Esta pergunta fazia um professor de filosofia, em uma roda de bar, depois de um belo e disputado jogo do Guará Futebol Clube, equipe formada por docentes e estudantes da UFSC que adentra os gramados da Astel todas as sextas-feiras, quando o sol começa a se pôr. Afinal, os estragos da poluição na camada de ozônio e os compromissos com as aulas não permitem outro horário. Por sinal, no embate futebolístico do dia 11/05, o CFH, que fora desafiado pelo restante da universidade, sem dó nem piedade aplicou-lhe um 8 a 2, a la Santos. Os nossos neymares foram os estudantes de filosofia. Pois bem, ninguém da mesa respondeu à indagação do mestre, não sei se por conta da animação ou da profundidade da mesma. Aliás, o próprio perguntador já desestimulava qualquer resposta, pois, ato seguido ao questionamento, emendava que é muito difícil decifrar a esfinge.
Na verdade, a globalização neoliberal não apenas se apropriou de termos e conceitos próprios da esquerda, como também os subverteu, dando-lhes um novo significado. Categorias como imperialismo, socialismo, dependência, revolução e poder popular foram substituídas por países centrais, social-democracia, interdependência, reformismo e governabilidade. E o fez não apenas para confundir, mas muito mais para reafirmar que a humanidade busca apenas resultados econômicos e não ideológicos.
Para o filósofo equatoriano Bolívar Echeverría, o dogma de fé que está no núcleo da religião dos modernos reside no modo capitalista de produzir e reproduzir a riqueza social, sendo este, na visão deles, o único caminho possível para uma vida civilizada moderna. Qualquer modernidade que não fosse capitalista não apenas seria um absurdo, como também nos “levaria inevitavelmente a um retrocesso e a uma barbárie”.
No entanto, o que se vê no mundo de hoje é uma crise no sistema capitalista que, para alguns, já se tornou depressão. Isso sim pode nos levar à barbárie. Que o diga a Europa civilizada que, segundo o sociólogo francês Alain Touraine, está à beira do precipício há três anos. Aliás, ao completar doze meses de rebeldias e manifestações, o Movimento dos Indignados (M-15), que nasceu na Espanha e se espalhou pelo mundo, apontou que o problema “não é a crised+ é o capitalismo”. Nesta caída que parece não ter fim, há uma ascensão e um progresso simplesmente de alguns núcleos da humanidade, autodenominados civilizados, que levam vantagem em toda esta destruição. A nona tese de Walter Benjamin sobre o Angelus Novus do pintor Paul Klee se resume à ideia de que “toda modernidade é bárbara”. Já na sua terceira tese, ele trata da tarefa do historiador crítico e partidário do materialismo histórico, a qual consiste em cepillar la historia a contrapelo, ou seja, escrever a história no contrassentido. Para tanto não é possível juntar-se ao cortejo triunfal, mas sim opor-se à versão oficial e dominante, que na visão nietzchiana seriam os que nadam a favor da corrente do rio ou praticam “o culto desnudo do sucesso” e da “idolatria do factual”. Partindo da concepção de Nietzche, a virtude para o historiador e para o filósofo, hoje, seria a de opor-se à tirania do real e “nadar contra as ondas da história”.
Ser de esquerda é assumir uma posição de resistência e rebeldia diante da alienação, da perda da condição de sujeito do indivíduo e da comunidade humana e da submissão idolátrica do capital. Na base e na origem do ser de esquerda está a superação do modo capitalista da vida dita civilizada. Para Echeverría, esta atitude, juntamente com uma coerência prática contra a valorização capitalista da vida e do mundo, é o que distingue uma posição de esquerda.
Na Convenção Nacional Francesa de 1792, os jacobinos, sentados à esquerda, e os girondinos, postados à direita, expressavam, mesmo que artificialmente, uma distinção política. Enquanto os primeiros diziam-se não satisfeitos com a Revolução, pois queriam que ela avançasse ainda mais nas conquistas populares, por sua vez os segundos se consideravam realizados com a destruição da monarquia absolutista. As verdadeiras liberdade, igualdade e fraternidade não se construirão apenas com a erradicação de reis ditos divinos. Por isso, os jacobinos eram considerados de esquerda.
Mais que uma época de mudança, estamos vivendo uma mudança de época. Para tanto basta ver, diz Echeverría, os acontecimentos que marcam o mundo de hoje, tais como os naturais, como o aquecimento da terra e o esgotamento do petróleod+ os científicos, como o deciframento do genoma humano e o descobrimento de água em outros planetasd+ os técnicos, como a generalização da informática e a exploração da nanotecnologiad+ os econômicos, como o fracasso do neoliberalismo e o surgimento da economia chinesa na qualidade de interlocutora beligerante em escala mundiald+ os políticos, como o esgotamento da democracia representativa pela mídia e a caducidade e o reciclamento do Estado nacionald+ os sociais, como o empoderamento feminino e a expansão da categoria dos migrantes na demografia mundiald+ e os culturais, como a generalização da “estetização selvagem” e a museificação da “alta cultura”, entre outros.
Diante desta nova época que insiste em começar – o velho precisa morrer para que o novo possa nascer –, ser de esquerda é lutar para influenciar as novas relações que serão construídas. Na política, por exemplo, a democracia representativa está morrendo. Literalmente caindo aos pedaços. Portanto, na universidade, nada melhor do que avançar na direção da democracia participativa, para que a força seja ativa e vinda de baixo e nunca passiva e comandada de cima. É esta mudança qualitativa e estrutural que dá autoridade ética e científica a qualquer administração.
Se caracterizar o ser de esquerda é difícil, mais difícil ainda é o atuar consequentemente pela esquerda. Uma coisa é certa: a esquerda não acabou, tampouco a direita morreu. Ambas continuam a ser os dois grandes projetos da humanidade – como o foram liberais e conservadores no século XIX em toda a América Latina –, obviamente com suas diversidades, ora mais para um lado, ora mais para outro.