Síndrome da autoridade acadêmica adquirida

Prof. Nilton Branco em seu artigo, “Omissão e opção pela educação”, contrapõe duas realidades distintas – a da Alemanha em 2010 e a do Brasil de agora. No primeiro caso, ele assinala que a crise naquele ano levou o governo alemão a realizar cortes nos gastos sem, contudo, cortar os investimentos nas áreas da educação e saúde que tiveram seu orçamento inclusive aumentado. No caso do Brasil, que também passa por uma crise sem precedentes, o governo se vê obrigado a cortar despesas e a conter o aumento dos gastos em educação e saúde (pelo que eu entendi, no texto da PEC241 não se contempla um corte, mas sim a manutenção do orçamento do ano anterior corrigido pela inflação) , algo que contrasta com a opção feita pelo governo alemão que, segundo o prof. Nilton, não fez tal restrição em 2010. Deduz-se da colocação do Prof. Nilton que estamos indo em uma direção inversa da que foi seguida pela Alemanha e, sendo a Alemanha a locomotiva da Europa, isso sugere que talvez devêssemos seguir a mesma direção. Talvez, mas temos que ter em mente que tal contraste entre os gastos da Alemanha e do Brasil na educação, ciência e saúde só faz sentido se aceitarmos ir além de meramente contabilizar o quanto cada governo gasta nessas áreas, pois há uma diferença enorme em como Alemanha e Brasil construíram suas instituições acadêmicas e também na forma como estabelecem os padrões de excelência que determinam quem irá ocupar uma carreira acadêmica, na saúde etc. Neste texto que escrevo não desejo comentar sobre a PEC241, mas sim aproveitar o texto do prof. Nilton para esboçar uma crítica a estrutura da própria universidade e que diz respeito também a qual seria o sentido de excelência acadêmica no Brasil?

No Brasil, nos acostumamos com um espécie de princípio da “autoridade acadêmica adquirida” (AAA), algo que seria mais ou menos auto-outorgado e justificado diante da opinião pública pela iminência do cargo que se ocupa (ser docente na universidade) e não necessariamente pela real qualidade acadêmica do que se faz (ensino, pesquisa e extensão)¹. Assim, invocando o princípio da AAA, pode-se diante da opinião pública abusar de clichês batidos do tipo: “o professor universitário ocupa uma posição de tutor da nação formando as novas gerações”, para justificar salários e mordomias que poderiam até ser concedidas, mas numa outra perspectiva. Tentarei ser preciso.

Um docente numa universidade alemã dificilmente se torna estável ao fim de dois anos de um estágio probatório. Igualmente, a cobrança feita em muitas universidades da Europa e dos EUA em relação à publicação de artigos é excessiva e estressante, e pode-se até criticar isso alegando que tal prática fomenta um mero carreirismo onde se publica qualquer resultado desde que isto sirva para aumentar o número de publicações em revistas indexadas. No entanto, pelo menos nestes lugares a crítica parcialmente se desfaz pela estratificação que é feita entre artigos que são de fato relevantes e de impacto²  e publicados em revistas bem seletas, já que é isso que acaba sendo o que define a excelência na área, e isso já não se trata de mero carreirismo, mas de academicismo no seu grau mais elevado. Quem não publica neste patamar não consegue posição nas universidades mais proeminentes da Europa e dos EUA, restando a opção de ingresso em universidades menores, ou nos “colleges” etc. É por isso que instituições como MIT, Princeton, Harvard, Oxford, IHES etc. estão sempre ocupando um lugar de destaque mundial, pois a excelência acadêmica exigida para estar ali é notadamente elevada. Nestes países, a opinião pública sabe que ali se encontram as maiores referências acadêmicas nas mais diversas áreas de pesquisa do mundo. Ora, diante deste cenário, é compreensível que mesmo numa crise Angela Merkel tenha feito o que fez de aumentar os gastos na área de educação e ciência, afinal, ela não teria como fazer diferente sabendo que a universidade alemã foi construída sobre figuras universalmente reconhecidas, por exemplo, Arnold Sommerfeld, Max Planck, Albert Einstein, Werner Heinsenberg, Max Born, Von Braun, etc. isto para não citar outros tantos nomes ilustres de outras áreas. Em suma, a universidade alemã já tem sua identidade e seus critérios de excelência devidamente estabelecidos e reconhecidos pelo público. Será que já temos isso no Brasil? Ora, no inconsciente do público no Brasil vale muito o princípio da AAA, onde impera como regra geral a percepção de que “se você é um professor universitário e eu não sou, eu me calo porque você sabe e eu não sei”, o que não deixa de ser um resquício da velha prática da “carteirada” (ainda que num sentido inverso, pois aqui é o menos favorecido intelectualmente que intimidado se cala e aplica a si mesmo a abjeta “carteirada”), e também é o mesmo AAA que se manifesta no igualmente abjeto:“você sabe com quem está falando”, quando se tenta intimidar o pobre do policial militar que está multando alguém por uma ocorrência no trânsito.

O ponto que eu desejo enfatizar aqui é que temos sim que defender a universidade e demandar do governo investimentos concretos na ciência, educação e saúde, mas temos que aceitar também que nos cobrem padrões de excelência da mesma magnitude que são aplicados em países lá fora e que invocamos como modelo. Ora, se a Alemanha serve como exemplo de como devemos gastar em ciência e educação e saúde, também temos que usar os mesmos parâmetros que a Alemanha usa para aferir excelência de quem desempenha a função. Será que estamos fazendo isso na estrutura viciada da universidade brasileira? O povo brasileiro financia com seus impostos toda essa engrenagem, assim, o povo tem o direito irrevogável de nos cobrar excelência e de exigir instituições que funcionem tão bem quanto o que há de melhor em outros países.

Finalizo esse texto apontando vícios na nossa universidade que devem ser corrigidos, do contrário, a persistência no erro nos tira autoridade moral de reivindicar qualquer coisa.

1.Temos em nossa universidade um fator de correção (que vai no máximo até 2.5) que é aplicado as atividades de ensino de modo a contabilizar 40 horas de trabalho. Assim, alguém que tenha 20 horas de pesquisa precisa ainda contabilizar pelo menos 8 horas-aula que aplicado ao teto de 2.5 transforma essas 8 horas-aula num equivalente de 20 horas de trabalho, de modo que, no total, atinge-se 40 horas de trabalho. Ora, mas este fator de conversão de 2.5 não é um direito adquirido, é apenas um índice usado para no fim contabilizar 40 horas no PAD. Havendo turmas descobertas por não ter docente, nada impede a chefia de aplicar um fator menor que 2.5 de modo a cobrir a demanda. A reação negativa de muitos a tal proposta parece uma heresia e na mente deles é inegável que ministrar algumas aulas a mais torna-se algo como um castigo, pois invariavelmente alegam que isso irá prejudicar a pesquisa. Ora, mas um público bem informado que tem seu filho/filha sem aula por conta de uma turma descoberta pode igualmente questionar a tal “pesquisa” e se perguntar: “O que a sua pesquisa gera? Qual a relevância da sua pesquisa? Qual o nível de excelência da sua pesquisa comparado a pesquisa que se faz em outros países?”, e esses questionamentos se tornam tão mais incômodos quanto mais distanciado do senso comum for a área em questão.

Resumindo: Se ingressamos na universidade como professores por que essa reação negativa a ter que eventualmente ministrar mais aulas do que as mínimas 8 horas-aulas, alegando que isso irá atrapalhar a pesquisa? O que o público que nos financia diria sobre isso?

2. Houve uma flexibilização nas universidades públicas na concessão do título de “professor titular”, mas o que esse título realmente representa? Em uma universidade americana ou européia temos o análogo do “full professor”, mas o que é exigido academicamente para se chegar a este nível aqui e lá fora são equivalentes? Será que não há distorções? O “status” acadêmico adquirido com esse título faz justiça ao que se espera de um professor titular? Quais são os parâmetros? O que o público que nos financia diria sobre isso?

3. Recentemente, o MPF questionou a universidade sobre o cumprimento de horários de servidores e professores, e sabemos que muitos alunos reclamam sistematicamente de aulas que acabam sendo ministradas por alunos de doutorado, mestrado, mesmo na prática constando que há um docente para lecioná-la. Ora, numa universidade o professor sabe que tem que ministrar suas aulas e, se não faz isso, deixa de cumprir sua função. O que o público pensaria sobre isso?

4. Sindicatos em universidades atuam em geral como se o espaço onde estão inseridos não fosse um ambiente acadêmico, esquecendo que o docente exerce a missão (vital para a nação) de formar pessoas e disseminar conhecimento e que tal atividade, quase como num sacerdócio, envolve uma dedicação integral do docente. Assim, desse esquecimento segue-se que os sindicatos acabam por bagunçar o espaço acadêmico criando um ambiente confuso onde esperam que o docente se engaje numa atividade sindical dedicando seu tempo em atividades sem fim, como, por exemplo, discussões, AG”s, grupos de trabalho, passeatas, etc. Por fim, grupos ativos dentro do sindicato muitas vezes pressionam uma tomada de posição da diretoria mesmo sem saber o que coletivamente pensam os associados. No caso da APUFSC, é bem provável que a posição dos conselheiros do CR no máximo represente a posição individual dos conselheiros, dada a pouca vontade do coletivo em se manifestar. Mas, tentemos dar um argumento mais eloquente sobre a “disfuncionalidade” dos sindicatos na universidade. Alguém consegue imaginar um sindicato de professores numa universidade americana, européia que pense a atividade sindical da mesma forma como ela é pensada no Brasil, ou que tenha a audácia de achar que os docentes tenham que dedicar seu tempo a tantas atividades? Isso também é um vício de nossas universidades, pois essa disfuncionalidade dos sindicatos mencionada acima perverte o espaço acadêmico, e somente assim conseguimos entender como pode um sindicato como o SINTUFSC deflagrar greves todo semestre causando um enorme prejuízo na formação de estudantes, com o agravante de receber integralmente os salários por um trabalho que não foi realizado³.

CONCLUSÃO: Nunca teremos universidades que mereçam um investimento público generoso sem antes corrigirmos os vícios corporativos que de certa forma nos torna iguais ao que criticamos em outras esferas do poder público. Assim, a honestidade intelectual do discurso deve ser mantida, mesmo que isso signifique não termos aquilo que sempre julgamos ter direito. A síndrome da autoridade acadêmica adquirida tem cura!

Notas

1. É exatamente isso que leva muitas pessoas a achar que podem exigir tudo sem notar que devem ao mesmo tempo aceitar a cobrança pela qualidade acadêmica do que é feito e sua relevância para o público.

2 . Deve-se descontar aqui a tentação de acreditar que o que é complexo e abstrato já traz em si um nível satisfatório de relevância pelo fato de ser algo de difícil compreensão. Com efeito, tal alegação é elusiva, pois um pesquisador que terminando sua tese dedica os próximos dez, vinte anos a trabalhar na mesma área dos seus estudos de doutorado acaba dirigindo esses estudos numa verticalidade que gera resultados cada vez mais finos e específicos pelo simples fato do que um resultado vai gerando outros resultados. Aqui, cria-se um conhecimento em cima de algo anterior cuja relevância é dada pelos poucos pesquisadores que se dedicam aquele estudo particular. Assim, questionado sobre a relevância do que é feito, o pesquisador no clímax da síndrome da AAA alegaria que ao produzir algo de difícil compreensão teria sua pesquisa justificada, ao passo que o cidadão comum que financia tal pesquisa poderia contra argumentar dizendo que não se deveria esperar nada diferente se após dez, vinte anos de pesquisa centrada sequencialmente num mesmo assunto, ao fim deste tempo, não se produzisse um resultado de difícil entendimento. Ou seja, a questão da relevância é mesmo relevante!

3. A situação agora apresenta um dado novo com a determinação do STF que reconhece o direito à greve, mas entende que não deve o governo pagar por um trabalho que não foi feito e, assim, obriga que o governo desconte os dias não trabalhados.


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática