Comissão da verdade?

Numa época de ceticismo, ignorância e confusão o termo verdade parece ter perdido seu sentido original, e o que se concebe hoje como verdade confunde-se com algo que tem valor apenas pessoal, onde cada um assume o que bem desejar, sem o mínimo compromisso com algo que possa ser tomado, ainda que remotamente, de forma absoluta. Este é o padrão exibido pela comissão da verdade, infectada pela ideologia e emocionalidade de seus membros. Mostrarei isso de forma concreta ao analisar o documento intitulado “Contextualização, fundamentos e razões do Golpe Civil-Militar de 1964 ” apresentada numa reunião da Comissão Nacional da Verdade em 25 de fevereiro de 2013 sob a coordenação de Rosa Maria Cardoso Cunha e tendo Heloisa Starling como pesquisadora responsável.

Neste documento lemos:

“Enfatize- se que 1964 não foi um golpe das oligarquias ou elites políticas e econômicas nacionais contra um governo trabalhista e popular, tendo como testa de ferro parcela das Forcas Armadas. Um golpe fundado na violência tradicionalmente exercitada no Brasil contra os destituídos. O projeto que gestou 1964 visava a construção de um Estado de Segurança Nacional e de Desenvolvimento Associado e Hegemônico na América Latina. A violência política utilizada pelas Forcas Armadas brasileiras buscou sua legitimidade e está associada a três casos clássicos de ação anti-insurrecional –Indochina, Argélia, Vietnã –e aos padrões norte-americanos de contra-insurgência.”

Para compreender o argumento acima, devemos inicialmente procurar o que seria o pano-de-fundo da argumentação e que revela a concepção ideológica onde ele se assenta. Isto se deduz do fim, quando o autor identifica na ação do regime uma “natureza anti-insurrecional que seguiria os padrões norte-americano de contra insurgência”. Aqui, o uso do termo insurreição não é muito esclarecedor, pois se refere a uma sublevação contra o poder estabelecido, o que pode significar muitas coisas, nada inferindo sobre a motivação de mudar radicalmente as estruturas existentes. No lugar de insurreição, o termo correto seria então “revolução” que, no contexto da época, era o instrumento de expansão do comunismo pelo mundo, financiado majoritariamente pela então ex-URSS. Assim, a ação do movimento de 1964 e do regime que imediatamente se estabeleceu foi na verdade “contra-revolucionária” e não anti-insurrecional, pois surgiu como reação a um processo revolucionário de comunização do Brasil, que se iniciou bem antes, em 1935. Obviamente, faz sentido o autor usar o termo “anti-insurreição” se deseja ocultar as claras evidências da ação subversiva (pré-revolucionária) que corroía o governo Jango e que imprimiria a análise um foco bem distinto do que foi dado pelos autores. Faz-se necessário também desmistificar alguns pontos. O termo “popular” usado para caracterizar o governo Jango se desfaz se analisarmos cuidadosamente os fatos históricos, lembrando que, contrariamente a Jânio Quadros, João Goulart nunca teve respaldo popular algum nem tampouco apresentou medidas realistas e efetivas que conferisse a seu governo um caráter popular (o fato da população ter ido em massa as ruas em comemoração a contra-revolução é bem significativo). Foi eleito vice-presidente numa eleição pouco expressiva (ver “1964: Golpe ou Contra-Golpe” de Hélio Silva) e tornou-se presidente por força da renúncia de Jânio Quadros (depois de uma curta experiência parlamentarista). A época era de tamanha insatisfação popular com inflação galopante, instabilidade social e política (por exemplo, o caudilho Brizola já tinha organizado uma milícia armada de mais de 50 mil homens e demonstrou seu autoritarismo no comício da Central do Brasil quando ameaçou fechar o congresso nacional caso ele não aprovasse as reformas de base), greves de cunho político e apoiadas pelo próprio governo, violência no campo, quebra da hierarquia militar com sucessivos motins, etc. Tudo indicava ter-se chegado ao auge das condições favoráveis à revolução, como afirma Gorender (“Combate nas Trevas”, pag. 66.). Imerso no caos, e para tentar salvar seu governo, é proposto o plano Trienal que, mal executado, se mostrou impossível de ser realizado, como reconhece o artífice do plano, Celso Furtado, em conferência “Obstacles to change in Latin America” proferida em 1965 em Londres, quando afirmara que o país não detinha as condições necessárias para que o plano fosse bem sucedido.

Retornemos ao grupo de trabalho da comissão da verdade. Do que foi exposto no parágrafo anterior, vemos que o que demonstra a emocionalidade e a inclinação ideológica dos membros da comissão é exatamente a forma escandalosa como eles fixaram o contexto base da sua argumentação, ignorando por completo a polarização revolução x contra-revolução, como se em pleno anos 60 isto não existisse e não tivesse desdobramentos políticos na vida das nações. Outra indicação da alta carga emocional dos autores nós vemos neste trecho: “ Um golpe fundado na violência tradicionalmente exercitada no Brasil contra os destituídos”. Do jeito que está posto, isso é mero cliché. Teria um sentido acadêmico se o autor ressaltasse que a ação revolucionária também constitui um ato de violência contra os destituídos, foi assim com o golpe dos bolcheviques e em todas as outras revoluções “comunistas” cujos regimes seguintes só se sustentaram a custas do terror e da repressão do Estado contra o próprio povo. Para não irmos muito longe, e nos determos ao Brasil, essa violência ficou explícita nas ações terroristas no Brasil, ocorridas no período da luta armada, que vitimou civis e militares, e que segundo Agnaldo del Nero Augusto (ver o livro “A Grande Mentira”) representou a terceira tentativa dos comunistas tomarem o poder. Tal tese é comprovada pela análise dos documentos dos vários grupos da luta armada que estão disponíveis no livro “Imagens da Revolução” de Daniel Aarão Reis, onde se atesta o caráter revolucionário desses grupos. É inconcebível, injustificável e inaceitável que a comissão não investigue essas ações terroristas, e, se não o faz, a única explicação se encontra no desejo de usar a comissão como meio de legitimar uma versão parcial e incompleta da história da nação, talvez a única verdade que eles conseguem enxergar, dado que estão imersos na emoção.

Esta comissão, se realmente deseja ser da verdade, não poderia estar nas mãos de pessoas ideologicamente inclinadas a um dos lados do conflito (ou pelo menos deveria incluir um espectro mais diverso de pessoas e pontos-de-vista), nem muito menos deveria ser financiada com dinheiro público, pois não compreende o interesse pela verdade em si, mas tão somente a “verdade seletiva” que reflete os gostos e interpretações unilaterais dos envolvidos na comissão. Se fosse financiada por um órgão privado, partido político, ou ONG não haveria problema algum, mas quando financiada com dinheiro público pago com os impostos do contribuinte ela se torna insustentável. Pior, quando instituída por um governo federal que confunde o exercício do pode executivo com assuntos de seu partido – considerado ainda infestado pelo germe do socialismo – a inclinação ideológica da comissão assume aspectos de doutrinação irresponsável a serviço do partido, um desserviço à nação e a ética administrativa.

Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática