Palestina e Jerusalém – o que ler para compreender?

Tenho me acostumado a ler e ouvir pessoas citarem trechos selecionados da Bíblia para fundamentar suas opiniões, como se a verdade e a solução dos problemas do mundo estivessem neste famoso livro. Ele foi supostamente escrito por inspiração divina, mas na realidade foi compilado por séculos e adaptado por opiniões principalmente de judeus.

Um americano que tentou viver por um ano seguindo estritamente o que estava escrito na Bíblia, excetuando certamente o trecho que mandava matar os homens sem barbas e similares, fez coisas muito estranhas e sofreu muito.

É bastante exótico se basear no que dizem trechos da Bíblia sobre quem tem direito à terra da Palestina, escritos e compilados com óbvio viés para quem os escreveu. Teriam os descendentes de uma tribo indígena que viveu numa área de Mato Grosso há dois mil anos e dali saiu por sua vontade ou por pressão externa (guerra, escravidão, migração etc.) direito de voltar para esta área, tanto tempo depois, fazendo de conta que é “uma terra sem povo para um povo sem terra”? O fato de ter sido maltratada em outros locais lhe daria o direito de maltratar os habitantes da área à qual ele julgava ter direito de voltar? Lembro-me que Isaac Deutscher falou num homem que pulou de um prédio em chamas, caindo sobre outro que passava na rua, e ficaram para sempre discutindo quem tinha culpa pelo acidente.

Voltando à Palestina, fica difícil avaliar quem tem o direito a ter Jerusalém como capital a partir do que está na Bíblia. Seria recomendável ler com cuidado o livro “Jerusalém: a Biografia”, de Simon Sebag Montefiore, um judeu inglês muito culto que, correndo o risco de ser tachado de antissemita, contou detalhada e imparcialmente a conturbada história desta cidade. Fica difícil, a partir deste conhecimento, dizer quem merece ser o dono dela e tê-la como capital.

Considerando a justificável volta dos judeus para a Palestina, é preciso considerar que ela foi feita de forma agressiva, com os primeiros imigrantes adquirindo terras dos proprietários ausentes, enxotando os trabalhadores e moradores para estabelecer somente os de seu povo e empregando e negociando somente com judeus, como pode ser lido em vários livros, especialmente de Robert Fisk e David Hirst. Os territórios ocupados pelos judeus, com apoio externo que envolveu barganhas com políticos ingleses (recomendo estudar como foi obtida a declaração Balfour) e de outros países, foram crescendo sucessivamente, agindo como rolos compressores sobre os não-judeus. A cada guerra, provocada por Israel ou por seus vizinhos árabes, Israel foi bem sucedido por sua maior eficiência e pelo apoio principalmente dos americanos. São exceções as guerras de 1956, em que os israelenses atacaram o Egito para derrubar Nasser, a serviço dos ingleses e franceses, e foram forçados a recuar por pressão de Eisenhower, e de 1973, em que os israelenses quase se deram mal.

Após a expulsão e a fuga de milhares de palestinos em 1947, que os israelenses atribuem a exortações jamais provadas feitas pelo rádio, ou por medo dos massacres feitos em algumas aldeias pelos israelenses, eles foram proibidos de voltar, e muitos guardaram até morrer as chaves de suas casas, alegremente ocupadas pelos vencedores. A alegação de que os países árabes não admitem o retorno de judeus não justifica a negativa ao retorno dos palestinos. Uma selvageria não justifica outra.

Na década de 1930, os ingleses, que controlavam a região, tentaram evitar a imigração de judeus, para evitar a intensificação do conflito, e agiram com violência muito maior contra a revolta dos árabes. Acabaram desistindo de dominar a região principalmente devido ao terrorismo judeu, que matou a tiros ou enforcamento dezenas de soldados ingleses, explodiu o Hotel King David (sede do mandato britânico) em 1946, com mais de 90 vítimas, e matou o representante da ONU na região, o conde Bernardotte.

Mesmo tendo sido os emigrantes judeus recebidos pelos locais, principalmente pela sua grande quantidade, com hostilidade, que se tornou mútua e insuportável para todos com o tempo, não se vai chegar nunca a resolver algo na base de “foi você quem começou a briga”. É preciso encontrar uma solução para a região, e só se pode vislumbrar quatro: 1) um estado com judeus e árabes convivendo com direitos iguaisd+ 2) dois estados, devolvendo os israelenses a terra que tomaram, especialmente na Cisjordâniad+ 3) a continuidade da situação atual, com palestinos amontoados em favelas imundas e dando apoio a Hamas e outros radicais (é um pouco pior que apoiar Bolsonaro, mas eles têm sofrido muito mais que os brasileiros!) ou, estando em Israel, não tendo acesso a financiamento de terra, inclusive nas colôniasd+ 4) um estado só para todos, mas com direitos diferentes, no que Jimmy Carter chamou de apartheid, num livro, cuja leitura recomendo, que o levou a ser acusado de antissemitismo, um insulto comum para quem faz qualquer crítica a Israel.

A primeira solução é difícil, pois a hostilidade mútua é enorme e os judeus já são e continuariam a ser donos das terras e dos meios de produção. A segunda é inviável, porque seria preciso que os milhares de colonos armados e agressivos devolvessem as terras (e as casas invadidas)d+ é bom lembrar o caos da devolução de Gaza, promovida por Ariel Sharon e utilizando o exército. A terceira é a continuidade deste inferno. A quarta também não promoveria a paz, a não ser a dos cemitérios, num estado policial semelhante à África do Sul do apartheidd+ um colega da UFSC que visitou a região ficou chocado ao ver casas de israelenses com piscinas de um lado da cerca e mulheres com latas de água na cabeça do outro lado.

Assim, seria ótimo ter outra proposta, desinteressada e viável, para a região, após muita leitura e cuidadosa avaliação.


Carlos Brisola Marcondes

Professor do Departamento de  Microbiologia,  Imunologia e  Parasitologia (MIP)