ano, por exemplo, o governo Michel Temer assinou portarias decretando “moratória” para novos cursos de Medicina por cinco anos. Se o novo governo quiser voltar a autorizar a abertura dessas graduações, basta revogar as normas. Bolsonaro e sua equipe nunca se manifestaram publicamente sobre o assunto, nem por meio do programa de governo.

6. Retirar a prerrogativa das universidades federais fazerem seus concursos

Na medida em que os profissionais se aposentam, cada universidade pode publicar editais de concurso para fazer sua própria seleção, respeitando uma metodologia que indica número de vagas a serem abertas e perfil (quanto à carga horária, titulação etc). Essa prerrogativa pode ser suprimida por portarias do MEC e do Ministério do Planejamento. Não há manifestações do grupo de Bolsonaro a respeito dessa questão, que preocupa as instituições, sobretudo com o cenário de crise financeira e a perspectiva de um congelamento nas contratações.

7. Mudar o perfil do Conselho Nacional de Educação (CNE)

Treze cadeiras do CNE — de um total de 24 — vão ficar vagas até 2020. Quem nomeia os conselheiros é o presidente da República, que pode escolher entre uma lista de indicados por entidades ligadas à educação ou decidir por um terceiro. A nomeação é totalmente livre. Em 2022, mais oito vagas ficarão livres, e o governo indicará seus ocupantes. Os mandatos dos conselheiros são de quatro anos, podendo ser renovados, e não coincidem entre si, de forma que há troca de aproximadamente metade da composição a cada dois anos. O CNE atua em políticas cruciais, como a elaboração da Base Curricular do ensino médio atualmente. Embora as decisões do conselho necessitem da homologação do ministro para terem validade, é importante que o que venha de lá chegue à mesa ministerial ao gosto do governo. Uma eventual mudança na lei para ofertar ensino fundamental a distância, por exemplo, terá que ser regulamentada pelo CNE. O futuro governo não tratou do conselho no programa de governo ou em manifestações públicas.

 

Fonte: O Globo