Obliquidades II

O texto escrito pelo prof. Itamar, “A contra reforma da Previdência e seus contrastes”, nada mais é que o “script” que ele usou em parte da sua fala durante a AG[1]. Assim, tal como na AG, neste texto ele nada aborda sobre a questão crucial

A previdência é superavitária ou deficitária? (*)

que fundamenta toda a discussão sobre a reforma da previdência. Assim, a argumentação do prof. Itamar não me parece fazer sentido ao ignorar este questionamento. Em seu texto, prof. Itamar cita um outro texto vinculado no boletim informativo do ANDES de autoria desconhecida e entitulado Contrarreforma representa destruição da Previdência Pública”, onde se lê,

A PEC 287/2016, que institui a Contrareforma da Previdência, retira os direitos dos trabalhadores brasileiros para prosseguir pagando juros e amortizações da dívida pública. [2]

Mas, vejamos o argumento que este texto do Andes dá para justificar a tese acima:

“A Desvinculação de Receitas da União (DRU), instrumento criado em 1994 para facilitar o uso do orçamento das diversas áreas na geração de superávit primário, atinge diretamente a Seguridade Social. A DRU prevê que a desvinculação de 20% das receitas de impostos e contribuições não sejam destinadas às despesas originalmente previstas. Com isso, parte do dinheiro arrecado para a Previdência é utilizado para o pagamento de juros e amortização da dívida pública, e não para sua finalidade, qual seja pagar a aposentadoria e pensão dos trabalhadores contribuintes.”(**)

 

Devemos considerar dois aspectos. Primeiro, a DRU é um mecanismo que permite ao governo usar livremente até 30% do que arrecada com contribuições sociais. Sobre a DRU, Fernando Nery em seu texto, “O déficit da Previdência é uma farsa?”, afirma que

“…os grandes perdedores da DRU sempre foram os Estados e Municípios, e não a Previdência. Desde os anos 90, inicialmente como Fundo Social de Emergência (FSE) e Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), a DRU foi instrumento para o governo federal ampliar a sua arrecadação sem aumentar impostos, que são obrigatoriamente divididos com os entes subnacionais. A saída foi aumentar as contribuições sociais, desobrigando que essa arrecadação fosse usada somente na Seguridade Social, permitindo na prática que o governo aumentasse tributos para pagar suas despesas em qualquer área. A partir daí, com a DRU renovada por sucessivos governos, a União aumentou alíquotas e expandiu a base das contribuições sociais. No argumento do déficit, esses recursos são vistos como sendo da Previdência, e desviados para outras finalidades. No entanto, o histórico do mecanismo deixa claro que sem a DRU as contribuições não arrecadariam tanto quanto hoje e que ela funcionou como instrumento para não compartilhar recursos com os Estados e Municípios, não com a Previdência.” [3]

 

Desta análise vemos então que a DRU foi pensada para aumentar a arrecadação do governo através de contribuições sociais, o que permitiu um aumento progressivo das alíquotas pelo governo, assim, ao que parece, mesmo retirando como quiser 30% desses recursos, o fato é que a DRU permitiu ainda assim uma arrecadação extra para a previdência, um saldo que não seria contabilizado sem a DRU.

O segundo ponto que temos que considerar em relação ao argumento do texto do ANDES é que mesmo retornando à seguridade social os recursos retirados pela DRU, ainda assim a  seguridade social seria deficitária.  Um argumento semelhante ao do ANDES é usado pela ANFIP. Mais uma vez, Fernando Nery explica a razão desse déficit em seu texto, “O que te contaram errado sobre a reforma da Previdência”,

 

“O orçamento da Seguridade Social, que inclui além da Previdência, Saúde e Assistência Social, é deficitário em cerca de R$ 255 bilhões. Para chegar ao “superávit da Anfip”, é necessário incorporar como receita a Desvinculações de Receitas da União (DRU), um mecanismo criado para que a União não compartilhasse com Estados e Municípios um dinheiro que financia outras despesas do governo federal (mas não a dívida). Entretanto, ainda que consideremos estes recursos como sendo de fato da Seguridade, a conta ainda é deficitária em cerca de R$ 165 bilhões. Se até com a DRU a conta da Seguridade é deficitária, como a Anfip chega em um superávit? O pulo do gato é, ao trazer para a conta as receitas e despesas da Seguridade Social, excluir o Plano de Seguridade Social do Servidor, ou seja, as aposentadorias e pensões do funcionalismo. Como este regime é extremamente deficitário, retirar suas receitas não afeta muito o lado da arrecadação, mas retirar suas despesas afeta muito o lado da despesa. Passa a haver então, para o ano de 2015, um pequeno superávit, de R$ 10 bilhões.

Ou seja, mesmo com a DRU, a Seguridade é deficitária e só passa a ter superávit se os servidores públicos forem retirados da conta. É essencial compreender que o problema da Previdência é principalmente devido pelo profundo e veloz processo de envelhecimento dapopulação, ou seja, pelo crescimento da despesa, e não por problemas de lançamento contábil.”(***) [4]

Como vemos, as conclusões postas em (**) e (***) divergem. Certamente, algum dos lados está manipulando os dados de forma grosseira, quem será? Como pode um assunto tão sério ser ao mesmo tempo alvo de atitudes tão irresponsáveis?

Assim, dada a controvérsia, e a falta de dados, não há nada que indique a veracidade a priori daquilo que o prof.  Itamar afirma sem nenhuma justificativa em seu texto de que,

“As palestras e o material produzido pelo PROIFES, imprensa sindical, e divulgados pelo Boletim da APUFSC comprovam que a Previdência, contrarreforma da Previdência, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/16, não é deficitária, uma vez entendida no contexto da Seguridade Social (Saúde, Assistência Social e Previdência).”

Há, contudo, um dado relevante que o prof. Itamar aborda em seu texto, já que ele parece concordar que há mesmo um problema no regime de previdência dos servidores públicos. Neste sentido, ele menciona a desigualdade no custeio apresentando os seguintes dados:

DESPESAS COM A PREVIDÊNCIA NO SETOR PÚBLICO

– Legislativo = R$ 28bi.547mi.

– Judiciário = R$ 26 bi.302mi.

– Ministério Público da União = 18 bi.053.

– Militares (FORÇAS ARMADAS) = 9bi.597mi.

– Executivo = R$ 7bi.583mi.

Assim, o reconhecimento deste enorme déficit pelo prof. Itamar e da crítica acertada que ele faz aos privilégios de certos setores do judiciário, legislativo e dos militares apenas reforça a necessidade da reforma.Agora, qualquer sugestão ou  inferência que aponte para querer retirar da reforma os servidores do executivo não deixa de ser também um privilégio, por isso, a reforma deve incidir sobre todos. Na verdade, no texto da PEC da reforma da previdência temos ainda uma regra de transição bastante simpática aos servidores públicos, especialmente se comparado as regras do INSS, por exemplo,

“…aqueles que ingressaram na carreira entre 2004 e 2013 perdem os privilégios na hora da aposentadoria: integralidade (último salário) e paridade (correção do benefício igual ao reajuste salarial dos ativos). Esses servidores são obrigados a cumprir idade mínima atual (60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher), mas ainda recebem o benefício cheio — ou seja, sem o redutor de 51% sobre a média da contribuições, como valerá para os demais trabalhadores. O valor é calculado com base na média dos 80% maiores salários de contribuição.

Somente quem ingressou no serviço público a partir de 2013 terá regras mais duras, as mesmas do INSS: teto de R$ 5.189 (atual)d+ redutor de 51% no valor do benefício, mais 1 ponto percentual por ano de contribuição, tendo de trabalhar por 49 anos para ter direito ao tetod+ e idade mínima de 65 anos.”[5]

Já sobre a classificação que fiz as falas do prof. Itamar e do prof. Nilton Branco na AG como discursos panfletários, isso se conclui pela insistência que ambos têm em enfatizar nuances partidárias para subliminarmente construir um argumento oblíquo que se perde em associações difusas e sem sentido[6]. Talvez seja demasiadamente difícil para eles não condicionarem o raciocínio pela compulsão da militância política e, assim, perceber que ser contra o governo Temer não é o que justificaria pura e simplesmente ter uma posição contrária a reforma da previdência.

 

Notas:

[1] A notável similaridade entre a fala do professor Itamar  e o seu texto pode-se atestar em https://www.youtube.com/watch?v=d-l-7-QGsxw, principalmente a partir do instante 2:32″52″”.

[2] http://portal.andes.org.br/imprensa/noticias/imp-inf-508597611.pdf

[3] http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2886

[4] http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2964

[5] http://oglobo.globo.com/economia/reforma-da-previdencia-para-servidores-publicos-novo-regime-nao-sera-tao-arduo-20615163

[6] Como exemplo de argumento difuso causa estranheza que o prof. Nilton em sua fala na AG critique as medidas de ajuste tomadas pelo governo Temer e, neste sentido, mencione a Alemanha como exemplo de país que mesmo numa crise não cortou investimentos em educação e ciência, esquecendo que, por consistência e honestidade intelectual, isto nos obrigaria a adotar os mesmos critérios de excelência de nossos colegas alemães. Ora, mas em relação ao prof. Nilton, será que na Alemanha alguém consegue tal padrão de excelência se desdobrando em inúmeras atividades como, por exemplo, cargos no CR (Conselho de Representantes), ou como conselheiro no CUn, ou ainda ocupando um cargo de subchefe de Centro? Que sentido então faz adotar tal discurso se diante do público que nos paga o salário nosso sistema não cobra de nós o mesmo padrão que nossos colegas alemães?


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática