Passada as manifestações iniciais que incorporou diversas reivindicações e relegou a questão do passe livre a um papel secundário, vemos agora o Movimento do Passe Livre (MPL) tentando ganhar fôlego na sua agenda da chamada “tarifa zero”. Devemos questionar então a razoabilidade da tarifa zero para os transportes e as implicações disso.
Há alguns mitos que precisam ser esclarecidos. Primeiro, a implantação da tarifa zero tem um custo que certamente será incluído na forma de algum tributo que todos terão que pagar. Alguns sugerem que seja incluído na cobrança do IPTU (seria legal?), mas, neste caso, ele acabaria repassado para os preços de aluguéis e, ironicamente, muito estudantes favoráveis ao passe livre vão acabar pagando a passagem de outra forma. Tentativas de fazer com que impostos incidam mais sobre os de maior renda já é algo que ocorre, afinal, o imposto (de renda, IPTU, IPVA) não é estratificado proporcionalmente de acordo com a renda ou o valor do que se tem? Será que aumentando o valor do imposto resolverá definitivamente o problema? Sugerir que o imposto seja cobrado por shoppings, empresas etc., tampouco leva em conta o impacto sobre a economia, afinal, ninguém espera que o custo não seja repassado nos produtos e serviços que todos consomem, o que cria um novo problema.
Segundo, a cidade para administrar tal sistema terá que formar uma empresa (estatal) que substituiria os empresários que hoje detém a concessão do serviço de transporte. Contudo, qual a garantia que o estado conseguirá formar quadros capacitados para administrar tal estatal e gerir de forma eficiente o sistema de transportes? Será que estamos tão satisfeitos com o sistema público de saúde e de educação a ponto de confiarmos na capacidade do estado em prover transporte público de qualidade?
Uma alternativa à estatização seria analisar a forma de concessão de modo a otimizá-la, fazendo novas licitações e evitando o monopólio do sistema por algumas poucas companhias. Havendo um controle rigoroso do custo das empresas e regras claras que limitem o lucro a patamares justos, o sistema poderá então ser revigorado. Aliás, é preciso perguntar aos simpatizantes da tarifa zero qual o problema das empresas terem lucro na exploração do sistema público? Ora, neste contexto, o que seria o lucro senão a remuneração do trabalho do empresário em administrar o sistema? Sem dÚvida, o lucro (dentro do patamar justo) não deve ser visto com exploração indevida do trabalho de terceiros, pois o mesmo empresário quando numa situação de prejuízo fica obrigado a pagar seus débitos, podendo perder todo seu patrimônio, algo que não é compartilhado pelos trabalhadores que não tem que arcar com o prejuízo da empresa, sendo penalizados unicamente pela perda do emprego. Se o MPL entende que não deve haver empresas lucrando com o sistema de transporte então não há outra alternativa que não seja a estatização e, neste caso, também não há garantia alguma que o sistema será melhor. Ou seja, o MPL tem que entender que não existe perpetuum mobile e que as coisas se movimentam a custas de uma energia que é fornecida ao sistema. No caso do sistema de concessão dos transportes atual, essa energia é fornecida pelas empresas privadas, e, mais uma vez, o lucro dessas empresas quando limitado a um patamar justo torna-se o preço do trabalho desses empresários e de sua “expertise” em administrar o sistema, algo que o estado não dá garantia alguma de conseguir realizar. Se consegue, que o estado assuma então essa função. De qualquer forma, independentemente do que pensa o MPL, quem deve decidir o tipo de sistema de transporte é a população junto aos governantes que ela mesmo elegeu, e não elementos de partidos minoritários que eventualmente possam estar se aproveitando politicamente da situação.
Imaginemo-nos hipoteticamente (e, felizmente, somente nesta situação!!) sendo um comunista. O que foi escrito no parágrafo anterior seria uma heresia. Contudo, qual a motivação que o estado tem para ser eficiente se ele detém a concessão ad infinitum do sistema? Talvez devêssemos repetir aqui uma experiência que foi usada nas escolas públicas de New York City. Lá, o governo editou uma medida conhecida por “No Child Left Behind” que permitia que companhias privadas administrassem escolas públicas que sistematicamente obtinham mal resultados nos chamados “standard tests”. Assim, os fundos destinados as escolas que não obtinham bons resultados eram então repassados a essas companhias com a condição que essas escolas por elas administradas demonstrassem progressivamente uma melhora nos indicadores de avaliação de qualidade estabelecidos. Tal medida, polêmica por submeter à gestão da educação a parâmetros empresariais, foi motivada por uma necessidade coletiva de melhorar algo que estava ruim e explicitava o fracasso do uso dos recursos públicos. Aqui, poderíamos propor o movimento inverso, com o poder público (ou uma cooperativa de motoristas e cobradores) explorando algumas linhas e demonstrando a população que é capaz de operar com uma qualidade melhor e a um custo (tarifa) não muito oneroso. A resposta da população, favorável ou não a esse serviço estatal, serviria como parâmetro para a estatização definitiva ou não do sistema como um todo.
A análise das ações do MPL acentua coisas muito estranhas que infelizmente constituem parte do caráter coletivo do povo brasileiro. Com efeito, condenamos de forma generalizada a corrupção nos diversos domínios do poder público. Contudo, não somos capazes de perceber que há coisas erradas na nossa própria vizinhança e na maneira como formamos nosso entendimento. Assim, no Brasil, as pessoas em geral julgam normal que um caminhão tombado numa estrada perto de uma região mais carente tenha sua carga levada pelos moradores, talvez por aceitarem o fato de que ser materialmente menos favorecido dá o direito de posse de carga alheia. Aqui, a pobreza assume um lado ainda mais cruel não restringindo seu efeito apenas à carência de bens materiais, mas retirando também o pouco de dignidade que essas pessoas ainda têm, afinal, não é a honestidade do pobre que dá prova da virtude na dificuldade e que, consequentemente, lhe confere uma integridade acima de qualquer outro? Eis que agora, lamentavelmente, vemos militantes e simpatizantes do MPL adicionando a psique de nosso povo algo de que devemos nos envergonhar, ao dificultar as pessoas a pagarem a passagem para força-las a pular as catracas. Temos aqui um caso moralmente mais grave que o roubo de carga de caminhão mencionado anteriormente, já que o simpatizante do MPL em seu protesto não está satisfeito apenas em não pagar a sua passagem como também impõe que outros tomem parte no ato ilícito deles, uma atitude que é uma concretização do poema “The Rime of the Ancient Mariner” de Samuel Taylor Coleridge: “His shipmates cry out against the ancient Mariner, for killing the bird of good luck. But when the fog cleared off, they justify the same, and thus make themselves accomplices in the crime” . Diferente do miserável que leva a carga do caminhão e que tem pouca capacidade de perceber a gravidade de seu ato (e que ainda pode apelar para a própria penúria de sua condição), os militantes e simpatizantes do MPL são na sua maioria estudantes universitários com plena ciência do que estão fazendo, muitos, inclusive, podendo pagar sua passagem, o que nos faz perguntar onde aprenderam a agir dessa forma?
Ora, será que chegamos a um nível de deterioração moral que nos leva a fazer gradações de roubo de modo a condenar a corrupção e roubalheira dos agentes públicos ao mesmo tempo em que justificamos e aceitamos atos ilícitos como roubo de carga e o não pagamento da passagem devida? Que sejamos honestos nas pequenas coisas para sermos honestos em grandes coisas, e lembremos que este ensinamento não se aprende nem nas universidades nem nas escolas públicas, o que nos indica que talvez algo mais essencial esteja faltando a todos nós.
Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática