Em recente entrevista para o jornal Diário Catarinense, 09-04-2015, o filósofo e novo ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, apresentou algumas de suas idéias que, infelizmente, foram pouco discutidas até agora. Entre estas idéias está a questão ética da privatização do diploma do graduado em universidade pública. Pretende o novo ministro iniciar a discussão sobre a prestação de serviço social pelos alunos ou diplomados pelas universidades públicas.
Antes de discutir a validade de prestação de serviço social, quero discutir uma questão anterior ao que o ministro colocou como a privatização do diploma, qual seja: a privatização da vaga pública na universidade. A privatização caracteriza-se (i) pela preocupação apenas com a internalização de benefícios da condição de aluno e pela desconsideração quanto a necessidade de retorno de benefícios de sua formação à sociedade, (ii) a extrapolação de demandas individuais para se apropriar de direitos que pertencem ao público e (iii) desprezo a deveres frente a vaga em universidade pública, principalmente quanto ao desempenho acadêmico. O ministro ao se referir a privatização do diploma, e, no meu caso, também a privatização da vaga pública, trata apenas da primeira característica. No entanto, as demais características são igualmente nefastas e merecem um debate sobre ética, ao qual não tenho monopólio mas quero contribuir. Tal privatização não atinge a todo corpo discente, o problema está em ser proteção utilizada contra o mau desempenho acadêmico e sua generalização.
Há uma visão ideológica de que as diretrizes na universidade pública em uma sociedade democrática devem ser decididas igualitariamente pelo seu público interno, com igual peso para professores, técnicos-administrativos e alunos. Afinal todos que fazem parte da comunidade universitária devem ter votação e decisão em igualdade de condições. Entende-se, nesta visão, que a universidade pública deve ser gerida por seu público interno e as decisões, para serem democráticas, devem contar com representação universal e igualitária. Princípios de democracia e república são manipulados e transformados para que a universidade pública seja propriedade de sua comunidade interna e que todas as decisões sejam por consulta, discussão ou votação universal e igualitária desta comunidade, que é restrita frente o público.
A universidade pública é uma instituição estatal com interesse público e deve servir a este interesse de forma eficiente, como a sociedade democrática espera. A sociedade democrática é também moderna e suas instituições não são geridas em assembléias de toda a população, mas sim por representantes de seu interesse público. Estes representantes devem ser, de um lado, competentes para perseguir o objetivo público e, de outro lado, devem ter responsabilidades e deveres. No caso da universidade, por seu interesse público estar relacionado à criação, organização e difusão do conhecimento, os mais capacitados são os professores. A transferência de responsabilidade em uma sociedade democrática de passar a gestão da universidade de toda a população para um grupo restrito, no caso os professores, está na legitimação do argumento moderno de que eles detêm maior conhecimento. Portanto, a universidade não é propriedade de todo público interno que soberanamente, sem controle e satisfação à sociedade, deve decidir igualitariamente entre seus membros sobre o seu destino. Há poucos argumentos em estender as decisões à comunidade interna sobre o interesse público da universidade. Se, de um lado, utiliza-se o argumento de ser uma comunidade mais ampla do que a dos professores, falta o argumento moderno do conhecimento. De outro lado, a comunidade interna também é restrita, e sem argumento justificador, frente a população. Neste caso, o que se tem é apropriação privado de uma demanda pública, sem argumento legitimador. Um argumento pode ser representar uma pequena parcela do público e aprender a participar de decisões colegiadas, mas para aprender deve ser minoria sem responsabilidade, por isto o peso dos professores de 70% nas decisões.
Bom lembrar que cabe também aos professores, com autonomia e responsabilidade, não somente perseguir o objetivo público mas também prestar contas a sociedade. Sem dÚvida, esta missão é de difícil definição de diretrizes e de avaliação de resultados, nem os professores são semi-deuses, mas isto não significa renúncia em perseguí-lo e transferência de responsabilidade. Responsabilidade que se estende desde administração eficiente dos recursos públicos e respeito a legislação até a concessão de diploma e aprovação nas disciplinas aos alunos que demonstram mérito acadêmico. Aprovar um aluno por adesão ou submissão a ideologia, e não por mérito, é tão irresponsável quanto a malversação de dinheiro público ou receber propina.
Paralelo, e como forma de reforço, a esta ideologia que retira virtude da universidade, há a idéia de que o igualitarismo na gestão universitária vai ser o caminho mais rápido e seguro para as transformações verdadeiramente desejadas pela sociedade, que não é ouvida, mas mais do que isto é representada por alunos iluminados pelo e para o interesse público. O aluno que consegue vaga, por mérito, sem dÚvida, ao ser aprovado e classificado no vestibular, passa por uma rápida e ilusória transformação na universidade, alimentado pela ideologia do igualitarismo e democratismo. O aluno, sem considerar a controvérsia sobre a etimologia da palavra, transforma-se não somente em estudante, pois é esperado que estude, mas em ser imediatamente iluminado, consciente e defensor do interesse público. Sua juventude é associada com rebeldia e instrumento contra o conservadorismo dos professores. Nesta visão, aluno-estudante é proprietário de uma vaga na universidade pública e agente de transformação em direção a resolução dos reais problemas da sociedade. Este é um reforço para que o aluno seja participante do processo decisório da vida universitária em igual peso aos professores: atribuir o papel de agente da transformação em direção a salvação da sociedade. Sem dÚvida, a privatização da vaga pública está encoberta por uma ideologia grandiosa, embora falaciosa.
O que a ideologia mascara é um duplo processo, de um lado, o fenômeno da privatização da universidade pelos participantes da comunidade universitária, de outro lado, a coletivização da decisão por um igualitarismo dentro desta comunidade que desvaloriza o princípio do mérito.
Assistimos, uns revoltados, outros passivamente, a várias situações ou ameaças em que a democracia dos proprietários da vaga na universidade pública decidem questões cruciais para a vida universitária. Temos pressões para voto universal na eleição para reitor, plebiscito para o gerenciamento do hospital universitário, assembléia geral para decisão sobre empresa jÚnior, como ocorrido no CFH, pedido de plebiscito para decisão de qual currículo aprovar, formulado por comissão de professores ou por enquete entre alunos, como no curso de Ciências Econômicas.
Há, de um lado, um movimento para transformar demandas particulares, respaldada por ideologia igualitarista, em direito de participar em igualdade com os professores nas discussões e decisões da vida universitária. De outro lado, não há nenhum movimento para prestar contas do desempenho acadêmico. Mesmo quando se levanta a questão da avaliação, refere-se a necessidade de alunos avaliarem os professores, afinal problema de desempenho é devido ao conservadorismo e didática ultrapassada dos professores. Não se aborda avaliação do desempenho de professores e alunos conjuntamente quando há notórios problemas revelados pelas estatísticas. Aliás, o Setic-UFSC produz várias estatísticas sobre desempenho mas não são analisadas por não interessar os protegidos pela ideologia.
Portanto, a terceira característica de privatização da vaga pública da universidade está na resistência e desprezo por controle público do desempenho acadêmico. A responsabilidade que os alunos-estudantes devem ter não é de gerir a universidade, mas de estudar e ter um bom desempenho acadêmico. A reprovação esporádica é uma situação que pode ocorrer na vida acadêmica, o que pode ser normal quando se exige qualidade e, por vezes, acontece tropeços em alcançar o nível estabelecido pelos professores. No entanto, a reprovação sistemática em várias disciplinas, a reprovação por freqEuumld+ência insuficiente, a extensão demasiada de tempo para conclusão de curso e o abandono da matrícula são ocorrências que exigem explicação e justificativa. Por ora, a justificativa é nenhuma pois a vaga pública está privatizada e não deve nenhuma satisfação à sociedade.
A defesa da universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada não deve ser utilizada apenas por grupos que utilizam como jargão para proteção de interesses particulares e corporativos, mas também para questionar a privatização da vaga publica na universidade e para defender o papel da universidade em perseguir interesse público em sociedade democrática.
*Wagner Leal Arienti
Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC