Roger: “Você e o seu partido apoiam o socialismo, que é uma ideologia que já matou no mundo inteiro mais de 80 milhões de pessoas, pelo menos. Apesar disso, tem muito jovem, principalmente, …. e tem muitos velhos também, babões, que acham uma coisa meio romântica o socialismo e tal, e não praticam o socialismo, … mas são os chamados da esquerda caviar. Você não se incomoda em ser associada a qualquer uma dessas duas ideologias?”
Luciana Genro: “Eu me incomodo Roger, porque eu não me identifico com nenhuma delas. Eu não me identifico com essas experiências que se chamavam de socialistas, mas que não eram socialismo, porque a ideia do socialismo é uma ideia generosa de igualdade, de liberdade, … não esses regimes ditatoriais que ocorreram e que mataram, muito embora o capitalismo também mate. Muito se fala dos assassinatos cometidos pelos regimes stalinistas, na verdade não-socialistas, e pouco se fala das mortes provocadas pelo capitalismo, seja nas guerras, seja na fome, seja no desemprego, então eu acho que em nenhum lugar do mundo nós temos um modelo de sociedade a seguir. Nós precisamos construir o nosso próprio modelo, com democracia, com liberdade, e por isso, inclusive, é que a gente botou no nosso partido não só o nome de partido socialista, mas partido socialismo e liberdade para se diferenciar dessas experiências autoritárias aí que nós não compartilhamos.”
Roger: “Mas isso é meio utópico, numa guerra pelo menos os dois lados estão matando, enfim, é uma consequência,… eu acho que o socialismo ou o comunismo matou sim, e eu acho que ele não funciona sem ser de forma ditatorial, pelo menos é o que a gente tem visto na prática.”
Luciana Genro: “é que na prática a gente não viu nenhum regime socialista realmente acontecer, esses regimes foram distorções do socialismo, pois a ideia do socialismo é a ideia generosa da liberdade e da igualdade, então esses não servem de modelo.”
Este diálogo entre Roger, vocalista e guitarrista do Ultraje a Rigor, e Luciana Genro, candidata a presidência pelo PSOL, contrapõe duas visões do que seria o tal do socialismo. Por um lado, o socialismo é visto por Roger como uma ideologia que matou mais de 80 milhões de pessoasd+ por outro lado, é visto por Luciana Genro como uma ideia “generosa” de liberdade e igualdade. O ponto de divergência não é a negação de que historicamente houve (e ainda persiste) regimes totalitários identificados nas ditaduras comunistas, como foi posto por Roger, mas sim que essas experiências não podem ser tomadas como socialistas, conforme assinala Luciana Genro. A questão pode ser pensada então como uma dualidade envolvendo o “socialismo exclusivamente como ideia” (o que chamamos a “ideia do socialismo”), e o “socialismo como prática”, que por sua vez nos leva a outra dualidade: “o socialismo como dogma”, ou “o socialismo como ciência”.
Analisando as manifestações de pessoas que se dizem socialistas percebe-se nitidamente que não há uma delimitação clara do significado do termo socialismo. Alguns acadêmicos das ditas “ciências” humanas bem que se esforçam tentando criar uma “teoria” que dê conta do fenômeno do socialismo, contudo, o máximo que conseguem é demarcar filosoficamente o termo. A tentativa é de todo inócua, pois não sendo a filosofia uma ciência nada do que ela trata pode ser classificado como teórico (no sentido científico do termo), já que não é validado pela experimentação. Assim, se não conseguimos definir sem ambiguidades o significado do termo socialismo, resta então identificá-lo com alguma experiência histórica. Surgem como alternativas o modelo da comunidade New Harmony estabelecida em Indiana por Robert Owen, ou as várias ditaduras comunistas iniciadas com a revolução russa, ou até mesmo a socialdemocracia de alguns países europeus. Notemos que quem afirma que o socialismo nunca foi realizado exclui como experiência socialista não somente as ditaduras comunistas, mas também tudo o mais que comumente (e erroneamente) alguns identificam como experiência socialista (por exemplo, a socialdemocracia que é associada a políticas do chamado “well-fare state” de alguns países ocidentais de regimes capitalistas). Feita esta ressalva, voltemos à discussão do parágrafo anterior.
Luciana Genro admite que o socialismo “generoso” nunca chegou a ser implementado e, assim, não pode ser identificado com a experiência histórica dos regimes totalitários comunistas que mataram mais de 100 milhões de pessoas. Decorre dessa interpretação que se realmente há um socialismo “generoso”, até o momento ele existe exclusivamente como ideia, não como prática. Ora, temos aqui dois problemas correlatos. Primeiro, se a versão da Luciana Genro do socialismo nunca foi implementada surge a dÚvida se esse socialismo “generoso” é realmente realizável. Segundo, todos os artífices das experiências dos regimes totalitários comunistas se inspiraram no marxismo, a mesma fonte inspiradora da Luciana Genro, logo, o que garante que a implementação desse socialismo “generoso” não irá resultar na mesma experiência histórica dos regimes totalitários comunistas?
O dilema da Luciana Genro e de tantos outros se resume a afirmar que a ideia do socialismo nunca foi implementada, e aqui nós somos levados a outra dualidade que opõe o socialismo como dogma, ao socialismo como ciência (isto é, constituindo uma teoria experimentalmente verificável). Mas, no que se constitui então essa ideia do socialismo? A pergunta natural que se segue é: “Estamos aqui diante de um princípio dogmático ou de algo que tem a intenção de ser tomado como científico?”
Se o socialismo for tomado como dogma então qualquer um está justificado em afirmar que as “políticas ditatoriais” dos ditos regimes comunistas não podem ser tomadas como representando o dogma socialista. Contudo, alguém que delimite o nazismo como dogma pode usar o mesmo argumento, afirmando que o que Hitler erigiu não pode ser tomado como um legítimo representante do nazismo.
Agora, se o socialismo como ideia tem alguma pretensão de ser científico, e assim de determinar uma ação política por quem quer que seja, então, assumindo um caráter científico, a ideia do socialismo deve assumir o que se apresenta como experiência histórica do socialismo, sendo o critério que categoriza a experimentação baseado no que é afirmado como princípio e intenções. Este critério evidencia a fragilidade do argumento de que as ditaduras comunistas não constituem a experiência da ideia do socialismo. Com efeito, é um fato que essas ditaduras comunistas foram inspiradas pela mesma fonte, o marxismo, e foram conduzidas por revolucionários que também se achavam movidos pelas mais “humanas e justas” intenções (provavelmente os nazistas também pensavam da mesma forma, do contrário, não teriam conseguido seduzir a maioria do povo alemão). Ou seja, se estamos diante de algo que se põe como científico, como justificar que os mesmos princípios e as mesmas intenções afirmadas por um e outro agentes possam gerar uma experiência definitivamente destruidora num caso, e generosa no outro?
Diante dessa fragilidade, vemos que dissociar as experiências históricas dos regimes comunistas do que seria uma suposta e imaginada prática da ideia de um socialismo que nunca ocorreu é negar o próprio caráter científico do socialismo, reforçando assim seu caráter dogmático, que por sua vez invalida usá-lo como ação política.
Mas, voltando a Luciana Genro e seu partido, o PSOL, como compreender que ela diga que seu partido defende um socialismo generoso, diferente daquelas experiências dos regimes ditatoriais comunistas que mataram milhões de seres humanos, quando sabemos que um dos ideólogos do PSOL, o italiano Achille Lollo, era militante de grupos terroristas comunistas que defendiam exatamente esse regime ditatorial comunista que mata pessoas? [http://pt.wikipedia.org/wiki/Achille_Lollo]
*Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática da UFSC