A reforma do ensino médio II: a educação como área de conhecimento teórico está habilitada a ter a hegemonia de determinar a prática?

No texto “A reforma do ensino médio I”, mencionei ser

“inviável uniformizar o ensino de conteúdos sem levar em consideração a diversidade de interesses e aptidões dos indivíduos.”

 Certamente que o equívoco em não perceber isso tem sua origem na aplicação sem muito critério de assertivas do tipo

“… é possível ensinar qualquer assunto, de uma maneira intelectualmente honesta, a qualquer criança em qualquer estágio de desenvolvimento” (Jerome Brunner).

Com efeito, não é necessário adentrar na teoria de Brunner para verificar a falsidade da assertiva, pois a experiência particular de se ensinar matemática já refuta a proposição, do contrário, a solução seria simples e bastaria que os educadores “brunnianos”  assumissem a responsabilidade de ensinar matemática.  Se meus colegas da educação me permitem, talvez ainda seja possível concordar com a proposição de Brunner se entendermos por  “maneira intelectualmente honesta” a admissão de que não se deve ensinar certos conteúdos no mesmo nível a todas as pessoas. Mas, esta ressalva nos faria retornar a necessidade da estratificação dos conteúdos e voltaríamos então  a um ciclo de desentendimento opondo estratificadores e uniformizadores de conteúdos.

Persistindo neste ponto, alguns educadores sustentariam que eu estou colocando um pseudoproblema, pois reduzo a educação a uma visão centrada unicamente no conteúdo, deixando de lado toda uma função crítica da educação como agente de transformação social (1 ). Sem dúvida, mas o que meus colegas da educação talvez não entendam é que a educação se revela uma área de conhecimento mais “teórico” do que “prático” e é apenas nesta perspectiva teórica (dos educadores) que a crítica faria sentido por contrariar os paradigmas da educação. No entanto, pensando na praticidade da teoria, creio ser possível refutar a acusação de propor um pseudoproblema ou, ainda, de fazer menção a uma mera nuance conteudista. Tentarei explicar.

A educação, como qualquer  área do conhecimento, forma seu objeto de estudo e as suas diversas teorias e modelos a partir dos paradigmas estabelecidos pela comunidade dos que se dedicam a pensar a educação. Um físico teórico faz a mesma coisa que o educador quando fala de espaço e tempo multidimensionais, algo que foge ao senso comum que aponta para apenas três dimensões espaciais junto com uma única variável temporal. Embora não haja evidências experimentais que apontem para a existência concreta dessas extras dimensões, elas não deixam de ser objeto de estudo de alguns físicos teóricos que trabalham em supercordas ou modelos supersimétricos exóticos. Analogamente, o objeto de estudo do matemático puro cai na mesma categoria.

Neste ponto, surge uma diferença entre a natureza da investigação do educador, do físico teórico, e do matemático puro. De fato, quando um educador forma a sua compreensão dos fenômenos tratados na educação ele deve ter em mente que disserta em um nível teórico, sem necessariamente se conectar com algo de ordem prática, ou mesmo realizável. E não há problema algum nisso, desde que tal compreensão dos educadores se limite as publicações de suas ideias nas revistas de educação, ou nos anais de congressos e seminários da área, algo que a princípio é de interesse limitado aos que pesquisam a educação. O problema real reside no que eu identifico com a pergunta:

 “Quem deve delimitar a prática, as diretrizes, o conteúdo ou o juízo do que se constitui a dinâmica ensino-aprendizado?”

É imediato que quando um educador pensa a educação adotando a crítica marxista  ele assume uma visão muito particular e reducionista dos “fenômenos” da educação. Pode ser que o educador formado no Brasil não tenha consciência disso, mas a realidade é que ele já foi formado dentro de um paradigma crítico (marxista) (2 ). Assim, se este educador reproduz ou não tais cânones marxistas em seu pensamento é algo que se justifica da mesma forma com que um físico teórico justifica uma investigação baseada no pressuposto de extra dimensão. Novamente, vemos que não há problema algum enquanto o físico teórico pensar as extra dimensões como sendo algo meramente abstrato, sem confirmação experimental, não extrapolando essa compreensão como se ela tivesse um sentido real.  Analogamente, não há problema algum nas concepções teóricas dos educadores desde que não extrapolem o objeto de sua pesquisa usurpando uma função que eles não deveriam ter, no caso, a elaboração da prática, diretrizes, conteúdos, e juízo da dinâmica ensino-aprendizado, como coloquei na questão acima. As aberrações que vemos em nosso sistema educacional decorrem exatamente disso3. Por exemplo, poderia ser diferente o baixo desempenho de nossos alunos nas provas que aferem o conhecimento de matemática quando eles têm que cumprir uma grade curricular obrigatória de doze disciplinas no ensino médio que resulta, em média, num tempo exíguo de três aulas semanais de 50 minutos de matemática? É inconcebível pensar que um professor de matemática tenha proposto isso devido à própria impossibilidade de se conseguir expor conceitos matemáticos contando com um tempo tão reduzido. Outro exemplo nós vemos na insistência de rechear os documentos curriculares com verbos  de ação, por exemplo, “problematizar”, “conscientizar”, “transformar”, que vê a educação como um amplo e questionável (4 )

processo de reconstrução do ser humano como um ser socialmente engajado e desprovido de qualquer atributo que, afirmado individualmente, produz  uma diferenciação e estratificação perante outros.

 É neste sentido que muitos educadores estigmatizam o conhecimento conteudista, pois a aquisição de conteúdos estratifica e diferencia.

Do que foi exposto, entendo que um educador até pode sustentar a compreensão de que

a educação visa transformar a sociedade dotando o educando de uma visão crítica (marxista) em um processo conduzido pelo professor,

já que a insistência nisso é condicionada pelo paradigma aceito pela comunidade  na qual o educador se insere (). Enquanto o educador  se deleitar com seus artigos de pesquisa que serão lidos por seus pares, o problema está contido, já que as implicações desses paradigmas não se estendem a mais ninguém além dos próprios educadores. O que não pode é aplicar tais ideias como se fossem realizáveis, pervertendo o currículo e transmutando a educação em um processo de formação doutrinária e ideológica, quando a mesma deveria ser concebida como um processo formativo que prima pela liberdade de pensamento do indivíduo.

Finalizo concluindo que uma reforma do ensino médio só produzirá bons resultados se corrigirmos a tendência de dar aos educadores um papel de primazia na elaboração dos documentos curriculares, evitando principalmente a condução doutrinária e ideológica de conteúdos e princípios. Uma leitura dos documentos da Base Nacional Curricular Comum evidencia os excessos onde isso ocorre.

Notas

(1)Tal qual Elvis, Freire não morreu.

(2) Assumo que deve ser esta a razão para termos várias fileiras cheias de livros sobre marxismo na biblioteca setorial do CED, algo que eu não lembro ter visto na biblioteca da faculdade de educação da University of  Ottawa, Canadá.

(3) As aberrações continuariam a existir mesmo se dispuséssemos dos melhores professores em sala de aula e tivéssemos acesso aos melhores recursos de ensino e aprendizagem, pois residem na fragmentação do ensino em múltiplas disciplinas, o que leva a perda do foco tornando impossível aprender de forma efetiva e em profundidade um determinado assunto.

(4) A proposta de “reconstruir o ser humano” libertando-o das categorias de opressor e oprimido é ambiciosa demais para ser pensada como finalidade apenas da educação6. A razão é clara, já que o fenômeno humano reside além do aspecto material e social das relações humanas, incorporando também uma dimensão transcendente concreta onde Deus se manifesta (e tal manifestação se dá tanto na afirmação quanto na negação de Deus, de modo que o ateísmo, de certa forma, torna-se também um fenômeno religioso, pois o discurso ateísta como centrado na negação de Deus assume a priori a ideia de Deus. A negação de Deus, neste caso, torna-se uma mera afirmação de fé do ateu).

Maria Montessori de forma admirável soube identificar esta dimensão do divino nas crianças ao citar R .W. Emerson :

 “ A infância é o eterno Messias que sempre retorna para o meio das pessoas caídas, para conduzi-las ao reino de Deus”.

Rejeitando tais projetos ambiciosos como sendo função da educação somos obrigados a delimitar a educação como um


processo formativo de cidadãos livres e conscientes dotados de saberes específicos livremente escolhidos e que constituem o legado da história humana, com seus erros e acertos.

Nada além disso.

(5) Eis aqui um problema que aflige as ditas “ciências” humanas em geral. Por exemplo, o que é relevante para educadores no Brasil não é necessariamente relevante para educadores no Canadá (novamente, a desproporção de livros sobre marxismo nas bibliotecas daqui e de lá não parece indicar alguma coisa a respeito?), assim, é possível que a pesquisa em educação em diferentes países transcorra sob óticas distintas. Não sendo uma “ciência” exata isso não desclassifica a pesquisa de ninguém, contudo, lança suspeitas sobre até que ponto uma leitura dominante da área, perpetrada sistematicamente por décadas, não acaba por influenciar a própria área. O perigo é real, pois, se a pesquisa de uma comunidade local não se insere num contexto global onde suas premissas e resultados seriam validados por uma comunidade mais diversificada, quem acaba validando a pesquisa é a própria comunidade local que publica condicionada sob a mesma ótica. Que vitalidade tem uma pesquisa erigida dessa forma?

(6)  Tal processo de “reconstrução do ser humano” se mostrou catastrófica quando se adota  a  crítica marxista como princípio para tal reconstrução, como demonstraram os regimes totalitários comunistas onde a educação se transformou em um mero instrumento de legitimação do regime.


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática