Encaminhamos em 2011, eu e um grupo de signatários, uma representação ao Ministério Público do Estado de Santa Catarina (MPSC) contra o marco filosófico marxista implantado no currículo da escola pública estadual de Santa Catarina. Esta representação foi protocolada sob o n° 01.2011.013450-3, sendo, posteriormente, em virtude da mesma, aberto o Inquérito Civil (IC ) de n⁰ 06.2011.00008633-5.
A representação, documento amplo e abrangente, 62 páginas, analisa o currículo, destacando primeiro a aplicação do marco filosófico marxista e depois mostrando os aspectos legais que a introdução do marco filosófico fere. Termina fazendo considerações sobre que ações os signatários achavam necessárias para sanar o problema.
O IC foi conduzido pelo Promotor Daniel Paladino, que não despendeu grandes esforços em análises para arquivá-lo, afirmando, mesmo, que nem deveria ter sido instaurado. Em suas análises ateve-se, apenas, à liberdade de ensinar, liberdade de aprender e pluralismo de ideias , itens sobre os quais ouviu a Secretaria Estadual da Educação (SED ). Depois da decisão do Promotor Paladino o IC foi encaminhado ao Conselho Superior do Ministério Público que, melancolicamente, também o arquivou, o que me deixou perplexo.
Analisando, hoje, os autos, não mais me permito expressar muitos espantos. Iludimo-nos, nós os signatários, ao imaginar que a promotoria captasse nossa forma de raciocinar (óbvia), ou seja, uma vez estabelecido um marco filosófico não pode mais prevalecer o pluralismo de ideias. Ao invés a promotoria afirma que a proposta constante na internet, sendo de caráter optativo, desobriga os professores de adotá-la, sendo, portanto, lhes garantida a liberdade de ensinar. Em teoria isto até pode ser afirmado mas na prática qualquer professor que já tenha ensinado no ensino fundamental sabe que é inviável parte dos professores optar por este currículo e praticá-lo, enquanto os outros optam por praticar um segundo ou terceiro currículo. A dedução é trivial bastando considerar bibliografia, métodos, enfoques, planos de ensino comuns, etc.
Afirma o Sr Promotor: ”Em relação à ofensa aos princípios do pluralismo de ideias e da liberdade de aprender, igualmente não há qualquer ofensa, pois a proposta curricular busca fundamento nos estudos culturais e incorpora teorias multiculturais na direção do ensino e da aprendizagem, e ainda consideram o processo de formação dos estudantes da escola pública.”
Vale a pena comentar. É claro que a proposta curricular com o marco filosófico marxista, mantido até hoje , está sendo adotada por professores, que não sei precisar quantos, o que tira a liberdade de aprender dos alunos destes professores que não admitem ser doutrinados. Afirmar o contrário é mostrar desconhecimento sobre o que vem a ser um marco filosófico, aliás muito bem definido no IC pela SED, como é mostrado a baixo.
Além disto, o fato de a proposta curricular recorrer a estudos culturais e teorias multiculturais, mantendo o marco filosófico , não garante liberdade de aprender nenhuma. Pelo contrário, a teoria pedagógica adotada, que se inclui nas correntes sociocríticas, segundo Jose Carlos Libâneo, é também neomarxista e acentua os fatores sociais e culturais na construção do conhecimento, lidando com temas como cultura, ideologia, currículo oculto, linguagem, poder, multiculturalismo. Tende a escapar de currículos formais. Na esfera de sistemas de ensino, leva as políticas de integração de minorias sociais, étnicas e culturais ao processo de escolarização, opondo-se à definição de currículos nacionais. A meta final, segundo o mesmo Libâneo, é transformar o aprendizado em parte do processo de mudança social. A teoria histórico-cultural, apoiada em Vygotsky e seguidores vai no mesmo sentido.
A cereja do bolo ainda estava por vir quando o Sr Promotor declara que: “Ademais, analisar profundamente o conteúdo da Proposta Curricular, questionando os pensamentos filosóficos ou as doutrinas utilizadas, seria adentrar no mérito da Proposta, o qual cabe à Secretaria Estadual de Educação analisar por sua conveniência e oportunidade, desde que seja dentro dos limites constitucionais e legais.”
Este era o cerne de nossa petição e que nem sequer foi abordado. Acusávamos a existência de um marco filosófico, que dizíamos ilegal e a Promotoria não quer entrar no mérito da questão? Espera-se que a SED, autora da ilegalidade, se declare infratora? Considero o caso até curioso. Como a Promotoria vai saber se a filosofia adotada segue as normas constitucionais sem aprofundar-se em análises? Na verdade não eram necessários grandes esforços de análise, pois tudo está expresso na nossa representação e na resposta da SED aos quesitos formulados pela promotoria.
Não concordo, também, com o MPSC de que cabe à secretaria de um governo agir à sua conveniência e oportunidade para escolher filosofias e doutrinas a utilizar. Isto cabe à sociedade, através de seus órgãos de representação, em síntese, cabe ao ESTADO definir. É aqui bem adequada a sentença: “Quando é o governo, e não a Constituição, que garante (ou nega) os direitos, a nação é de súditos e não de cidadãos”.
O que destacar da resposta da SED ao MPSC?
A SED através do documento “INFORMAÇAO N⁰ 274/11” presta informações ao MPSC inerentes à nossa representação, afirmando que no período 1991-2005 produziu 6 documentos curriculares. Sem entrar em pesquisas notei que faltam na relação os documentos “Implementação do Ensino Religioso ” e “Temas Multidisciplinares ”!
Afirma este órgão estadual que “esses documentos contem orientações, propostas e diretrizes curriculares de cunho teórico e metodológico para a prática pedagógica em sala de aula, pautadas em tendências pedagógicas progressistas. Os documentos expressam o marco filosófico e pedagógico vinculado a cada momento histórico, social e educacional, pautados na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Na década de 90 do século XX, a ênfase recaia no materialismo histórico dialético, objetivando fundamentar a ampliação do acesso das camadas menos favorecidas à escola pública e sua permanência por meio do ensino de qualidade, visando à mobilidade social dos estudantes. Ao caráter técnico do processo educativo, acrescentava-se o caráter sociopolítico na busca do saber comum e universal e na ressignificação da história e do saber curricular .
Nos documentos curriculares produzidos a partir do ano 2000, busca-se, também, fundamento nos estudos culturais, incorporando, dessa maneira, as teorias multiculturalistas na direção do ensino e da aprendizagem que leve em consideração os processos históricos e culturais dos diferentes estudantes da escola pública .” ….
Termina dizendo que a denúncia de irregularidades no currículo quanto ao pluralismo de ideias e ao cumprimento dos preceitos constitucionais no que se refere à liberdade de ensinar e de aprender não procede.
Embora, acima, já tenha comentado indiretamente o conteúdo da resposta da SED ao MPSC, quero dizer algumas palavras mais sobre o marco filosófico. Olhem com atenção a parte acima sublinhada. É a definição de marco filosófico. A história recebe um novo significado e todo o saber curricular recebe um banho ideológico . Isto vai da matemática até a cultura indígena. Como o professor não tem espaço e nem preparo para dar ao aluno as diversas opções ideológicas (vários marcos filosóficos concomitantes) para não ferir a liberdade do estudante, então a única forma de conduzir o ensino é manter-se neutro, tanto quanto possível. O currículo pode abrir os espaços necessários para os debates ideológicos e filosóficos.
A justificativa da SED em introduzir o marxismo (materialismo histórico dialético) na década de 90 do século XX é hilariante. O muro de Berlim começou a ser derrubado em 9 de novembro de 1989. Na hora que metade do mundo abandona os regimes marxistas a SED introduz o marxismo no currículo da escola pública de Santa Catarina? Sabendo que o marxismo não é método didático, então o que justifica que ele seja o eixo central de um currículo? Objetivos escusos? Má fé? Justificá-lo como útil à “ampliação do acesso das camadas menos favorecidas à escola e sua permanência por meio do ensino de qualidade …” é brincadeira. É o marxismo que trás qualidade ao ensino? Quem está disposto a defender esta ideia?
A introdução do marco filosófico no currículo da escola pública de SC feriu de morte o livre pensar dos filhos desta terra. Rosa Luxemburgo, comunista polonesa do século 20, dizia: “Liberdade somente para os partidários do governo não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de modo diferente .”
A apreciação do IC por parte do Conselho Superior do Ministério Público foi meramente formal e burocrática. De novidade dá para destacar apenas um pequeno trecho do relato, qual seja: “Constatação, outrossim, de um viés político/filosófico da representação e do recurso , mormente quando se pode verificar que a grade curricular vergastada, ao contrário, do articulado, permite a inclusão e difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática.” (Art. 27, I, da lei 9.394/96).
Desta fração do relato do Conselho dá para vislumbrar que o relator, em vez de concentrar-se na análise da existência do marco filosófico no currículo, centrou-se em nossa forma de pensar, qualificando-a como um viés político-filosófico. É uma forma interessante de fugir ao problema. Na sequencia, defendendo a possibilidade de possíveis difusões de valores previstos numa lei, parece querer mostrar que há possibilidade de pluralidade de ideias no currículo. Ingenuidade. O currículo é um texto expressando o que vai e deve ser feito e não o que poderia. Lá está implantado um marco filosófico e o resto vira balela.
A introdução do marco filosófico marxista é uma deslavada apropriação do espaço e recursos públicos para fins particulares e de grupos de interesse. Estranhamente não gera nenhuma reação da comunidade universitária que recentemente debateu, com destaque, imaginem só, uma “missazinha”. Se em vez da doutrina marxista fosse colocada a doutrina social da Igreja Católica, dando um banho cristão em todas as crianças, seria eu o único a clamar e mostrar a vilania de tal ato? Quem agora se cala ainda vai falar mal da inquisição? Imagino o que Lenin não faria com esta turma, pois, quando assumiu o poder na Rússia, passou a considerar crime doutrinar menores de 18 anos .
Por fim, uma curiosidade adicional. Fiz quatro tentativas de divulgar algo sobre este currículo no Diário Catarinense e em todas não tive sucesso. Por que? Eu esperava mais, eu era assinante deste diário.
Renato A Rabuske
*Professor Aposentado