A terceirização no Brasil

“Vejo como algo que para a classe trabalhadora tem o significado, guardadas as diferenças do tempo histórico, ao retorno da ‘escravidão’. A terceirização completa, total, que é o sentido essencial deste projeto é uma tragédia para classe trabalhadora brasileira, ao invés de regulamentar 12 milhões de trabalhadores como os defensores do projeto estão falando, eles vão criar as condições para precarizar e desregulamentar as condições de trabalho de mais de 40 milhões de trabalhadores, ao contrário do que os defensores deste projeto de lei afirmam, é a lei da selva no mercado de trabalho.” (Cf. Ricardo Antunes, sociólogo da Unicamp em entrevista à Revista Fórum, de 13 de abril de 2015).

1. Introdução

Pela atual legislação, a terceirização só pode ser adotada para funções acessórias, como serviço de limpeza e vigilância, embora fraudes abundem no mercado. Dos 48 milhões de trabalhadores com emprego formal no Brasil, estima-se que 25% atuem em empresas prestadoras de serviço subcontratadas por outras. [1] O PL 4330 poderia regular melhor a situação de ao menos 12 milhões de brasileiros que atuem nessa modalidade. Restou aprovado um texto que libera as terceirizações mesmo para atividades-fim e abre a porta para os outros 36 milhões serem convertidos em subcontratados. (Idem).

No Brasil, os terceirizados confundem-se com o precariado. O precariado designa a massa de trabalhadores sem direitos civis, sociais e econômicos assegurados, com tendência a assumir vagas temporárias (Idem, ibidem). Um dos percursores da elaboração do novo conceito é o economista inglês Guy Standing da Universidade de Cambridge, professor de Desenvolvimento na Escola de Estudos Orientais e Africanos, que há tempos alerta para o fenômeno da emergência do precariado, uma nova classe trabalhadora em formação, caracterizada pela trajetória da perda de direitos que os reduz à condição de suplicante, em um mundo marcado pela “flexibilização” das relações trabalhistas.

Segundo Standing, o precariado cresce no Brasil há alguns anos e acredita que a nova legislação [terceirização] vai acelerar esse processo, o que pode levar à piora na desigualdade no mercado de trabalho e intensificar a insegurança social e econômica. O sociólogo Ruy Braga, professor da USP e autor do livro “A política do Precariado”, afirma que ampliação da exploração do trabalho precarizado encontrou seu limite. Por esse motivo, os setores empresariais avançam contra os direitos trabalhistas (Idem, p. 32).

Para Braga, “eles [os empresários] não conseguem mais ter ganhos de antes, mas não querem investir em tecnologia e ganhos de produtividade” e “solução defendida …é aumentar a terceirização para explorar o precariado na base da pancada”. Para Germano Siqueira, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, “na verdade, os empresários estão dando um tiro no pé, [pois] querem reduzir custos a curto prazo, mas podem colher uma gigantesca retração do mercado de consumo doméstico no futuro”.

Embora os industriais sustentem que a medida possa reduzir custos para empresas sem afetar os direitos dos empregados, a matemática do patronato não parece fazer sentido: como pode sair mais barata a contratação de mão de obra ao incluir um intermediário que visa lucro? Alguém pagará por isso, e esse alguém é o trabalhador. (Cf. Carlos Eduardo de Azevedo Lima, presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, ibidem, Carta Capital, de 06/05/15).

2. A invisibilidade e informalidade do trabalhador

A autorização de trabalho terceirizado em qualquer atividade, seja nas auxiliares não vinculadas aos objetivos centrais da empresa (atividade meio) seja nas atividades relativas ao próprio objetivo da empresa (atividade fim) estabelece duas classes de trabalhadores. (Cf. Por Silvana Abramo, 01/04/15). [2] Ela acaba com a estrutura de representação sindical dos trabalhadores, debilitando as entidades que lutam por melhores condições de trabalho, uma vez que não haverá mais trabalhadores metalÚrgicos, ou comerciários, mas simplesmente, “prestadores de serviços”. (Idem).

Isso porque a contratação de empregados e funcionários terceirizados enfraquece os sindicatos, ao retirar dos trabalhadores a sua unidade, a sua capacidade de mobilização e a sua própria consciência de classe. (Cf.Guilherme Guimarães Feliciano, 01/04/15). [3] Afinal, trabalhadores nas metalÚrgicas já não serão metalÚrgicos, assim como trabalhadores em bancos já não serão bancáriosd+ tornar-se-ão, paulatinamente, trabalhadores em empresas de locação de mão-de-obra. (Idem). Ter-se-á a formação de uma espécie de shopping center fabril, onde o objeto principal de comércio é o próprio ser humano. (Cf. Jorge Luiz Souto Maior, 05 de abril de 2015).[4]

O projeto vem preconizar que terceirização “é técnica moderna de administração do trabalho”, mas, de fato, representa uma estratégia de destruição da classe trabalhadora, de inviabilização do antagonismo de classe, servindo ao aumento da exploração do trabalhador, que se vê reduzido à condição de coisa invisível, com relação à qual, segundo a trama engendrada, toda perversidade está perdoada. (Cf. Jorge Luiz Souto Maior, 05 de abril de 2015).

Ou seja, a primeira consequência brutal é a diminuição do salário, aumento no tempo de trabalho, um terceiro ponto, o aumento nos acidentes, e uma quarta consequência é aumentar a divisão da classe trabalhadora, de modo a dificultar a organização sindical. Porque, é evidente que se você tem faixas de trabalhadores, tem sido mais difícil para os sindicatos organizarem os trabalhadores terceirizados. (Cf. Ricardo Antunes, 13 de abril de 2015).[5]

O trabalhador passa a ser um trabalhador invisível. A ocorrência de 30 empresas subcontratadas (terceirizadas) num Único canteiro de obras é bastante comum em terceirização ligada ao trabalho manual (Cf. Carta Capital, de 06 de maio de 2015, p. 22). Segundo o procurador do trabalho Ronaldo Lira, “a farra das tercerizações leva a situações surreais, como a existência de mais de 30 empresas subcontratadas num Único canteiro.” As grandes empreiteiras só mantêm os engenheiros e alguns encarregados. (Idem).

3. Legislação burlada

Tem a burla muito maior da legislação social protetora do trabalho, há muitos trabalhadores que entraram na Justiça do Trabalho, e é uma minoria, porque os terceirizados nem possuem sindicatos para os representarem na maioria das vezes. (Cf.Ricardo Antunes, 13 de abril de 2015). [6] E muitas vezes, quando eles entram na Justiça do Trabalho, a empresa terceirizada já fechou, e ele não tem nem a quem reivindicar. Muitas vezes é um fechamento [da empresa] aparente, porque a empresa fecha sua razão social para não endividar-se e abre outra com outra razão social e continua a burla. Então, no seu sentido mais profundo é este.(Idem).

Os calotes no pagamento de trabalhadores também são recorrentes. O Grupo Schahin entrou recentemente com um pedido de recuperação judicial para seu braço de engenharia, dispensou funcionários, deixando para trás um enorme passivo trabalhista. Sem receber o pagamento da rescisão, os trabalhadores queixam-se de não poder sequer procurar por novos empregos. A Schahin diz não ter como formalizar a rescisão por conta do pedido de recuperação (dívidas de 6.5 bilhões de reais levaram a empresa a esvaziar suas atividades em diversos serviços). Alega depender de autorização judicial.[7] A Vale virou alvo de uma investigação por manter trabalhadores terceirizados em condições análogas à escravidão. Além disso, programas de incentivo à produção, com acréscimo no valor do vale-alimentação e sorteios de aparelhos de televisão e motos, induziam os motoristas a trabalhar muito além do horário previsto no contrato (motoristas trabalhando por quase 24 horas), com mais de 2,7 mil ocorrências de jornadas de trabalho acima do previsto pela CLT.[8]

Para o mundo do trabalho, a terceirização significa, em síntese, que nós caminhamos para ter o conjunto da classe trabalhadora brasileira, desprovida de direitos fora do marco da regulação e sujeito a uma superexploração do trabalho ainda maior do que ela vem sofrendo nas últimas décadas. (Cf. Ricardo Antunes, 13 de abril de 2015). E, não bastasse, representa violação direta ou oblíqua a diversas convenções internacionais das quais o Brasil é parte, como, p.ex., as Convenções 98 e 151 da OIT, que tratam da proteção contra atos antissindicais e da sindicalização no serviço público. (Por Guilherme Guimarães Feliciano, 01/04/15).[9]

No período de 1999 a 2000, a companhia baiana de eletricidade, a COELBA (Companhia de Eletricidade da Bahia), registrou a morte de cinco empregados diretos e de 62 terceirizados. Enquanto na COELBA houve uma média de um acidente fatal para cada grupo de 555, 4 empregados, nas terceirizadas essa estatística foi de um acidente fatal para cada grupo de 210 trabalhadores, o que significa uma diferença superior a 400%. [10] Os terceirizados do setor elétrico trabalham mais e recebem menos. Por vezes, a jornada chega a 14 horas por dia, pois os contratos incluem cláusulas de produtividade. Além disso, esses funcionários são submetidos a uma atividade extremamente perigosa sem a capacitação necessária. [11]

Se o projeto da terceirização votado na Câmara for transformado em lei como está, deverá ser questionado judicialmente pelos magistrados da Justiça do Trabalho. Hoje, quase 70% dos processos trabalhistas envolvem terceirização e 80% dos acidentes de trabalho envolvem terceirizados. “Já temos uma demanda muito alta envolvendo o tema e isso aumentará muito mais, já que vão diminuir as relações de emprego e aumentar os terceirizados”, afirma o juiz do trabalho Fábio Ribeiro da Rocha (Justiça do Trabalho de SP). [12]

Conclusão: Não a terceirização

A autorização de contratações para a atividade principal não colocará um fim às discussões judiciais sobre o assunto, pois a base de interpretação será sempre a CLT. O maior problema continuará a ser a precarização com a diferença salarial entre os terceirizados e contratados diretos. Será muito difícil um trabalhador terceirizado exercer a atividade principal da empresa e não receber qualquer orientação direta da companhia tomadora de serviços. [13]

Outro ponto questionável é o projeto de lei dizer que parcela dos empregados poderão ser terceirizados sem indicar o que isso representa em termos percentuais. Essa interpretação será subjetiva e a justiça do Trabalho em uma eventual ação do Ministério PÚblico do trabalho poderá entender que naquele caso existiria terceirização excessiva e que precariza as condições de trabalho.[14]

Em síntese, a aprovação da lei que autoriza a terceirização da atividade principal das empresas não porá fim a um dos maiores problemas enfrentados hoje pelas companhias: o grande número de ações trabalhistas contra a prática. Isso porque permanece a possibilidade de interpretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pela justiça trabalhista e também por conta do próprio texto da lei 4.330/04, parcialmente aprovada na Câmara.

*Itamar Aguiar
Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC


[1]Cf. Carta Capital, 06 de maio de 2005, p.28.

[2]Cf.Silvana Abramo, 01/04/15.

Fonte:http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/01/por-que-dizemos-nao-ao-pl-4330/#8685816990374099).

[3]Cf.Guilherme Guimarães Feliciano. Publicado em 01/04/2015.

Fonte:http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/01/por-que-dizemos-nao-ao-pl-4330/#8685816990374099).

[4]Cf. Jorge Luiz Souto Maior, 05 de abril de 2015.

Fonte:http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/01/por-que-dizemos-nao-ao-pl-4330/#8685816990374099).

[5]Cf. Ricardo Antunes, 13 de abril de 2015. Terceirização é a escravidão do século 21.

Fonte: http://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/geral/ricardo-antunes/. Acesso: 06/05/13.

[6]Cf. Ricardo Antunes, 13 de abril de 2015. Terceirização é a escravidão do século 21.

Fonte: http://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/geral/ricardo-antunes/. Acesso: 06/05/13.

[7]Cf. Carta Capital, de 06 de maio de 2015, Ano XXI 848, p. 22.

[8]Cf. Carta Capital, op. Cit., p. 23.

[9]Cf. Guilherme Guimarães Feliciano, 01/04/15. Terceirização para todos, bom para quem?

Fonte:http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/01/por-que-dizemos-nao-ao-pl-4330/#8685816990374099).

[10]Cf. Carta Capital, de 06 de maio de 2015, de acordo com a declaração da juíza Andrea Presas Rocha, p. 21.

[11]Cf. Carta Capital, Op. Cit., 2015, p. 21, segundo declaração do procurador do Ministério do Trabalho e atual chefe do Ministério PÚblico do Trabalho na Bahia, Alberto Balazeiro.

[12]Cf. Jornal Valor, de 10 de abril de 2015, que traz a entrevista com Fábio Ribeiro da Rocha, Caderno Brasil, p. A2.

[13]Cf. Jornal Valor, op. Cit., p. A2, já que o texto deixa claro que não pode existir subordinação do empregado terceirizado ao tomador do serviço, sob o risco de ficar caracterizado o vínculo empregatício. Isso significa que o trabalhador terceirizado não poderá receber ordens diretas, cumprir metas e orientações do tomador.

[14]Cf. Jornal Valor, op. Cit., que traz a declaração, mas sem citar a fonte, idem, p. A2.