Em comentário a um texto que escrevi, “Por que devemos combater a insidiosa ideologia de gênero”, Tiago Kramer afirma que seria possível ensinar a ideologia de gênero as crianças alegando que
“Primeiramente é necessário entender que falar de gênero não pode ser confundido com “falar de sexo” (de forma vulgar) para “crianças puras”. Uma abordagem interessante é discutir como “homem” e “mulher” são construções sociais e históricas e não papéis naturalmente seguidos por quem nasce com um pênis ou uma vagina (podemos falar para as crianças o que é um pênis e o que é uma vagina).”
Nesta sentença há dois pontos que imediatamente chamam a atenção. O primeiro é a referência que ele faz a “crianças puras” entre aspas, o que induz que talvez Tiago se incomode com o uso do atributo “puro”, ou não se lembre que todos nós, incluindo ele, um dia compartilhamos um estado de pureza. O segundo ponto se refere à plausibilidade da hipótese de que homem e mulher são construções sociais e históricas (?) [o que seria isso? EEgraved+ uma hipótese necessária? Intuitiva, consistente?…]. Iniciarei com a segunda questão e deixarei a primeira para o fim de meu texto.
Quando se enuncia que
“homem” e “mulher” são construções sociais e históricas e não papéis naturalmente seguidos por quem nasce com um pênis ou uma vagina
surge a questão de como devemos entender este enunciado que está sendo posto? Seria um axioma? Seria um princípio experimentalmente verificável? Ou seria uma mera opinião de alguns que se auto-rotulam como estudiosos do gênero?
A questão é pertinente, pois se o enunciado estiver sendo posto como um axioma então ele só faz sentido para os que o tomam dogmaticamente como verdade. Se o enunciado estiver sendo posto como um princípio experimentalmente verificável, então onde estão os experimentos que inquestionavelmente comprovam a eficácia do princípio de modo que qualquer um, e de forma independente e nas mesmas condições, ao aplicar este princípio conclua a mesma coisa? Se o enunciado estiver sendo posto como uma mera opinião então ele ocupa o espaço de uma mera ideia que reflete uma crença, mas, sendo uma crença, então qualquer um pode afirmar a sua, inclusive a de que o ser humano tem alma e que Deus existe. Ora, o que levaria então Tiago a defender que se fale as crianças (nas escolas públicas, por exemplo) dessas crenças de que ser homem ou mulher são construções sociais e históricas, e que não se possa falar as crianças que elas tem um corpo e uma alma, e que Deus existe? Seria a crença do Tiago expressa no seu enunciado superior ao que a fé revela?
Há outro problema sério nesta proposta do Tiago que se refere a razoabilidade de sua implementação, pois só devemos ensinar algo a crianças explicando, ainda que intuitivamente, os princípios que determinam o que vai ser ensinado, e faz-se de modo a explorar as características do mundo infantil cujo interesse é centrado em brincadeiras infantis. Em conformidade com isso, há uma conjunção de dois princípios que devem ser seguidos ao se ensinar crianças:
(1) o conceito deve ser posto tão naturalmente quanto se possa ao mundo infantil.
(2) o conceito deve remeter tanto quanto se possa ao domínio abstrato ou concreto onde ele encontra sua exata expressão e aplicabilidade.
Darei um exemplo concreto. Quando uma criança se inicia na matemática a primeira operação que aprende é a de somar números inteiros positivos e, intuitivamente, esses números são representados por objetos que elas conseguem contar e brincar. O conceito que se deseja ensinar, a soma de inteiros positivos, é posto de forma intuitiva e é naturalmente compreendido pelas crianças ao ver que se uma tem duas figurinhas e recebe mais três de seu amigo, ela no fim acaba por ter cinco figurinhas. Temos aqui respeitado o princípio (1). Agora, o fato da criança perceber um aumento no número das figurinhas que possuía é o que a conduz a apreensão do abstrato conceito da operação de soma. Temos aqui respeitado o princípio (2). Vejamos então como poderíamos falar de forma natural às crianças que ser homem ou mulher é uma “construção social e histórica” (?), e de que modo isso as levariam a entender que ser homem ou mulher é apenas uma escolha e não algo biologicamente herdado. Ora, a criança logo cedo observa outras mães com uma barriga pronunciada e aprendem naturalmente que ela mesmo veio do ventre de alguém que foi sua mãe. Esse ponto já introduz uma diferenciação da condição mãe/pai e, por conseqEuumld+ência, da condição mulher/homem. Assim, é dado naturalmente a criança esta percepção biológica da diferenciação entre mulher/homem. Deve-se notar que a apreensão desta diferença pode ser feita sem o recurso que Tiago defende de se falar de pênis e vaginas as crianças, pois essa é uma descoberta posterior, afinal, um menino ou menina compreende a distinção entre homem e mulher pelo que observa do mecanismo biológico de onde todas as crianças se originam. Assim, por esta ótica, teoricamente um menino/menina poderia sustentar esta diferenciação mulher/homem mesmo se achasse que meninas/meninos tem pênis/vagina. Neste nível, a criança poderia mesmo indagar que algumas têm pênis e outras vaginas, mas não seria este o elemento central que sustentaria a diferença mulher/homem, a menos que estejamos obstinados a fazer isso, e com que objetivos. Ora, o ponto absurdo na proposta do Tiago é que ele deseja falar de pênis e vagina para as crianças sem antes se perguntar se isto seria um tópico de interesse para as crianças. Por que afinal há tanta fixação de alguns em falar as crianças na questão de dois órgãos, pênis e vagina, quando há inúmeros outros órgãos e, mais ainda, inúmeros outros atributos do ser humano que não são corpóreos? Por exemplo, alma, consciência, memória, inteligência, vontade, etc., por que não haveríamos de falar disso as crianças? Afinal, por que tanta obsessão para falar as crianças de pênis e vagina quando há também tantas outras coisas para lhes falar ? Assim, havendo tantas outras dimensões do fenômeno humano seria essa exagerada insistência na diferenciação pênis/vagina algo natural ? Mas, ainda que pudesse ser natural, de modo a termos respeitado o princípio (1), como isso se conjugaria com o domínio abstrato que enuncia que ser homem ou mulher é algo construído social e historicamente (seja lá o que se entenda por isso)? Ou seja, certamente o princípio (2) estaria comprometido. Insistir nisso seria análogo a termos a pretensão de ensinar as crianças o conceito de soma de inteiros positivos ensinando-as primeiro a somar números reais, vistos como pontos de uma reta, para daí extrair o conceito de soma de inteiros positivos como um caso particular, ou seja, é algo inteiramente sem sentido e absurdo, pois se basearia numa abstração supérflua que as crianças não conseguiriam entender.
Continuando seu refinado raciocínio, Tiago afirma que
Podemos discutir com eles, por exemplo, porque no período colonial no Brasil (e alhures) os padres pregavam que as mulheres não deveriam mostrar os ombros ou os tornozelos para não servirem, assim, de “instrumento ao Demônio”. Seria uma discussão inatual?
Eu me perguntaria outra coisa: Seria relevante? E digo isto porque não precisamos ir tão longe ao tempo do Brasil colonial, já que, não faz muito tempo, o beato Frei Damião, no seu conservadorismo e zelo pelo povo que ele amava e servia, admoestava a práticas ainda mais árduas do que essas. No entanto, Frei Damião é amado pelo povo, o que indica que talvez tal pregação não cause nenhum dano a quem a escuta. Mas, o que dizer da performance de militantes do movimento LGBT que vilipendiaram imagens e símbolos cristãos na Última parada gay em São Paulo, ou que fizeram sexo grupal em espaço público sem se preocupar se estariam invadindo a sensibilidade de pessoas que passavam por ali e que vêem a sexualidade como algo menos trivializado que não deve servir a um mero exibicionismo? E o que dizer dos eventos lamentáveis ocorridos durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, quando alguns ativistas introduziram em público imagens religiosas em seu ânus com o intuito de ofender gratuitamente os peregrinos que ali estavam? Diante disso, não valeria mais a pena ensinar as crianças a não repetirem tais comportamentos a fim de evitar que se tornem cristofóbicas?
Tiago também menciona que
Podemos também discutir com as crianças quais eram (ou são) as ideias e a moral que sustentaram (ou sustentam) sociedades nas quais muitos homens e muitas mulheres morreram, viveram em conflito com os outros e consigo mesmos e tiveram sua identidade social violada por não se encaixarem em determinados padrões nas relações de gênero e não estamos falando apenas de sexo, mas de atitudes “transgressoras” na forma de falar, de vestir, de trabalhar e, também, nas suas opções sexuais.
Mas, qual será a “base moral” a ser adotada? Será que Tiago também consideraria como exemplo de atitudes transgressoras a situação vivida pelos primeiros cristãos de Roma e de como estas comunidades, então incipientes, se afastaram da permissividade moral de seus conterrâneos (como instava São Paulo em algumas de suas cartas) e foram perseguidos por defenderem a fé que abraçaram? Será que Tiago contaria essa heróica resistência dos primeiros cristãos as crianças, ou se deteria em outras histórias e enfoques? Há, contudo, uma enorme contradição em tudo o que Tiago colocou sobre a forma “transgressora” de se vestir, de se trabalhar e das opções sexuais, pois eu vi unicamente pontos que se limitam a escolha pessoal do indivíduo, ou seja, ele se limitou ao domínio do privado, do particular, do individual. Mas, sendo a escola pública de domínio público qual interesse ela teria em abordar assuntos da esfera privada? E é aqui que entendemos o uso do termo atitudes transgressoras, pois o que realmente existe é uma intenção de que a escola fomente tal atitude transgressora nas pessoas. Mas, o que fazer se eu não me vejo como transgressor? Estou excluído, deixo de ter voz, passo a ser um inimigo declarado dos transgressores por não querer ser um transgressor? Ora, agindo assim e indo contra a dinâmica transgressora eu também não deixo de ser um transgressor e, portanto, exijo que a minha condição transgressora de ser um não-transgressor seja igualmente contemplada na escola, negar-me tal possibilidade se constitui preconceito. Vê então Tiago, sua proposta é irreal, pois a sua implementação requer que ao lado das atitudes transgressoras sejam também contempladas atitudes conservadoras. Assim, se o gênero é transgressor e, por isso, deve ser ensinado nas escolas, temos que a base moral do cristianismo também é transgressora e deveria ser da mesma forma ensinada nas escolas públicas. Certamente que dadas iguais chances para ambas seria interessante ver, após alguns anos, qual delas se mostraria mais capaz de agregar pessoas.
Tiago finaliza seu comentário afirmando que
Essas “crianças puras” absorvem desde muito cedo os preconceitos da sociedade, nada mais relevante que esses preconceitos possam ser confrontados desde os primeiros anos de vida escolar, o que não garante que elas não sejam preconceituosas no futuro, mas ao menos abre um espaço de reflexão. Podemos ensinar para as crianças que sentimentos como a repulsa, o ódio, o medo da “homossexualidade” serviram de base para excluir, constranger, violentar e matar pessoas. O que faz a percepção de que um homem pode viver com outro homem e criarem juntos um filho, uma mulher com outra mulher, uma mulher e dois homens e assim por diante… ser menos “pura” do que o fato de um homem poder amar uma mulher? é uma questão que pode ser discutida com as crianças, ouvindo-as e questionando-as.
Muito incomum este argumento do Tiago, pois há variados tipos de preconceitos motivados e dirigidos contra a raça, ou contra a condição social, ou contra a opção sexual, ou contra a religião, ou contra os nascituros, etc.. Por que haveríamos de ensinar de forma seletiva as crianças sobre certos tipos de preconceitos deixando de ensiná-las sobre todos os tipos de preconceitos? Ironicamente, poucos não percebem que defender esta seletividade também guarda um resquício de preconceito.
Identificado então que a seletividade na escolha de que tipo de preconceito deve ser mostrado as crianças também não deixa de ser um preconceito, alguns ainda poderiam insistir que o simples fato de haver uma segmentação da sociedade em grupos minoritários é uma indicação de preconceito. Ora, a condição de ser minoritário não caracterizaria, a priori, preconceito. Concretamente, poderíamos afirmar que há preconceito pelo simples fato do número de homossexuais num certo lugar ser menor do que aqueles que se identificam como heterossexuais? Imaginemos então uma situação onde há uma minoria que se declara religiosa num país que é majoritariamente ateu. Seria isso um argumento para se introduzir alguma forma de ensino religioso nas escolas afim de se evitar um futuro preconceito contra a religião por parte dessas crianças quando se tornarem adultas? Não me parece que isso seja uma hipótese sequer aceitável, então, o que nos levaria a aceitar, por exemplo, a adoção da ideologia de gênero entre as crianças?
Tiago finaliza seu discurso meio contrariado afirmando
Espero que a Mirela (para quem eu de fato escrevo este comentário) que comentou a “opinião” do Marcelo Carvalho, não tome a “academia” por uma pessoa que usa um veículo de tamanha representatividade para expor impropérios que estão longe de ser de sua autoria, mas são apenas repetições das pregações de Eduardo Cunha, Malafaia e tantos outros que se aproveitam da ignorância (que nada tem a ver com escolaridade) de pessoas que são incapazes de perceber a diferença entre sexualidade e sensualidade, entre libido e identidade de gênero, entre respeito/reconhecimento e “estímulo ao desejo”.
Contrariamente ao que Tiago afirma, desconheço o que Eduardo Cunha, o pastor Malafaia e tantas outras pessoas pensam especificamente sobre a ideologia de gênero, de modo que não sei dizer em que ponto há convergência de nossas ideias. Contudo, se há similaridades entre o que tantas pessoas distintas expõem isso assinala algo relevante que indicaria um problema com a consistência do que se entende por ideologia de gênero. Sim, e o ponto é que se falar de gênero envolver falar de desejo, sexualidade, sensualidade, libido, estímulo ao desejo (há mais algum conceito na lista, Tiago?) então a ideologia de gênero torna-se não apenas incompatível com a condição da pureza das crianças (por introduzir elementos estranhos ao mundo infantil), mas também expõe as crianças a toda uma problemática típica do mundo adulto e que advêm do exercício e da confluência de tudo isso que foi mencionado – sexualidade, sensualidade, libido, “estímulo ao desejo”etc. – que se manifesta de uma forma complexa que por vezes traz efeitos indesejados como dÚvidas, angÚstias, dor, rejeição etc.. Ora, estaríamos mesmos dispostos a introduzir tal problemática para as crianças e correr o risco de vê-las passar pelos mesmos efeitos adversos que causam nos adultos somente pela nossa obstinação em invadir seu mundo infantil e erradicar tão cedo quanto se possa a pureza das crianças?
Volto aqui então à primeira questão, que se referia ao que seria esta pureza da infância, e que parece causar desconforto em tantas pessoas É certo que seria uma pretensão minha tentar definir algo que somente as crianças experimentam, e, por isso, elas é que deveriam nos responder. Contudo, exatamente por serem puras (e aqui não me contradigo, pois identifico o atributo, mas falta definir a “substância” de onde emana o atributo) e não conhecerem tantas coisas, elas não tem os instrumentos adequados para dizer o que seria a sua pureza. Afim de responder isso, poderia então elaborar sobre duas passagens das escrituras que nos dão uma indicação. A primeira, que delimita o que seria a pureza, se encontra em Mateus 15, 19-20:
“Pois do coração saem pensamentos malvados, assassinatos, adultérios, fornicação, roubos, perjÚrios, blasfêmias. Isso sim contamina o homem”
E uma segunda passagem, que associa tal condição as crianças, nós vemos um pouco mais adiante em Mateus 19, 14-15:
“Deixai as crianças e não as impeçais de se aproximarem de mim, pois o reino de Deus pertence aos que são como elas.”
A combinação destas duas passagens deixa claro que se o Reino pertence aos que são como crianças é porque elas têm uma característica Única, digamos, a sua pureza, que as tornam naturalmente incluídas. A natureza do que seria esta característica é então aquilo que não as contamina, como descrito na primeira passagem. Assim, tudo fica esclarecido sobre o que consiste ser essa “pureza” das crianças aos que, movidos pela fé, reconhecem Aquele que falou isso como tendo a condição de verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Aos que não tem fé, ainda assim poderiam ao menos contemplar o que é dito sob a luz da razão, mas, como causa um tremendo mal-estar para muitos em nosso tempo falar de Deus, é certo que isso não adiantaria muito.
Outra alternativa é indicada numa canção belíssima de Gonzaguinha “O que é, o que é?” onde alguém pergunta, “O que é a vida?”, e após várias elaborações:
Ela é maravilha ou é sofrimento?/Ela é alegria ou lamento?/Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo,/é uma gota, é um tempo que nem dá um segundo,/Há quem fale que é um divino mistério profundo,/é o sopro do criador numa atitude repleta de amor./Você diz que é luta e prazer, /Ele diz que a vida é viver,/Ela diz que melhor é morrer, pois amada não é, e o verbo é sofrer./Eu só sei que confio na moça e na moça eu ponho a força da fé,/Somos nós que fazemos a vida /como der, ou puder, ou quiser,/Sempre desejada por mais que esteja errada,/Ninguém quer a morte, só saúde e sorte,/E a pergunta roda, e a cabeça agita./
Surge então a resposta:
Fico com a pureza das respostas das crianças:
é a vida! é bonita e é bonita!
é a vida! é bonita e é bonita!
Há algo sublime que flui dessas belas colocações e que mostra que talvez Gonzaguinha tenha decifrado o que seria a pureza das crianças, já que para ele só elas conseguiram dar uma resposta a questão: “A vida é a vida e é bonita”. Infelizmente, Gonzaguinha já não mais vive e não podemos perguntá-lo o que seria essa pureza.
A Única possibilidade que nos resta é então observar as crianças e assumir como um axioma que a pureza é aquilo que de forma natural somente a criança tem, e assim para termos uma resposta do que seria isso que só elas têm devemos nos lembrar de como éramos naquela fase e descobrir o que perdemos, daí vem a resposta. Que sequer tenhamos uma vaga ideia de um tempo talvez não tão distante em nossas vidas, e que por isso estejamos incapacitados de realizar esta reflexão, apenas indica o quanto nós nos tornamos degenerados no que somos hoje.
*Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática