“Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades” Nery JÚnior, Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999.
A Portaria 2343 do(a) Presidente do Conselho Universitário (Cun), Profa. Roselane Neckel, de 13 de dezembro de 2013 constituiu um Grupo de Trabalho (GT) para “construir uma proposta de revisão das normativas em torno da consulta informal à comunidade universitária para a escolha do Reitor“.
O grupo é de composição paritária e foram designados Bia Borges Ferraro e Carla de Avellar Lopes (estudantes, membros do DCE), Daniel Dambrowski e Gabriel Martins (servidores STAE), George França e Luis Carlos Cancellier de Olivo (docentes).
Aspectos legais
A comissão (ou GT), uma vez que não nada que os distinga formalmente na UFSC, foi constituída com 2 professores, 2 servidores e 2 estudantes. Aqui configura-se o que, em minha opinião (salvo juízo maior), é uma primeira irregularidade, uma vez que a constituição deste GT (ou comissão) contraria o parágrafo Único do Art. 56 da LDB de 20 de dezembro de 1996: Art. 56º. Parágrafo Único. Em qualquer caso, os docentes ocuparão setenta por cento dos assentos em cada órgão colegiado e comissão, inclusive nos que tratarem da elaboração e modificações estatutárias e regimentais, bem como da escolha de dirigentes.
Isto é, por um ato da Reitora (no uso de suas atribuições) constituiu-se uma comissão (ou GT) que não é conforme ao que estipula uma lei maior (a LDB). A razão deste parágrafo Único da LDB é garantir que qualquer proposta emanada de uma comissão do Cun, para ser apreciada pelo próprio Cun (e este é o caso) tenha a aderência de 70% do corpo docente (que é a composição do Cun).
Mas há duas outras irregularidades, ao meu ver, de maior gravidade. A Reitora, por este ato, constituiu uma comissão para construir uma proposta de revisão das normativas em torno de uma consulta informal para a escolha do Reitor. Se a consulta é informal não há como ela ser regida por uma normativa que possa ser aprovada pelo Cun. E daí não haver qualquer razão para ela ter sido constituída, significando um “ato nulo” ou, ao menos, um ato que não permite à esta comissão ter qualquer atribuição ou responsabilidade.
Por outro lado, e esta é a terceira irregularidade, a Reitora, com esta Portaria, está admitindo a possibilidade da construção de uma normativa que regulamente uma consulta “informal“. E o termo “informal” significa uma consulta regida por alguma regra que “burle” a lei 9.192 de 1995 em seu Art. 1 e inciso III. Caso contrário seria “formal” (como manda a lei). Tudo bem que uma iniciativa como esta parta das entidades de representação das categorias e dos estudantes (Apufsc, Sintufsc e DCE), como tem sido feito nos últimos 30 anos. Mas não é este o caso. Trata-se, aqui, explicitamente, de um ato formal da Reitora de uma Universidade Federal (uma portaria) apontando para uma proposta (uma saída) informal.
Universidades são autônomas, mas não soberanas. E os atos (portarias) de seus dirigentes, no uso de suas atribuições, devem ter como limite o limite destas mesmas atribuições.
Consequências
O “GT-Democracia“, como se auto intitulou o grupo de trabalho designado pela Portaria 2343, realizou 6 reuniões, a metade das quais com a presença de apenas servidores e estudantes e a outra metade com a presença de apenas 1 docente. O GT está sendo presidido por Gabriel Martins, que é um servidor com mestrado em Administração e um dos integrantes titulares do movimento “Reorganiza-UFSC” que defende o turno de 30h para os STAE. Os estudantes que participam da comissão são oriundos da chapa 1 que concorreu no ano passado para o DCE com a seguinte plataforma: i) por um protagonismo estudantil autônomo atuante dentro das esferas universitáriasd+ ii) pela ampliação das cadeiras estudantis no Conselho Universitário e demais órgãos colegiados visando uma representação paritáriad+ iii) em defesa de projetos de pesquisa-extensão populares e iv) em defesa do Hospital Universitário 100% SUS.
Como resultados dos trabalhos, o GT veiculou um texto base para discussão que é uma defesa ao “voto universal” nos processos de consulta à comunidade visando a escolha do Reitor: i) criando a figura de “cidadão universitário“d+ ii) citando o Art. 5 da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei“d+ iii) defendendo que as IFES tem liberdade para realizar uma consulta pública informal acerca dos candidatos à reitoria e iv) que é também o CUn o órgão responsável pela definição dos moldes desta consulta.
Vejamos em detalhes cada um destes itens.
“Cidadão Universitário“
Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: ter direitos civis É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Mas é um conceito que não se aplica à uma universidade, uma autarquia, uma entidade do Estado, à uma empresa ou, mesmo, à uma cooperativa. E a universidade é uma instituição altamente hierárquica. “A democracia é um sistema de governo que assegura a liberdade da nação de um país, qual seja, a liberdade do exercício da cidadania, atribuindo a eles o direito igual de votar nos representantes dos colégios legislativos e do executivo. A universidade como instituição hierárquica, cuja existência justifica-se tão somente por sua função de promover o desenvolvimento do conhecimento e sua transmissão, nada tem a ver com democracia. Ela tem muito a ver, isto sim, com meritocracia. As posições de mando e cargo devem ser ocupadas tão somente pelo mérito e capacitação para exercer a função, no contexto dos objetivos traçados e da própria função da instituição” (Colle, 2014).
“Todos são iguais perante a lei”
Homens e mulheres são iguais perante a lei (este é o Inciso I do Art.5), mas, por razões óbvias, a mulher tem direito à uma licença maternidade maior do que o homem à licença paternidade.
Por outras razões, também justificáveis (ao menos nos dias presentes), a mulher se aposenta mais cedo. O texto do “GT-Democracia” sugere tratar Mestres e Estudantes, Servidores e Mestres, Estudantes e Servidores como iguais, sendo desiguais em uma universidade ou em qualquer instituição de ensino. E tratar desiguais (homens e mulheres, mestres e estudantes,…) como “iguais” é um acinte à democracia que o tosco texto do GT, ingenuamente supõe defender. Uma violação do próprio princípio da isonomia mencionado no texto. Da mesma forma podemos tratar a questão do mérito. Méritos desiguais devem ser tratados de maneira desigual. “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades” (Nery JÚnior, 1999)
“As IFES têm liberdade para realizar uma consulta pública “informal” acerca dos candidatos à reitoria”
Não têm. Este é um outro erro do “GT-Democracia”. As Ifes não têm esta liberdade. A consulta, caso haja, é regulada pela lei 9.192 de dezembro de 1995 que estipula em seu Inciso III que: “Em caso de consulta prévia à comunidade universitária, nos termos estabelecidos pelo colegiado máximo da instituição, prevalecerão a votação uninominal e o peso de setenta por cento para a manifestação do pessoal docente em relação à das demais categorias“.
“O CUn o órgão responsável pela definição dos moldes desta consulta”
Não é e não pode ser e, muito menos, pode deliberar sobre normativas para consultas “informais” com proporções diferentes daquelas estabelecidas em lei. Qualquer normativa construída no âmbito do Conselho Universitário deve estar em acordo com a lei 9.192 de dezembro de 1995.
Aspectos substantivos (além dos legais)
A consulta informal paritária foi uma reação à Ditadura Militar. Até então o Reitor era escolhido pelo Conselho Maior da universidade. A partir da década de 80, este conselho da UFSC e de outras universidades federais (não todas) têm ignorado a lei, compondo a lista sêxtupla e, depois, a lista tríplice (a partir de 1995) em acordo com uma consulta Eacuted+informalEacuted+ paritária conduzida pelas entidades de representação da comunidade universitária (professores, servidores técnicos e administrativos e estudantes). Esta forma de ‘eleger‘ o Reitor, pois trata-se, de fato, de uma eleição (paritária) pela comunidade universitária, decorreu como reação ao período da ditadura militar e ao cerceamento à liberdade de opinião quando o Serviço Nacional de Informações (SNI) instalou-se nas reitorias das universidades federais para controlar suas ações e as deliberações de seus conselhos maiores.
Desde 1995 vigora a Lei 9.192 que explicita que, em caso de consulta à comunidade universitária para eleição do Reitor, prevalecerá o peso de setenta por cento para a manifestação do pessoal docente.
Com o objetivo de contornar esta lei e manter a paridade dos pesos, o Conselho Universitário vem terceirizando o processo de consulta para entidades representativas de setores da comunidade universitária (Sintufsc, Apufsc, DCE, APG) e denominando publicamente o processo de “consulta informal”. O fato é que as sucessivas administrações da UFSC têm optado por um comportamento omisso a respeito, talvez motivadas pela conveniência política de manter o status quo. Os professores, por sua vez, quando tardiamente esboçam alguma ação, são confrontados com o argumento da exiguidade de tempo até as eleições que se aproximam. Trinta anos após o fim da Ditadura Militar, não há razão para que este processo informal e irregular se perpetue.
A interpretação do princípio da isonomia dada pelo GT-Democracia não encontra respaldo entre juristas especializados em Direito Constitucional. Nélson Nery JÚnior (1999, página 42) procura expressar a repercussão do princípio constitucional da isonomia, no âmbito do Direito Processual Civil, da seguinte forma: “O Artigo 5º, caput, e o inciso n. I da CF de 1988 estabelecem que todos são iguais perante a lei. Relativamente ao processo civil, verificamos que os litigantes devem receber do juiz tratamento idêntico. Assim, a norma do artigo 125, n. I, do CPC, teve recepção integral em face do novo texto constitucional. Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades“.
José Afonso da Silva (1999, página 221) examina o preceito constitucional da igualdade como direito fundamental sob o prisma da função jurisdicional: “A igualdade perante o Juiz decorre, pois, da igualdade perante a lei, como garantia constitucional indissoluvelmente ligada à democracia. O princípio da igualdade jurisdicional ou perante o juiz apresenta-se, portanto, sob dois prismas: (1) como interdição ao juiz de fazer distinção entre situações iguais, ao aplicar a leid+ (2) como interdição ao legislador de editar leis que possibilitem tratamento desigual a situações iguais ou tratamento igual a situações desiguais“.
A Universidade não é uma república. No processo de escolha do Reitor em uma autarquia pública o mestre possui o mérito de ser a base intelectual da universidade (o seu ‘ corpo de governo’ nas palavras de Darcy Ribeiro), no sentido que é ele quem decide para onde deve ir a universidade em suas metas de proporcionar à sociedade brasileira os meios para dominar, produzir e difundir o conhecimento. E esta é a grande razão para que sua opinião seja privilegiada neste processo em relação à dos demais segmentos. E não só pela lei.
Referências
COLLE, Sérgio. Texto postado na lista de discussão dos professores da UFSC em 13/03/2014. 2014.
NERY JEUacuted+NIOR, Nélson. Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1999
*Paulo C. Philippi
Departamento de Engenharia Mecânica