Quando o Gênero produz intolerância

Esta semana, um juiz federal proibiu a Universidade Federal de Lavras (UFLA) de expulsar alunos que eventualmente não queiram participar das oficinas com temas sobre a identidade de gênero e movimentos LGBT [1]. Ao que parece, naquela universidade a participação nestas oficinas é obrigatória aos calouros.

 

Um olhar atento suscita questionamentos que têm sido frequentemente negligenciados. Com efeito, alguns “estudiosos” do gênero se ressentem do termo “ideologia” com que os opositores se referem  aos  estudos do gênero. O argumento dos estudiosos do gênero é que não se está de modo algum negando as diferenças biológicas existentes entre homem e mulher, mas sim que cabe discutir o papel do homem e da mulher na sociedade. Assim, dizem que não passam de estereótipos a idéia de que a mulher é naturalmente mais frágil e o homem é mais viril, ou que menino brinca com certos brinquedos (soldadinho, armas, etc.), e meninas com outros brinquedos (boneca, casinha etc.),  indicando que tudo isso são convenções que se consolidaram dentro de um certo contexto social, mas que podem e devem ser reconstruídos de outra forma, já que não são condicionados por fatores imutáveis inerentes a biologia. Mas, será mesmo?

Por exemplo, se afirmar que “a mulher é um ser mais frágil” é um estereótipo, qual a base experimental que confirma isso? Acredito, baseado no enaltecimento que se dá a homens guerreiros nos mais diversos contextos e relatos históricos, que o homem se mostra mais propenso  a guerrear  e a defender seu grupo do que as mulheres. Assim, olhando a “fragilidade” em relação  a situações de conflito que são violentos, isso não apontaria para um fato experimentalmente verificado que distingue homem e mulher? Obviamente, da mesma forma com que certos homens são treinados para a guerra, pode-se treinar mulheres para lidar com a mesma situação extrema, e sua participação regular em exércitos demonstra isso, mas, o fato da grande maioria dos membros de um exército ser composto de homens parece indicar que isso se deve mais a uma disposição natural dos homens do que a uma convenção social longínqua que foi se consolidando com o tempo e que excluiu  artificialmente as mulheres.

Outro exemplo. Qual a base para se afirmar que o fato de que “meninos brincam com certos brinquedos (soldadinhos, armas etc.)  e meninas brincam com outros brinquedos (casinhas, bonecas, etc.)”  é conseqüência de uma construção social que determinou esta diferenciação? Não poderíamos assumir a possibilidade que meninos brincam preferencialmente com certos brinquedos (soldadinhos, armas, etc), enquanto meninas brincam preferencialmente com outros brinquedos (bonecas, casinhas etc.) como consequência de disposições interiores que são determinadas pela natureza biológica de um e outro? A única forma de se comprovar uma ou outra tese seria fazendo um experimento onde vários meninos e meninas são deixados livres para escolher o brinquedo com que desejam brincar, sem a interferência ou estímulo de nenhum agente externo.

Mas, afinal, o papel de cada gênero significa o que? Quem define isso? Pode-se tentar ver de forma neutra a questão colocando que um homem pode usar roupa de mulher, assim como uma mulher pode usar roupa de homem, mas, também é uma possibilidade que o padrão atual de se vestir seja expressão de um desejo inato que  homens e mulheres tem de enfatizar características distintas. Assim, mais uma vez, podemos pensar que as diferenças que vemos em larga escala na forma de se vestir do homem e da mulher são fruto de um desdobramento natural fundamentado em disposições interiores determinadas por aspectos particulares ao ser-homem e ao ser-mulher, ou seja, é algo devido as características biológicas de um e outro, e que leva homens e mulheres a se distinguirem na sua vestimenta, algo tão imediato que nenhum deles sequer se sente inclinado a questionar ou a seguir outro padrão.

Sem evidências experimentais que indiquem o contrário, tudo que se possa falar sobre o papel social de homem e mulher ser uma construção social (?) torna-se algo hipotético, sem nenhuma perspectiva de comprovação experimental. Assim, aqueles que usam o termo “ideologia” de gênero intrinsecamente assumem que as idéias que compõem o conceito de gênero são meramente expressões da crença, expectativas e ações de certos grupos, que, no entanto, não tem validade científica alguma.

No que diz respeito ao indivíduo, não há razão  alguma para que uma pessoa seja discriminada por andar vestido de mulher, mesmo sendo homem ou vice-versa, o mesmo se aplica a outras questões como a homossexualidade etc.. Agora, o problema surge quando se tenta colocar de forma compulsória a questão do gênero nas escolas ou universidades como foi o caso da UFLA, pois um cristão irá discordar da normalização de coisas como um homem se vestir de mulher e vice-versa, isso porque as Escrituras contêm passagens onde isso é condenado [2]. É preciso atentar para o fato óbvio que essas e outras convicções cristãs se limitam ao domínio do indivíduo, e que a convivência num mundo que afirma os mais diversos “valores” demanda que o cristão não imponha sobre outros os seus valores da mesma forma que  não deve aceitar que lhe seja imposto valores anticristãos. 

 

Ou seja, um cristão autêntico não deveria se importar se um homem se veste de mulher ou vice-versa, mas, certamente se importaria se fosse obrigado a frequentar um curso onde lhe apresentam  idéias que confrontam suas convicções. A intolerância gerada pelo conceito do gênero se configura exatamente aí, pois não se pretende mais expor e defender um entendimento particular de mundo segundo os preceitos associados ao conceito do gênero, mas de submeter  todos a esse entendimento. Assim, um cristão que afirma para si o princípio exposto em Deuteronômio 22:5 ou Romanos 1:26-27, entre tantas outras passagens, acaba sendo discriminado e tido como preconceituoso, podendo ser injustamente criminalizado por expor sua visão publicamente, mesmo que se veja forçado a fazê-lo por estar obrigado a frequentar um curso onde tem que aceitar ideias que ele discorda. Ironicamente, alegar a necessidade de se discutir o conceito de gênero nas escolas e universidades como forma de combater a intolerância acaba gerando intolerância contra os que não entendem o mundo por esta ótica, e nem por isso, impõe seus valores sobre os outros. A lição é clara: afirmações individuais que se limitam ao indivíduo que a afirma não são ofensivas, assim, para que tudo fique limitado ao domínio do indivíduo faz-se necessário que ninguém seja constrangido a aceitar de forma obrigatória a visão do outro. No caso de um espaço público isso só se obtem pela neutralidade. Nisso se fundamenta a ação do Escola Sem Partido, autor da ação que proibiu acertadamente a UFLA de perseguir os estudantes que não desejam assistir as oficinas.

Notas

[1]  http://www.gazetadopovo.com.br/educacao/justica-proibe-universidade-de-expulsar-calouros-por-nao-participarem-de-oficinas-comgenero-emovimento-lgbt-0z8eohew77l0n5bs7pgbkhel1

[2]  Deuteronômio 22:5:

“A mulher não se vestirá de homem, nem o homem se vestirá de mulher: aquele que o fizer será abominável diante do Senhor, seu Deus.”

 


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática