A reforma do ensino médio I: segmentação, estratificação e excelência

Pretendo expor neste e nos próximos textos algumas ideias sobre a educação que foram surgindo ao longo dos vários anos aqui na UFSC. O contato indireto que tive com a forma de pensar dos meus colegas da educação, inicialmente com aqueles que faziam o Profor comigo, e depois com os palestrantes que ministravam seminários no mesmo programa¹, assim como em outros encontros sobre educação, me alertou para um abismo que existe entre a forma como a educação é pensada por alguns educadores e o senso comum de quem não é da área da educação. Peço então desculpas antecipadas pelo tom crítico que adotarei em alguns momentos, mas ressalto que o embaraço que eu possa causar em alguns é proporcional ao desconforto que me causa ainda hoje algumas concepções dos educadores. Ao fim desta reflexão, espero poder produzir um ponto de inflexão tanto em mim quanto (assim espero) alguns de meus colegas e que possa haver assim uma mudança mútua de entendimentos, ainda que em parte, pois é somente nesta perspectiva que toda mudança real se inicia. O momento atual, de reforma do ensino médio junto com a formatação do texto final da Base Nacional Curricular Comum, exige isso de todos nós.

O projeto de lei enviado ao Congresso que trata da reforma do ensino médio se impõe como uma necessidade diante de um diagnóstico nada promissor deste segmento. Contudo, a multiplicidade de posicionamentos que se tem sobre o papel da escola e do que constitui a sua função formativa revela mitos que precisam ser expostos de forma clara, sob risco de inviabilizarmos a própria reforma.

Um dos pontos importantes da reforma refere-se à flexibilização da grade curricular, onde os estudantes teriam como disciplinas obrigatórias, entre outras, o português e a matemática.

Surge aqui um primeiro ponto de reflexão:

Se a disciplina de matemática é obrigatória então o quão profundo devemos apresentar este conteúdo?

A questão é de suma importância, pois um aluno cujo objetivo não seja o de seguir uma carreira acadêmica na área de exatas certamente não precisará se submeter ao mesmo conteúdo de matemática que se espera de um aluno que deseja cursar engenharia, matemática ou física. A solução seria acomodar interesses distintos criando uma segmentação do curso de matemática dividindo-o em pelo menos duas vertentes²/³, uma que poderíamos tomar como sendo prática, e outra que seria acadêmica. Assim, um curso de matemática na vertente prática abordaria um conteúdo menos abrangente, com uma carga horária menor e tratando assuntos de natureza mais simples e intuitiva, enquanto que na vertente acadêmica o curso de matemática seria mais extenso, com uma carga horária maior e abordando assuntos mais complexos e de forma mais aprofundada e densa, por exemplo, abordando tópicos vistos em olimpíadas de matemática ou versando sobre temas atuais da matemática adotando uma linguagem menos técnica que, não obstante, formariam uma ponte entre o conteúdo do ensino médio e do ensino superior. As escolas teriam então a liberdade de oferecer cada uma das vertentes de acordo com o interesse dos alunos. Isto possibilitaria uma melhor utilização dos recursos financeiros da escola com a contratação de professores na medida exata das necessidades dos alunos.

A ideia de segmentação mencionada anteriormente foi ilustrada na área da matemática, mas se aplica igualmente a qualquer outra área. Em qualquer dos casos, a segmentação encontra a resistência de muitos educadores. O ponto nevrálgico é a constatação de que havendo flexibilidade em gerir recursos e oferecer cursos de acordo com o interesse dos alunos isso ocasionará um processo de estratificação entre as escolas, umas sendo mais fortes do que outras em determinadas áreas. No entanto, o senso-comum reforça a inevitabilidade da estratificação ao indicar ser inviável uniformizar o ensino de conteúdos sem levar em consideração a diversidade de interesses e aptidões dos indivíduos. Este fato se mostra ainda mais veraz na matemática, mesmo tratando com assuntos da matemática elementar do ensino médio, pois esta disciplina apresenta percursos diferenciados de compreensão.

Ocorre hoje que não se pode mais ignorar que o conhecimento da matemática ou de áreas ligadas à computação tem sido um diferencial no mercado de trabalho e isso gera a busca por uma formação mais aprofundada nessa área de conhecimento, basta ver os cursos particulares que propõem reforço na matemática, o mais conhecido destes sendo o método Kumon. Assim, numa reforma do ensino-médio que comporte a flexibilização da grade curricular é provável que essa busca pelo conhecimento específico da matemática tenha um impacto direto nas escolas determinando um processo de diferenciação e de busca pela excelência já num estágio inicial da vida dos jovens. O problema é que muitos educadores acreditam que esta fase deveria ser meramente formativa, sem produzir grandes diferenças entre os jovens, principalmente no que eles classificam de forma pejorativa como “educação conteudista”. Provavelmente, são estes educadores a quem se deve o crédito do absurdo de termos hoje um ensino médio engessado com mais de 12 disciplinas obrigatórias e que pulveriza qualquer possibilidade de se aprender algo que não seja de forma superficial, como bem demonstra o exame do ENEM, que prima por fazer conexões entre saberes, sem, contudo, exigir um raciocínio mais aprofundado sobre conteúdos específicos, algo cujo efeito imediato nós vemos na matemática como demonstrado no fraco desempenho de nossos estudantes em provas de matemática do tipo PISA, bem como na alta taxa de reprovação nas disciplinas de matemática lecionadas na universidade.

Mudemos um pouco o foco do problema. Será que estamos receosos que os fenômenos de segmentação e estratificação aludidos anteriormente introduzam uma “meritocracia” na reforma do ensino médio, algo que para os educadores mais “ortodoxos” soa como precursor, nas escolas, do eterno complexo marxista de ver “luta de classes” em tudo, neste caso, separando alunos pela sua performance na matemática? Ora, tal receio só faz sentido se as escolas não dispuserem das mesmas condições e recursos de contratar e organizar os cursos que acharem conveniente, respeitadas as diretrizes curriculares. Havendo tais condições, trata-se exatamente de dar a cada um aquilo que se almeja. Na verdade, estamos diante de uma possibilidade única de se fazer justiça social já na sua origem, quando um pobre poderia ascender socialmente pela aquisição do conhecimento através apenas do estudo árduo e sistemático, já que cabe a escola oferecer todas as condições materiais objetivas para que isso ocorra. É aqui que vemos implantada a igualdade de condições sem distinção de classe (pobre ou rico), onde o elemento que distinguiria seria unicamente o esforço e o talento individual de cada um.

Em um próximo texto pretendo abordar a questão do que se constitui a arte de ensinar, algo que também está imerso em inúmeros dogmas, um deles sendo a estigmatização equivocada da chamada escola tradicional e da ênfase peculiar que essa escola dá ao chamado “lecture style” como dinâmica de ensino-aprendizagem. Longe de representar um modelo de ensino ultrapassado espero convencer o leitor de que o “lecture style” torna-se mais efetivo na medida em que o curso de matemática torna-se mais acadêmico, assim, o estigma atual que busca de forma obsessiva novas formas de ensinar não se aplicará uniformemente a todos os estudantes. Contrariando alguns de meus colegas educadores, a mudança de perspectiva que desejo mostrar é que o “lecture style” tornar-se-á indispensável para aqueles a quem o “lecture style” se aplica. Na reforma do ensino-médio isto deverá ser contemplado.

Notas:

1-  Merece nota o curso ministrado no Profor pelas professoras do CED, Dra. Lucia Schneider Hardt e Dra. Dulce Marcia Cruz no longínquo anos de 2006/2007, por terem apresentado um conteúdo de forma inclusiva trazendo para nós um pouco da forma de pensar a educação sem, contudo, adotar uma posição fechada e dogmática.

2- A província canadense de Ontario oferece nos chamados “Grade 9” e Grade 10” (que corresponderia ao primeiro ano do nosso ensino médio) dois tipos de cursos de matemática, um “Applied” e outro “Academic”.

http://www.edu.gov.on.ca/eng/curriculum/secondary/math910curr.pdf

3 – No “Grade 11” e “Grade 12” (que corresponde aos dois últimos anos do nosso ensino médio) são oferecidos quatro tipos de cursos de matemática.

http://www.edu.gov.on.ca/eng/curriculum/secondary/math1112currb.pdf


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática