A célebre frase, de autoria do governador (ou equivalente) romano Poncius Pilatos é muito atual. Sendo um cético, Pilatos não procurava uma resposta, o que explica a razão do Verbo ter permanecido em silêncio. Hoje, a questão ressurge, formulada não por céticos, nem por pessoas que procuram uma resposta sincera, mas por alguns que desejam legitimar o que eles assumem como verdade. Assim, não é possível ficar em silêncio, e a universidade deve contribuir para analisar de forma isenta (?) os fatos como ocorreram.
Para entendermos o problema, reescrevo o seguinte trecho do prefácio da primeira edição do livro “Imagens da Revolução” (1985) de Daniel Aarão Reis: “Naqueles anos alguns milhares, poucos, certamente, de mulheres e homens, quase todos muito jovens, lançaram-se à luta armada contra o poder, não imaginando que se encontravam isolados política e socialmente. Foram massacrados. […] Mas não foram totalmente esquecidos. Não terá sido sintomática a ovação com que o povo do Rio de Janeiro saudou a menção a Lamarca e Marighella no comício das Diretas-Já, em 1984? Os povos, mesmo quando desorganizados e sem ânimo para se revoltar, sabem apreciar os rebeldes que lutam pelas boas causas, mesmo em momentos e circunstâncias social e politicamente desfavoráveis. […] A publicação dos documentos políticos da Nova Esquerda não deixa de ser igualmente uma homenagem. Mas consideramos, sobretudo, um exercício a memória, o resgate de uma contribuição política relevante. Um ato de justiça.”
No contexto atual, a “comissão da verdade” pretende ser o instrumento capaz de fazer a justiça e preservar a memória dos que se lançaram a luta armada. Mas, como haveremos de lembrá-los se não sabemos a verdade pelo que lutavam? Há vários mitos e equívocos em relação a isso. O primeiro já surge no fato óbvio de que alguem que enalteça Marighella, assim o faz por desinformação ou por dogmatismo, afinal, Marighella, em seu “Mini-manual do guerrilheiro urbano”, dizia: “O terrorismo é uma arma a que jamais o revolucionário pode renunciar. […] Ser assaltante ou terrorista é uma condição que enobrece qualquer homem honrado”. Para concordar com esta tese teríamos que fazer uma concessão a Eric Hobsbaw de que a matança indiscriminada de pessoas estaria justificada caso garantisse a edificação da grande utopia socialista. O fato é que, mais tarde, numa entrevista ao jornal O Globo de 23/09/2001 o próprio Aarão Reis acrescenta um elemento totalmente ausente no prefácio de seu livro: “As ações armadas da esquerda brasileira não devem ser mitificadas. Nem para um lado nem para o outro. Eu não compartilho da lenda de que no final dos anos 60 e no início dos 70 fomos o braço armado de uma resistência democrática. […] Ao longo do processo de radicalização iniciado em 1961, o projeto das organizações de esquerda que defendiam a luta armada era revolucionário, ofensivo e ditatorial. Não existe um só documento dessas organizações em que elas se apresentassem como instrumento da resistência democrática. “ De fato, o próprio conteúdo do seu livro “Imagens da Revolução” comprova isso. Ora, se desde 1961 e, portanto, antes da contra-revolução de 1964, já havia um processo de radicalização da esquerda em direção a luta armada na implantação de um projeto “revolucionário, ofensivo, e ditatorial” seria natural que isso seria de alguma forma combatido. A literatura sobre o tema, escrita pelos militares, só agora começa a ganhar corpo e não pode ser ignorada [1,2,3] sob risco de não chegarmos a verdade alguma. Ela oferece uma análise da conjuntura nacional e das dificuldades numa época volátil onde o MCI fomentava todo tipo de ações armadas e subversivas para expandir o comunismo.
Assim, para que seja resgatada a verdade é preciso que saibamos pelo que cada lado lutava, como esta luta foi efetuada, quem as financiava, e os crimes que ambos os lados cometeram, afinal, tortura e terrorismo são crimes igualmente hediondos. Não teria sido este desconhecimento a razão de Lamarca e Marighella terem sido reverenciados no comício das Diretas-Já? Afinal, haveremos de considerar Lamarca um herói as custas da omissão de vários de seus crimes, o mais notório, o brutal assassinato com requintes de crueldade e tortura do Tenente Mendes, morto a coronhadas? O que dizer dos atentados a bombas, assassinatos, roubos a bancos e estabelecimentos comerciais etc., praticados pelos militantes da luta armada e que vitimaram inúmeros civis (Ver [2], pgs. 512-521 para uma lista dos nomes)? Estariam essas ações justificadas em nome do socialismo? No que consiste então fazer justiça se, deliberadamente, se omite que os que participaram da luta armada defendiam um “projeto revolucionário, ofensivo e ditatorial” e, nessa empreitada, praticaram todo tipo de ações terroristas? Caso desconsidere estes fatos embaraçosos, a comissão corre o risco de se transformar numa comissão da “meia-verdade”.
[1] “A Grande Mentira”, Agnaldo del Nero Augusto
[2] “A Verdade Sufocada”, Carlos Brilhante Ustrad+
[3] “Projeto Orvil”.