Roberto Leal Lobo e Silva Filho*
No início do século passado, Abraham Flexner foi uma das figuras mais importantes do sistema de ensino superior americano. Produziu um amplo estudo sobre as escolas de Medicina americanas, o que levou ao fechamento de uma centena delas. Foi também o primeiro diretor do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, tendo escrito ainda um livro clássico sobre as universidades, comparando as inglesas, americanas e alemãs.
Nesse livro, Flexner criticou amargamente o que considerava o barateamento da universidade americana com cursos e programas fora das áreas mais nobres do pensamento humano, como a filosofia e as ciências. Os programas de educação continuada, os projetos aplicados, enfim, as atividades que colocavam a universidade em contato direto com a sociedade não deveriam ser objeto das ações das melhores universidades. Para Flexner, elas condenariam as universidades americanas a ser inferiores às europeias. Segundo ele, Harvard, por exemplo, estava no caminho errado.
Passado quase um século, a história tratou de desmentir Flexner. A visão empreendedora e fortemente comunitária que norteou o ensino superior americano vem do final do século 19. Desde que o governo criou o programa das Land Grant Universities, em que os Estados poderiam receber terras e recursos federais para criar grandes projetos de pesquisa agropecuária e dar apoio aos produtores agrícolas por meio de centros de extensão universitária no campo. Essa visão empreendedora e comunitária marcou a gestão das melhores universidades americanas que, entretanto, não se descuidaram da qualidade de suas pesquisas científicas, da preocupação com a sustentabilidade financeira e da política de recrutamento dos melhores alunos e professores em todo o mundo.
De acordo com a maioria dos rankings mundiais de classificação das universidades de pesquisa, dentre as 50 melhores universidades do planeta, as americanas ocupam hoje mais de 30 das mais altas posições.
Tal é a superioridade americana que, recentemente, o governo da França encarregou o famoso economista francês Philippe Aghion – professor de Harvard, não por acaso -, de produzir um documento em que procurasse identificar os fatores que fazem de uma universidade uma instituição líder. O documento, produzido para o Ministério de Ensino Superior e Pesquisa da França, comparou o sistema de ensino americano ao europeu.
Em 2009, Jamil Salmi, do Banco Mundial, também produziu um importante documento sobre universidades de nível mundial, destacando suas características, indicadores e políticas.
O que caracteriza as melhores universidades do mundo segundo esses autores?
Em geral, elas têm recursos abundantes oriundos de fontes diversas: os orçamentos governamentais das públicas e as mensalidades das privadas correspondem a cerca de 30% do seu total. O restante vem de projetos de pesquisaEampd+desenvolvimento e inovação, prestação de serviços, educação continuada, doações, lucros financeiros e, em alguns casos, de receitas provenientes de atividades na área da saúde.
As universidades mais bem posicionadas, principalmente as de cunho tecnológico, geram um considerável número de invenções e patentes e recebem seus royalties.
Apesar dos recursos abundantes (cerca de U$ 100 mil por aluno), as melhores instituições se caracterizam por um número não excessivo de estudantes (cerca de 20 mil), dos quais 30% são doutorandos, por um corpo docente formado basicamente por professores doutores, muitos deles estrangeiros (cerca de 25%), e por um expressivo corpo auxiliar de pesquisadores que não fazem parte do quadro permanente, que, somados aos docentes, correspondem a um décimo do total de alunos (de graduação e pós-graduação stricto sensu somados).
Além do orçamento robusto, essas universidades têm, em geral, grande e verdadeira autonomia acadêmica e de gestão financeira, são também altamente seletivas nas contratações dos professores e no recrutamento de estudantes e exigentes para sua permanência. Os bons estudantes têm forte apoio financeiro, sejam nas públicas ou nas privadas.
Na carreira docente, há ênfase na meritocracia, sem isonomia salarial nem estabilidade prematura, recompensando diferentemente desempenhos desiguais.
Nos Estados Unidos, os conselhos superiores das universidades (os boards) são constituídos de muitos representantes da comunidade (empresários, agentes financeiros, profissionais etc), nos quais a participação da comunidade interna de professores e estudantes é minoritária. Os dirigentes geralmente não têm mandato e podem ser escolhidos até de fora dos quadros das universidades.
Quem conhece o sistema de ensino superior brasileiro já identifica nossa distância desta realidade. Temos a 7.ª economia do mundo, mas ocupamos somente o 31.º lugar entre os países com as melhores universidades.
Talvez pelas dimensões continentais, o Brasil não tem estudado nem aproveitado experiências bem-sucedidas internacionalmente, sob o argumento de que elas não se adaptam à nossa realidade. Embora seja sempre necessário adaptar as boas experiências à nossa realidade, como se faz em qualquer organização, não se pode, por outro lado, ignorá-las.
Se quisermos ocupar um lugar de destaque na educação superior e auferir os resultados positivos e fundamentais que dela se extrai para o desenvolvimento socioeconômico de um país, é necessário levar em conta as boas experiências internacionais, aceitar que a universidade precisa ser exigente e competitiva interna e externamente e que isso exige um tratamento específico. É preciso criar e viabilizar, inclusive juridicamente, políticas de incentivo, captação de recursos e autonomia para que cada uma possa encontrar a melhor forma de atender aos seus objetivos.
*Doutor em física pela Purdue University, EUA, professor titular do Instituto de Física da USP em São Carlos, ex-reitor da USP, é presidente do Instituto Lobo.