Pseudo-argumentação

O professor Rampinelli usa uma argumentação fragmentada e difícil de seguir ao traçar um perfil sombrio da Apufsc, que só ele consegue ver, dando a entender que há na universidade uma conspiração, classificada por ele ora de conservadora, ora de direita, ora de fascista. Por brevidade, me limitarei à análise do termo fascismo. No que se segue, escreverei “ciência” toda vez que o termo se referir a algo que esteja dissociado de um método experimental preciso e sem ambiguidades, por exemplo, os métodos utilizados na Física.

Certamente, o prof. Rampinelli não sabe o significado do termo fascismo, o que não é culpa dele, afinal, ninguém sabe.  Ainda hoje, há uma discussão interminável e estéril tentando definir o que seria fascismo, basta ver os mais variados livros sobre o assunto (por exemplo, os de Robert Paxton, James Gregor, etc.), cada um analisando o fenômeno a sua maneira (há algo de científico nisso?).  Assim, professor Rampinelli comete um erro de argumentação ao não explicar o sentido como emprega o termo à Apufsc, algo com que, na condição de historiador, deveria ter mais cuidado. Aliás, para quem é de fora, às vezes tem-se a impressão de que as “ciências” humanas tem a pretensão de discorrer sobre muitas coisas sem, contudo, se esforçar em definir seus conceitos de forma inteligível.

A fim de não incorrer no mesmo erro de argumentação e sem ter a pretensão de definir o que seja fascismo, me ocuparei unicamente em identificar uma linha comum àquilo que, possivelmente, o termo se refere e que me permita discriminar com segurança o que certamente não pode ser classificado como fascismo. O fato é que, se admitirmos como representante do fascismo o regime liderado por Mussolini na Itália e aceitarmos incluir o nazismo como uma espécie de fascismo, surge então uma inevitável conexão entre fascismo e socialismo quanto à gênese e princípios, afinal, Mussolini foi socialista, e o nazismo – deduz-se  das palavras de Goebbels – tinha sua força motriz no socialismo (ver notícia publicada no The New York Times de 28 de Novembro de 1925 sob o título “HITLERITE RIOT IN BERLIN”, onde Goebbels afirmava que “Lenin era um grande líder, atrás apenas de Hitler, e que a diferença entre o comunismo e a doutrina de Hitler seria muito pequena”).  Ou seja, fascismo poderia ser classificado como qualquer movimento surgido dentro do socialismo, compartilhando práticas comuns (por exemplo, o forte discurso redentorista dirigido aos trabalhadores, o terror estatal, etc.) e que, historicamente, se materializou (ou tem força para se materializar) como força política opositora ao próprio socialismo. Assim, o fascismo não se origina da negação dos princípios socialistas, mas sim da afirmação diferenciada e difusa do mesmo corpo de princípios e ideias que compartilham dos socialistas, e que ainda não estão consolidadas (e em relação a qual os “cientistas” sociais ainda não chegaram a um consenso). Fascismo pode então ser pensado como uma variação do socialismo que ainda não tomou uma forma definida. As experiências fascistas passadas na Itália e Alemanha deixam clara a gênese socialista do fascismo, contudo, somente uma investigação mais aprofundada das razões que levaram Goebbels a reconhecer a estreita relação entre a doutrina nazista e o socialismo poderá auxiliar na compreensão exata do que seja o fascismo. A forma como entendo o fascismo explica então um ponto comum a todas as práticas fasci-socialistas que se manifestam no uso da violência e do terror estatal e no empreendimento de uma reengenharia-social voltada para a doutrinação do povo, algo elaborado eficazmente pelo facínora genocida Lenin que dizia: “dai-me uma educação cem por cento pública, e eu vos darei um socialismo irresistível”, e posto em prática pelos tiranos stalinistas, maoistas, khmeristas, fidelistas, fascistas, nazistas etc.

Prof. Rampinelli, ao misturar fascismo, conservadorismo, etc., consegue a proeza de afirmar algo do tipo: “Todos os vícios que a “nova Apufsc” criticava da “velha Apufsc”, não apenas os reproduz, como vai, perigosamente, mais longe: busca liquidar com a auto-organização da categoria impondo a hetero-organização, outra das características do trabalhador fascista.”  Pensando fascismo da forma como expus, não vejo como caracterizar qualquer prática da Apufsc como fascista, muito pelo contrário, admitindo o Andes como fiel porta-voz dos princípios socialistas dentro do movimento sindical (e sua adesão a Conlutas comprova isso) a ruptura da Apufsc com o Andes se deu exatamente pelo não compartilhamento dos mesmos princípios ideológicos que norteiam a Andes.  Logo, por este aspecto, não há como caracterizar a Apufsc de fascista. Por outro lado, a forma democrática com que a Apufsc conduz suas deliberações, através de uma consulta ampla e não excludente, se distingue das manobras e do autoritarismo que os fasci-socialistas utilizam para se manter no poder. Em relação à “hetero-organização” mencionada pelo prof. Rampinelli, vemos aqui o mesmo erro de argumentação, pois o sentido do termo pode significar múltiplas coisas. De concreto, é possível afirmar apenas que a uma hetero-organização se opõe uma homo-organização.

Em sua essência, organizações de trabalhadores estratificadas segundo um ofício comum não podem ser tomadas como um legado do fascismo, mas sim como um fenômeno natural inerente à própria natureza do trabalho, que é diferenciado. No máximo, seria um mero fato ocasional que tenham (possivelmente) se verificado durante o fascismo italiano. De comum, tanto a hetero-organização quanto a homo-organização concebidas pelos fasci-socialistas visam inserir os trabalhadores a um Estado totalitário (mesmo tendo o fascismo italiano produzido a “Carta del Lavoro”, considerada  um marco importante para o trabalho, tendo inspirado no Brasil as leis trabalhistas de Vargas). Compreende-se a oposição dos socialistas a hetero-organização por ela se opor à homo-organização, considerada pelos socialistas como único meio de criar nos trabalhadores um sentido de “classe” que, como já vimos, é estranho à própria natureza do trabalho, que tende a ser diferenciada. Assim, é inapropriado afirmar que a Apufsc impõe uma hetero-organização à categoria, como afirma o prof. Rampinelli, afinal, somos todos professores, a menos que o prof. Rampinelli se refira a uma estratificação segundo “saberes” que incluiria “cientistas” sociais, cientistas, matemáticos, médicos etc., o que não faria o menor sentido, pois, mesmo dentro de saberes há sub-saberes que precisariam ser diferenciados. Em um caso limite, isso nos levaria a uma multiplicidade de organizações constituídas por poucos elementos, o que por sua vez negaria o próprio conceito de associação (contextualizando, para meus colegas das humanas entenderem, e esquecendo o que aprendemos em conjuntos:  O que diferiria uma associação com um elemento do próprio elemento?) .

Não sei o conteúdo do que é dito nas várias listas de discussões que existem na UFSC, pois já não participo delas, contudo, acredito que não haja uma indisposição específica de alguns em relação à “ciências” humanas como afirma o prof. Rampinelli. O que parece haver é uma desaprovação a um certo tipo de profissional que está presente em vários centros. Com efeito, há na universidade dois tipos de elementos. Um que exerce de forma dedicada a sua profissão e que tenta converter seu esforço em um conhecimento puro, teórico ou aplicado. Nesses, a busca do livre conhecimento e a sua divulgação é um ideal que os definem como docentes e que se cristaliza na formação acadêmica dos estudantes sob sua responsabilidade. Cumprido esse requerimento da formação dos estudantes devolve-se a sociedade o investimento que ela fez, sendo assim indiferente se o conhecimento é motivado por uma demanda da sociedade, ou da necessidade de corporações (parte integrante da sociedade onde muitos exercem seu trabalho de forma honesta e digna), ou por mero purismo. Há, contudo,  elementos na universidade que abraçaram o ideal antiacademicista-popularista assim se tornando militantes encarregados da construção do projeto ditatorial de marxização da sociedade. Esses não medem esforços para subverter a própria essência da universidade, descaracterizando seu sentido universal expresso na livre produção do conhecimento, que é substituído pela propagação do marxismo, disfarçado nas suas mais variadas formas. A utilização da greve (e não a greve em si) como forma de oposição a governos que julgam ter traído os princípios socialistas é um ponto de unidade entre eles. Natural, pois, que, tendo abdicado do ideal do livre conhecimento, sejam avessos a quaisquer cobranças da sociedade sobre o que eles fazem dentro da tríade ensino, pesquisa e extensão. Para se proteger, criam clichês onde se sentem mais vulneráveis, por isso, reduzem a produção do conhecimento à categoria de “produtivismo mercadológico”. Em relação ao ensino, são pessoas com uma visão estreita de sua missão docente. Ávidos por uma greve, pouco se importam com os efeitos da paralização na formação dos estudantes, talvez porque consideram aquilo que ensinam algo superficial e sem importância podendo ser compensado com um “trabalhinho” de fim de curso, ou condensado  em algumas poucas aulas. Ora, mas se for, fica então a pergunta se estes profissionais são realmente necessários, afinal, o estudante talvez obtivesse uma melhor formação sendo autodidata.

Faço aqui uma última observação. Prof. Rampinelli cita um tal de Terry Eagleton que acredita que “[…] tampouco haverá uma universidade no sentido pleno do termo quando as humanidades existem isoladamente das demais disciplinas.” Será mesmo? Para ser bem concreto, existe algo nas “ciências” humanas que fará uma pessoa entender melhor Relatividade, ou Topologia Algébrica? Se nada existe, então, a utilidade das “ciências” humanas para pessoas que desejam ser relativistas ou topologistas só seria justificada por uma possível necessidade de uma formação intelectual adicional. Aceitando tal necessidade, surgem outros problemas. Primeiro, não há nada nas “ciências” humanas que um cidadão comum e suficientemente motivado não consiga aprender sozinho, logo, tudo aquilo que é ensinado pelos departamentos de “ciências” humanas deixam de ser imprescindíveis pelo recurso do autodidatismo. Segundo, em muitas universidades as “ciências” humanas estão a serviço de uma ideologia dominante, assim, qualquer um que deseje desenvolver um pensamento não subordinado a essa ideologia não encontrará nada de útil na universidade. Terceiro, acredito que as pessoas só se tornam melhores pela adesão a valores universais centrados na caridade, e não pela formação intelectual obtida nas “ciências” humanas. Com efeito, basta ver que o Leninismo ensinado e admirado por muitos em nossas universidades forma a base teórica de um revolucionarismo violento, responsável por genocídios que já contabilizam mais de 100 milhões de seres humanos mundo afora.  Só por esse exemplo, vemos que uma “ciência” humana desequilibrada e a serviço de uma ideologia é capaz de criar mecanismos opressivos historicamente jamais vistos.

Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática