No país de Marcos Pereira e Marina Silva

 “O anúncio informal do possível ministério de Michel Temer (PMDB), porém, suscita dúvidas não só a respeito da habilitação técnica de setores da nova administração, mas também, e sobretudo, acerca de sua estabilidade política e, por que não, judicial.” (Editorial FSP de 17/05/2016)

Falando de “habilitação técnica” fica impossível não lembrar da intenção primeira do governo Temer de fazer cair de paraquedas na Ciência e Tecnologia um político do baixo clero e, muito pior, adepto de uma fantasia ridícula chamada criacionismo. Falo de Marcos Pereira, “bispo” licenciado da Igreja Universal de Edir Macedo, o maior empresário da Fé do Brasil, quiçá do mundo. Marco Pereira é presidente do PRB, o partido da Universal de Edir Macedo. Ele não apenas desconhece o ofício de administrar ciência, como de fato nega, criacionista que é, a ciência. Não direi apenas que é despreparado para a administração da ciência, já que a ciência é considerada, pelos criacionistas, algo falso, incompatível com a Bíblia, esta a “fonte exclusiva de todo o conhecimento”. O criacionista dos dias de hoje é um indivíduo que nega os achados científicos, em favor de um besteirol que diz, como bem lembrou Marina Silva, em entrevista nas páginas amarelas de Veja, “que Deus fez “as coisas” como elas são hoje”. Isso há menos de 10 mil anos!

Fosseis de Burgess Shale (Canadá), com trilobitas de 500 milhões anos, idade medida por técnicas de bases científicas consagradas e precisas? Não, isto é ilusão do demônio, manobra de Satã para desviar o homem do caminho de Deus. Fóssil completo (eu o vi em Neuquén, Argentina) do Giganotossaurus carolinii, um monstro carnívoro maior do que o Tiranossaurus rex, que viveu na Patagônia argentina entre 100 e 94 milhões de anos atrás? Nada é assim como parece, trata-se de truque do Tibinga para enganar almas de pouca Fé, afirmam, “em nome de Jesus”, os criacionistas.  Negam-se essas evidências científicas exatamente como o clero católico (à época também criacionista, hoje não mais) negou como verdadeiros os satélites de Júpiter, revelados pela luneta de Galileu. Tal qual falam os criacionistas de hoje, aquela visão dos satélites de Júpiter seria arte do demônio, para afastar os cristãos a doutrina da Igreja, dona exclusiva da verdade medieval. (Nota: na época dos Giganotossaurus Carolini, dos Argentinossaurus e outros, os Andes ainda não existiam, sua origem é (em termos geológicos) mais recente (entre vinte e trinta milhões de anos) e nasceu de um cataclismo: o choque da placa tectônica de Nazca (do Pacífico) com a placa sul-americana. Então, também em termos geológicos, “as coisas” não foram feitas como são hoje, como afirmou Marina Silva.)

Como um Deus poderoso criou, há menos de 10 mil anos atrás, “as coisas como são hoje”, conclui-se que os dinossauros (extintos há 65 milhões de anos, segundo a ciência) foram contemporâneos do homem segundo o criacionismo. Segundo a ciência, a espécie homo sapiens surgiu há cerca de 200 mil anos. Mas os criacionistas não acreditam em evidências científicas (todo o saber está na Bíblia, afirmam), não aceitam os métodos, altamente confiáveis, de datação científica, simplesmente porque desmascaram a interpretação bíblica. Para eles os dinossauros desapareceram com o Dilúvio bíblico, que cobriu a Terra matando tudo que não estivesse na arca de Noé. (Pena que Noé não tivesse acolhido em sua arca pelo menos um casal de Tiranossauro Rex, ou um de Giganotossauro carolinii, ou um de Argentinossaurus, este último pesando 80 toneladas cada exemplar. Terá sido porque a rudimentar arca não comportaria um casal pesando 160 toneladas?)

Se “as coisas foram feitas como se encontram hoje”, segundo o criacionismo, não existe lugar para a Teoria da Evolução de Darwin e para ramificações modernas daquela teoria, como a Genética Evolutiva. Realmente, a Teoria da Evolução é das coisas mais rejeitadas pelos criacionistas do estado do Kansas, EUA, a ponto de questões sérias, como a proibição do ensino do Darwinismo nas escolas daquele estado, terem sido resolvidas pela Justiça Federal dos Estados Unidos.

O estado do Kansas é pujante na agricultura. Entretanto, aquele estado é vítima de uma praga endêmica que ataca as suas principais culturas, trigo e sorgo. O irônico da história é que para proteger esta preciosa lavoura, a universidade do Kansas desenvolveu o maior e mais bem equipado laboratório de Genética Evolutiva dos Estados Unidos. Sem aquele laboratório, dizem as autoridades do ramo, o estado do Kansas iria à falência, por conta da praga mutante que nele reside. É realmente irônico que um dos estados mais criacionistas dos Estados Unidos, onde várias tentativas já foram feitas para tornar proibido o ensino da evolução darwinista nas escolas, seja o mais protegido exatamente pela ciência da evolução que costuma, por boa parte de sua população, ser negada.

Eu então me pergunto como o criacionista, “bispo” Marcos Teixeira – se tivesse logrado o Ministério da Ciência e da Tecnologia -, encararia um pedido de financiamento da comunidade científica para um projeto de pesquisa em Genética Evolutiva, por exemplo. Assinaria a concessão recomendada por um comitê científico, cometendo um “pecado” contra a sua Fé fundamentalista? Ou se negaria a assiná-la, “em nome de Jesus? ”.

A ciência demonstra que o homo sapiens surgiu há cerca de 200 mil anos, como resultado de um longo processo de evolução, amplamente documentado por fósseis e muitas outras evidências científicas. Mas os criacionistas, para quem todo o conhecimento está na Bíblia, negam a evolução, pois que “Deus fez as coisas como elas estão hoje”.

Então eu me pergunto, de novo, como o criacionista, “bispo” Marcos Teixeira, encararia um projeto de pesquisas em paleontologia, ou ciências correlatas? Assinaria, cometendo um “pecado”? Ou se negaria a conceder os recursos “em nome de Jesus? ”

Em 2001 a NASA lançou a sonda espacial WMAP (Wilkinson Microwave Anisotropy Probe) com o fim de medir pequenas flutuações de temperatura do CMB (Cosmic Microwave Background), isto é, da radiação primordial decorrente da criação do universo, liberada 380 mil anos após a inflação original, quando os átomos de hidrogênio, já então criados, a liberaram.

Essas medições impressionantes – que corroboram as predições da Teoria da Relatividade Geral de Einstein, bem como da Mecânica Quântica – explicam a formação das primeiras estrelas e galáxias, datam o universo com 13,772 bilhões de anos (precisão de 0,5%), determinam a proporção da matéria bariônica (composta de átomos) em 4,6% do universo, da matéria escura, em 24% do universo, e da energia escura, na forma de uma constante cosmológica (prevista por Einstein) em 71,4% do universo.

São feitas também medições da curvatura do universo, que demonstram que ele tem a forma de um plano tridimensional (não se tente visualizar), razão pela qual, de acordo com nossa experiência cotidiana, um raio de luz se propaga em linha reta, exceto quando próximo a uma grande massa, como a do Sol, devido à deformação do espaço-tempo. Tivesse o universo forma diferente da plana, um raio de luz não se propagaria em linha reta.

Esta última conclusão de que o universo é plano é de fundamental importância também porque a energia total (incluindo-se a energia em forma de matéria) nele contida é zero. Se o universo tivesse outra forma que não a plana, este balanço não daria zero. Em sendo zero a energia total de um universo plano, isto significa que não foi gasta qualquer energia (ou matéria!) para que nosso universo tenha sido construído. Ou seja, este achado científico dispensa a existência de uma entidade poderosa, pré-existente ao tempo  – já que tempo e espaço foram criados, simultaneamente, no Big Bang – ditando palavras de ordem ao nada (ou seja, expendendo energia) para que universo fosse criado.

Pois todo este Modelo Padrão do Universo, desenvolvido primeiro matematicamente e depois corroborado pela NASA, é negado pelos criacionistas. Para gente como Marina Silva e Marcos Pereira – este que já fora cogitado para ministro de Ciência e Tecnologia, para chacota dos cientistas e aparentados do Brasil e do mundo -, nada do que o Modelo Padrão do Universo revela é verdade: o Universo (“as coisas”) foram criadas como narra a Bíblia, há menos de 10 mil anos. Um Deus todo poderoso, existente antes mesmo da criação do espaço-tempo (e, consequentemente, antes da criação do tempo) ditou palavras poderosas (imprimindo energia) ao nada, o nada ouviu, entendeu e obedeceu, criando “as coisas”, como fala Marina Silva.

Fique claro que não estou dizendo que a Fé religiosa é obstáculo para um cargo executivo, público ou privado. Ou cargo legislativo, fique também claro. Nem mesmo que o cargo seja a Presidência da República. Jamais falei tal coisa e não estou falando isto agora. A Igreja católica e as Igrejas Protestantes tradicionais aceitam, em geral, a ciência e a evolução, em particular. A Igreja Católica apenas prega que, ao final da evolução, houve um sopro divino que conferiu ao ser evoluído a alma e tudo o mais que supostamente os torna humanos. Não há comprovação científica alguma desta afirmação: trata-se, diz-se, de uma afirmação de Fé, seja lá o que isto for.

Já o criacionismo exacerbado está hoje, em boa parte, restrito às denominações neopentecostais, que se reproduzem no Brasil como cogumelo. É muitíssimo mais fácil (e certamente mais lucrativo) criar-se uma igreja do que uma empresa, mesmo que pequena. O criacionista, sim, é um ser problemático porque, altamente sectário, é intolerante com os que não seguem seu catecismo, ou sua Bíblia. E o sectarismo é a pior característica que se pode pensar de um candidato a administrador público, mormente de ciência. Sectarismo e ciência são atributos absolutamente incompatíveis porque o sectário, por definição, é dogmático e dogma é algo que não convive com a ciência e o cientista. Nem com a democracia. Nem com a liberdade individual.

Todo conhecimento científico é, pela natureza da ciência mesmo, provisório. Se alguém conseguir provar que um conhecimento estabelecido pela ciência está parcial ou totalmente errado, será aplaudido, pode receber alguns prêmios em reconhecimento, quiçá um Nobel. Toda contestação fundamentada é benvinda, em ciência. Já o criacionista não tolera quem não concorde que a Bíblia é o depositário de todo o conhecimento que interessa ao homem, conhecimento que é considerado perfeito, imutável e eterno. Um criacionista num ministério de ciência e tecnologia é uma contradição, não é coisa que se aceite: será tomado como uma chacota e um desrespeito à ciência e ao cientista.

Um criacionista na presidência de uma república democrática é também uma contradição e um perigo de retrocesso. Para se ter uma ideia, a imensa maioria dos estados mulçumanos, de fundação criacionista, é um exemplo de que devemos nos afastar: são todos sectários, atrasados científica, tecnológica e culturalmente. São intolerantes para com o contrário e o contraditório. Declarar-se ateu em um desses estados é como que assinar sua própria sentença de morte. Em suma, são detestáveis teocracias.

Para a real democracia, filha magnífica da Reforma e do Iluminismo – que os muçulmanos nunca tiveram – é necessário que o estado seja, de fato, laico. Laico para não professar qualquer Fé – ou ter pendor por alguma Fé em particular – e, assim, poder garantir o direito de Fé a todos, inclusive o direito de não professar fé alguma. A isto se chama liberdade, sem o que a democracia não existe.

 


José J. de Espíndola

Doutor (Ph.D.) pelo ISVR da University of Southampton, Inglaterra, Doutor Honoris Causa da UFPR, Professor Titular da UFSC, Departamento de Engenharia Mecânica, aposentado