“Observados hoje, com a perspectiva do tempo, os tumultuosos acontecimentos políticos do final do ano de 1963, podem ser condenados e interpretados à luz da realidade e lógica históricas. Verificou-se então, no Brasil, o mesmo processo de superação dos mecanismos da democracia representativa, que a história contemporânea tem atravessado invariavelmente nas suas crises e que exprime, no fundo, o fracasso de todas as tentativas de substituição dos valores humanos, por outros valores, na colocação dos fins do Estado. […] o processo foi a supressão da democracia representativa e a emergência de um processo caótico de decisões e ações de um poder instável. […] Com a liquidação virtual dos partidos, deputados radicais se uniram a toda sorte de organismos espúrios: frentes, pactos de unidade sindical, confederações, ligas e associações, até mesmo de sargentos das Forças Armadas e outras siglas de incoerente agitação e inócuas exigências da esquerda: ações democratas, ligas de campanha da mulher, e outras ligas. O Estado de Direito era ou ignorado pela insuficiência presunçosa ou renegado pelo maquiavelismo voraz. Os direitos humanos esquecidos, os insubstituíveis valores da Democracia escarnecidos ou negados pela ferocidade competitiva, ou por aquela omissão cÚmplice, cuja consciência amargurou. A toleima, a inciência, a audácia e a irresponsabilidade davam as mãos em duas filas paralelas à esquerda e à direita, enquanto o País atravessava uma tremenda crise de governo, que não era senão de autoridade responsável e de nível intelectual.”
O texto citado é de autoria do jurista Afonso Arinos e se aplica muito bem a nossa conjuntura atual, mas com algumas ressalvas, pois a crise de hoje não é tanto de autoridade (certamente que é de nível intelectual!), mas sim de falta de valores éticos e morais É de se notar a referência temporal que a citação faz a “acontecimentos políticos do final do ano de 1963”, de onde se conclui que o que ocorreu no ano seguinte foi um desdobramento natural face a uma grave crise que aniquilava a ordem democrática. A afinidade com nosso tempo se percebe claramente no ataque a democracia representativa promovida tanto pelo governo atual quanto por vários outros partidos (incluindo aqueles de tendência autoritária que intencionam fazer do Brasil uma ditadura comunista), bem como por grupos diversos da sociedade civil, cada um motivado por uma agenda específica. Há, de fato, um grave problema no nosso sistema político, contudo, ele não é um problema intrínseco a democracia representativa, mas sim da qualidade com que essa democracia representativa é exercida pela nossa classe política. Com efeito, quando o partido do governo tem algumas de suas lideranças envolvidas em casos escabrosos de corrupção e, mesmo condenados, continuam mantendo sua área de influência no partido, verifica-se a falência total do sistema. A ética política cede então espaço a política rasteira que atualiza uma profecia feita pelo general Olympio Mourão Filho:
“Ponha-se na presidência qualquer medíocre, louco ou semi-analfabeto e vinte e quatro horas depois a horda de aduladores estará a sua volta, brandindo o elogio como arma, convencendo-o de que é um gênio político e um grande homem, de que tudo quanto faz está certo. Em pouco tempo transforma-se um ignorante em sábio, um louco em gênio equilibrado, um primário em estadista. E um homem nessa posição, empunhando nas mãos as rédeas de um poder praticamente sem limites, embriagado pela bajulação, transforma-se num monstro perigoso. Enquanto esse monstro é dirigido e explorado apenas pela lisonja, bajulado pela corte, a Nação sofre prejuízos de monta, é verdade, mas apenas danos materiais em maioria e morais alguns. Quando, porém, sua roda é formada ou dominada por um bando refece de demônios, nesse momento a Nação corre os mais sérios perigos.”
Deixo ao leitor a tarefa de avaliar se esta profecia já ocorreu ou se tem sido repetidamente atualizada, ou se aplica a alguém em particular. As lições deixadas pelas citações de Afonso Arinos e Olympio Mourão Filho são claras, e os perigos que a Nação corre são antevistos a seguir.
1. Plebiscitos proposto pelo governo como forma de contornar uma suposta “crise política” fomentada pelo próprio governo, que se mostra um notório mau-exemplo, se assemelha a golpismo. Como evidência desse mau-exemplo é suficiente lembrar a compra de votos de parlamentares para aprovação de projetos do governo no congresso (o chamado “mensalão”), a utilização política de empresas estatais em negociatas (é o que parece indicar os desdobramentos das investigações sobre a Petrobrás), o uso de organizações (sindicatos e movimentos sociais) pelo governo como forma de pressão.
O mais perverso é que mesmo quando tais esquemas de corrupção (originadas no governo) não dão certo, o governo acaba por tirar proveito da situação criando artificialmente a necessidade de reforma política, algo que lhe beneficia diretamente.
2. Ao pretender instalar comitês populares que teriam funções consultivas junto à administração federal corre-se o risco de esvaziar a atividade parlamentar (legitimada pelo voto popular) em prol de comitês de composição dÚbia, o que favorece todo tipo de aparelhamento. Basta ver o caso das centrais sindicais que se transformaram em grandes conglomerados controlados por partidos políticos. O governo tem a sua central sindical, a CUT, assim como os partidos que defendem a ditadura comunista também tem a sua. E, neste esquema, que voz teria o trabalhador inserido nessas mega-centrais sindicais controladas por grupos e ideologias diversas? Um exemplo concreto disso nós vimos aqui mesmo na UFSC, quando a APUFSC era seção sindical do ANDES, que por sua vez era um mero apêndice da Conlutas. Tomando a APUFSC como exemplo, ficou evidente que o dispositivo espúrio de dominação dos sindicatos é exercido pelo modelo “assembleísta”, que permite a manipulação de assembléias por uma minoria militante e cujo objetivo é afastar o trabalhador da tomada de decisões do sindicato (o mesmo modelo assembleísta permite que representações estudantis sejam dominadas por organizações comunistas). Na primeira oportunidade concreta que surgiu, os professores em peso corrigiram o problema de seu sindicato reformando seu regimento e dando uma sentença de morte ao assembleísmo. Contudo, uma mudança local não provoca imediatamente (nem necessariamente) uma mudança global, e os proponentes dos comitês populares sabem que estão “globalmente” seguros com o controle dos dispositivos que lhe dão o poder. Em suma, a forma de atuação dos comitês populares seguirá o mesmo padrão dos sindicatos aparelhados, onde grupos financiarão lideranças para que se dediquem integralmente a função da direção desses comitês, criando dispositivos regimentais que assegurem seu controle.
Obviamente, parece pouco provável que o projeto de reforma política do governo dê algum espaço para organizações e entidades como a igreja católica, associações profissionais (de engenheiros, médicos, reservistas das forças armadas, etc.), organizações cívicas diversas (de defesa da família, da propriedade, etc.), pois, diferente dos sindicatos, tais associações focam em aspectos mais amplos que não favorecem a dinâmica exclusiva da luta de classes (o que é a tônica da ação sindical), Único elemento que o militante marxista consegue explorar. Fica evidente que organizações e movimentos cuja ação seja alimentada por alguma forma de luta de classe (MTST, MST, etc.) terão a primazia como parte dos comitês populares.
A desconfiança transparece ainda mais quando políticos ligados a partidos que defendem ditaduras comunistas, e sem qualquer apoio popular, defendem enfaticamente os comitês populares, pois sabem ser esta a Única via para deter o poderd+ a outra via seria adotar a estratégia petista de flexibilizar o discurso, algo, pretensa e falsamente menos revolucionário, que eles não estão dispostos a fazer, do contrário, não teriam sido expulsos do próprio PT.
3. Se, no passado, João Goulart havia cogitado intervir na Guanabara para conter a oposição de Lacerda e hostilizou Minas Gerais decretando intervenção federal na companhia telefônica daquele estado, hoje vemos a mesma interferência do governo federal em assuntos dos Estados acirrando conflitos de terra, como vemos no caso da população rural de uma região da Bahia que foi expulsa de terras que há anos cultivavam por conta de uma decisão da justiça federal amparada possivelmente pela análise de órgãos da administração federal como a Funai e o Incra.
Como em 1964, estamos mais uma vez diante de um governo federal hábil em fomentar conflitos e que dispõe de uma força nacional de segurança tecnicamente com logística e treinamento para intervir nos Estadosd+ se não o faz por vontade própria é talvez um mero detalhe constitucional, algo que pode ser mudado por um plebiscito! Fica claro, então, de onde se origina o discurso de desmilitarização da Polícia Militar, pois a força policial sob controle do Estado é a Única instituição armada capaz de proteger o Estado das investidas de um governo federal amorfo e autoritário, que não hesita em apoiar movimentos subversivos que sob os mais variados pretextos agem de forma violenta causando conflitos no campo e nas cidades. Ao não dispor de sua força policial militarizada o Estado perde então a capacidade de conter o avanço desses movimentos.
Lembremos que o governador mineiro Magalhães Pinto mostrou a importância dos Estados disporem de sua própria força policial militarizada, quando disponibilizou o contingente da polícia militar de Minas Gerais ao general Mourão quando suas tropas se deslocaram para o Rio de Janeiro desencadeando a contra-revolução de 1964 (“Tinha que ser Minas!”) e subjugando assim um processo revolucionário que já estava em estágio avançado.
4. Há um elemento que alimenta a crise e que está ausente na citação de Afonso Arinos. Trata-se da composição da suprema corte. Ora, uma vez que os ministros do supremo tribunal federal não são concursados, mas sim indicados pelo executivo, isso suscita a possibilidade de uma indicação de teor político, situação corrente em alguns países, mais notadamente a Venezuela, que permitiu ao regime autoritário bolivariano amplo instrumentos de controle da sociedade, instalando, por exemplo, a censura dos meios de comunicação. Assim, em qualquer país onde os ministros da suprema corte são indicados pelo executivo corre-se o risco de um aparelhamento da própria suprema corte. No Brasil, tivemos um grande desgaste quanto a participação de alguns “novatos” no processo do “mensalão”, por exemplo, Dias Toffoli, que tendo defendido no passado o PT, deveria, por prudência, se abster de participar do julgamento, assim como a participação de dois ministros, Zavaski e Barroso, que nem participaram do processo como um todo, mas que, recém-indicados pelo executivo, participaram do julgamento dos recursos, mudando assim o curso do mesmo revertendo algumas condenações. Prefiro acreditar que por aqui tudo teve um embasamento técnico e que ainda não chegamos ao caso lamentável da Venezuela. Contudo, que mecanismo existe para evitar que um partido governando hegemonicamente por um longo período não consiga, a semelhança do que ocorreu na Venezuela, compor uma suprema corte de acordo com seus interesses?
Enfim, estas são as armadilhas que temos diante de nós É preciso reformas, mas que reformas? Se realmente desejamos pensar seriamente a questão e ser intelectualmente honestos, temos que analisar nosso passado não pelo que muitos contemporâneos e pseudo-acadêmicos afirmam, mas sim pela ótica dos documentos e relatos dos que viveram a época, já que estes documentos, servindo de base experimental para a análise, tornam-se a Única forma capaz de dar subsídios para compreender o nosso presente.
Finalizo assim com um trecho da carta redigida por Castello Branco aos oficiais contra-revolucionários, datada de 20 de março de 1964, que se constitui uma síntese de toda a conjuntura contra-revolucionária que estava prestes a eclodir. Em referência direta ao comício da Central do Brasil de 13 de março, quando se alternaram oradores (entre eles o caudilho autoritário Leonel Brizola) dando um ultimato para que o Congresso Nacional aprovasse as reformas de base, e fazendo alusão a um suposto dispositivo militar articulado pelo general Assis Brasil que João Goulart acreditava suficiente e invencível, assim escreve Castello:
“São evidentes duas ameaças: o advento de uma Constituinte como caminho para a consecução das reformas de base e o desencadeamento em maior escala de agitações generalizadas do ilegal poder do CGT.
As Forças Armadas são invocadas em apoio a tais propósitos.
Para o entendimento do assunto, há necessidade de algumas considerações preliminares.
Os meios militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender programas de governo, muito menos sua propaganda, mas para garantir os poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei.
Não estão instituídos para declararem solidariedade a este ou aquele Poder. Se lhes fosse permitida a faculdade de solidarizar-se com programas, movimentos políticos ou detentores de autos cargos, haveria, necessariamente, o direito de também se oporem a uns e a outros.
Relativamente à doutrina que admite o seu emprego como força de pressão contra um dos poderes, é lógico que também seria admissível voltá-los contra qualquer um deles.
Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos anti-democráticos. Destinam-se a garantir os poderes constitucionais e a sua coexistência.
A ambicionada constituinte é um objetivo revolucionário pela violência com o fechamento do atual Congresso e a instituição de uma ditadura. A insurreição é um recurso legítimo de um povo. Pode-se perguntar: o povo brasileiro está pedindo ditadura militar, ou civil, e constituinte? Parece que ainda não.”
*Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática da UFSC