No conflito conhecido como luta armada, Rubens Paiva foi um dos cerca de 300 mortos pelos militaresd+ já Mário Kozel Filho foi um dos 120 mortos pelos militantes da luta armada. O primeiro aparece frequentemente nos jornais, estampado em fotos de família e sua história é bem conhecidad+ o segundo é relegado a um completo esquecimento. Porque tanta diferença entre duas pessoas que morreram no mesmo conflito? Como pode a Comissão da Verdade pretender fazer justiça resgatando a memória do primeiro enquanto aniquila a memória de Kozel? Há aqui um descompromisso com a verdade?
Para responder essas perguntas inicialmente notamos que a Comissão da Verdade, para ser digna deste nome, deveria ter por objetivo o resgate da memória de todos os que morreram ou sofreram violência tanto pelas ações praticadas por agentes a serviço do regime militar como por ações dos militantes de esquerda que se opunham a ele. Não é, contudo, o que está sendo apresentado por alguns ministros e secretários de governo. Com efeito, o atual governo elabora bem a cartilha revisionista que já estava delineada no governo anterior sob a responsabilidade do então ministro Paulo Vannuchi, ex-militante da ALN, grupo cujo chefe, Carlos Marighella, dizia sem nenhum pudor: “O terrorismo é uma arma a que jamais o revolucionário pode renunciar. […] Ser assaltante ou terrorista é uma condição que enobrece qualquer homem honrado”. Como veremos, mudam-se apenas os nomes, mas os argumentos continuam medíocres e revelam de forma cristalina os propósitos que se tenta ocultar. Para desvendá-los eu selecionei as declarações a seguir.
A ministra M. do Rosário declarou recentemente numa entrevista a um jornal: “Eu de fato não considero a existência de dois lados. Nós estamos investigando e buscando refletir sobre a violência de Estado contra indivíduos e grupos”. Já o seu colega Paulo Abrão, secretário nacional de Justiça, afirma no mesmo jornal: “Não cabe investigar as ações da resistência. Estavam no direito legítimo de lutar contra a ordem ilegítima e a opressão. A Comissão da Verdade serve para investigar os crimes de Estado”.
O primeiro ponto a ser elucidado aqui é a intenção do governo em transformar a Comissão da Verdade em um mero instrumento para imputar ao Estado, como um todo, crimes que obviamente não podem ser imputados, simplesmente por não haver evidências comprovando que havia ordens do alto escalão do regime militar chancelando práticas criminosas. No máximo, podemos pensar tais crimes como atos isolados, tão injustificáveis quanto o terrorismo da luta armada, e que são inevitáveis em um conflito de guerra irregular como foi o combate entre militares e militantes da luta armada. Se adotarmos um critério meramente comparativo com o que ocorreu em outros países da América Latina, por exemplo, Argentina (30 mil mortos), Peru (30 mil mortos), Colômbia (45 mil mortos), Cuba (17 mil mortos), vemos que o Brasil tem um saldo extremamente baixo de vítimas, que se reduz ainda mais se estes números forem tomados relativo à sua população, considerando que, entre eles, o Brasil sempre foi o país mais populoso. Admitindo que naqueles países a elevada taxa de vítimas é consequência de uma política de Estado opressiva e abusiva concluímos que o reduzido número de vítimas no Brasil é uma prova de que não havia uma política oficial de Estado, similar a daqueles países, determinando aos agentes do regime o uso de práticas como tortura e assassinatos. Corrobora isso, também, o fato de ser difícil conceber duas premissas antagônicas: a de um regime militar que torturava impiedosamente seus adversários, ao mesmo tempo que permitia uma atividade legislativa limitada, inclusive com uma oposição encarnada no então MDB. Uma das premissas então não se sustenta. Contudo, uma delas – a da atividade legislativa limitada que permitia haver uma oposição oficial ao regime militar – é historicamente determinada. QED. Como corolário, fica evidente a desonestidade intelectual daqueles que, incapazes de refutar os argumentos expostos anteriormente, classificam como “apologia a tortura” qualquer argumento que conteste generalizações absurdas que colocam o regime militar no Brasil no mesmo rol de regimes violentos de outros países da América Latina (espertamente eliminando a sanguinária ditadura cubana da lista, ou se calando diante dos crimes das ditaduras comunistas como um todo).
O segundo ponto a ser elucidado remete ao que Paulo Abrão se refere como “direito legítimo dos militantes da luta armada de lutar contra a ordem ilegítima e a repressão”. Isso só se aplicaria se os grupos da luta armada tivessem por objetivo a democratização do país. Contudo, a análise dos vários documentos desses grupos que estão reunidos no livro “Imagens da Revolução” de Daniel Aarão Reis mostra que eles eram de orientação marxista e defendiam um projeto que, nas palavras do próprio Aarão, era “revolucionário, ofensivo e ditatorial” – a comunização da nação! Vemos então que a insistência do atual governo em legitimar as ações da luta armada correspondem a um falseamento dos fatos.
Das declarações dos ministros chegamos então a dois objetivos não declarados que irão guiar a Comissão da Verdade que são: (I) Imputar ao regime militar a prática de “crimes de Estado”, (II) legitimar as ações da luta armada eximindo seus militantes de reponsabilidade nos crimes cometidos e, assim, de serem investigados pela mesma comissão. A estes dois objetivos se superpõem de forma superficial, mas com maior visibilidade midiática, um terceiro: (III) a questão do resgate da memória. É aí que se tem a resposta para o aniquilamento da memória dos 120 Kozels que morreram nas mãos dos militantes da luta armada e que a Comissão da Verdade, segundo a ministra M. do Rosário, não irá investigar. Cada um desses kozels representa um crime praticado pelos militantes da luta armada cuja investigação irá necessariamente expor os autores. No caso específico do soldado Mário Kozel Filho, morto em um atentado a bomba, sabe-se que foi uma ação realizada pela VPR, grupo a qual a atual presidente Dilma Rousseff militava. Não parece razoável acreditar que ministros e secretários (alguns possivelmente envolvidos em crimes da luta armada) exponham sua chefe ao constrangimento de ter que dar explicações sobre isso. O que me parece ainda mais abominável, contudo, é a possibilidade do governo usar o objetivo (III) apenas como pretexto para avançar os objetivos ocultos em (I) e (II) pois isso trairia a memória de todos os que morreram. Ora, como pensar diferente? Afinal, que diferença faz para a família de Rubens Paiva que se investigue também o que ocorreu com Mário Kozel Filho?
Vemos então que a recente oposição que militares e civis dirigem à comissão da verdade pode estar relacionada com esses dois objetivos não declarados que mencionei acima. O passado que a esquerda tenta ocultar tem que ser revelado, primeiro para que presidentes, ministros, políticos, professores universitários, juristas, advogados, personalidades, artistas, etc., que no passado tenham militado na luta armada e tem sangue nas mãos não se vangloriem diante do povo como defensores da democracia, algo que nunca foram. Segundo, e eis a principal razão, para que em nome dessa glória pessoal que almejam, mas não merecem, não permitamos o aniquilamento da memória dos vários Kozels trucidados pelos grupos da luta armada. Isso seria assassiná-los mais uma vez. A família do soldado Mario Kozel Filho merece do governo tanto respeito quanto a família de Rubens Paiva.
É preciso ter em mente que a Comissão da Verdade não é o único instrumento revisionista que parte da esquerda se utiliza para impor à sociedade a sua visão unilateral da nossa História, num total descompromisso com a verdade. Há outras frentes convergindo para o mesmo fim, todas se justificando pela asserção, comum em nossos dias, de que “não há verdade absoluta na História” (seja lá o que se entenda por isso). Ora, aceitando esta relativização decorre daí que não há também um compromisso com a verdade, pois ela supostamente não existe. Isto fica patente num recente projeto de lei de autoria de políticos do PSOL, PT e PSB que pede a mudança do nome da ponte Presidente Arthur da Costa e Silva, alegando ser “inaceitável” que a ponte homenageie “um chefe de Estado que foi um dos artífices do golpe militar, responsável por momentos dos mais sombrios da história brasileira”. Ora, tal afirmação revela o descompromisso com a verdade a que me referi. Com efeito, hipoteticamente, transpondo PSOL, PT, PSB, etc. para a época do regime militar veríamos vários de seus atuais militantes entre os que participaram da luta armada que, como sabemos, se constituía num projeto ofensivo que pretendia converter a nação numa ditadura comunista. Que estatura moral essas pessoas tem então para afirmar que o regime militar era dos mais sombrios se eles, ao desejarem implantar uma ditadura comunista no Brasil, defendiam um projeto ainda mais sombrio? Além disso, quem tem estatura intelectual e legitimidade suficiente para falar do regime militar, os que viveram a época ou os revisionistas que afirmam não haver verdade absoluta? Pois bem, vale lembrar que o povo brasileiro nas eleições legislativas dos anos 70 demonstrou seu apoio irrestrito ao regime militar na presidência de Médici – sucessor de Costa e Silva – dando uma vitória esmagadora para a ARENA frente ao MDB em plena vigência do AI5 (será que o povo brasileiro é sombrio?). Este fato histórico, devidamente comprovado, refuta a tese dos revisionistas comprovando então seu descompromisso com a nossa História.
Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática