Quem visita a sede da IBM, nos arredores de Nova York, recebe como brinde uma caixinha com nove chocolates. Oito deles representam os países que abrigam os centros de pesquisa e desenvolvimento da companhia. O nono, colocado no meio da caixa, trazia agora uma ilustração do globo terrestre. No entanto, a inauguração do laboratório da empresa no Brasil, neste ano, transformou o país em pivô de uma espécie de guerra dos bombons. A disputa na IBM é para saber qual país será estampado na posição central da caixa. Os brasileiros defendem que deveriam ocupar esse lugar, já que são os mais novos da turma. Outros centros usam como argumentos o tempo de funcionamento ou a relevância de seus projetos para pleitear o espaço mais nobre.
Essa seria apenas uma história curiosa se o Brasil não tivesse se tornado, de fato, o “chocolate” da vez nas estratégias de pesquisa e desenvolvimento (PEampd+D) de um número cada vez maior de empresas. Num movimento inédito, muitas companhias decidiram criar estruturas de investigação científica no país ou ampliar os laboratórios que já existem. “Até o ano passado, nunca havíamos recebido consultas de empresas interessadas em abrir centros de pesquisa no país. Agora, isso começou a acontecer”, diz Eduardo Costa, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
Além da IBM, a multinacional do setor químico DuPont já abriu seu centro de inovação local. Companhias como a faz-tudo americana General Electric (GE), a montadora chinesa Chery e a aeroespacial sueca Saab anunciaram investimentos relevantes na área – uma novidade e tanto num país que nunca foi um destino óbvio para projetos de pesquisa. China e Índia viveram esse boom no início desta década. Agora, é a vez do Brasil.
Os investimentos das empresas em PEampd+D – considerando atividades internas e aquisições externas de tecnologia – somaram R$ 17,5 bilhões em 2008, com base nos dados da edição mais recente da Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No levantamento de 2005, o montante havia sido de R$ 11,5 bilhões.
O crescimento da economia brasileira nos últimos anos despertou nas companhias o interesse em se aproximar do grande mercado consumidor que está em formação no país. Soma-se a isso a efervescência de alguns setores – casos da indústria automotiva e de energia – e estão dadas as bases desse cenário inédito.
A área de pesquisas da IBM no Brasil inclui um centro de soluções para recursos naturais, instalado no Rio, com foco no desenvolvimento de tecnologias para os segmentos de mineração e de petróleo e gás. Outro alvo do interesse da companhia é o mercado de etanol. “Que lugar pode ser melhor que o Brasil para aprender e inovar nessa área?”, questiona Daniel Dias, o indiano de nome abrasileirado que comanda o laboratório da IBM no país.
A descoberta de petróleo na camada do pré-sal também animou a GE, que vai investir US$ 100 milhões para abrir um centro de pesquisas no Rio. “O novo centro nos permitirá uma relação mais íntima com a Petrobras e com as tecnologias voltadas para o setor de petróleo e gás, principalmente na exploração marítima”, diz o vice-presidente global de pesquisas da companhia, Mark Little. O executivo veio ao Brasil no mês passado para anunciar a iniciativa.
O parque tecnológico – o quinto da GE em todo o mundo – será erguido na Ilha do Fundão, Cidade Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ali, os engenheiros da companhia trabalharão em parceria com o Centro de Pesquisas da Petrobras (Cenpes) e a UFRJ.
A Saab planeja trabalhar em parceria com a Fundação Educacional Inaciana (FEI) e com a Universidade Federal do ABC no centro de pesquisas que promete instalar em São Bernardo do Campo. A empresa participa da concorrência para fornecer caças ao governo brasileiro e diz que fará pesquisa no país independentemente do resultado da disputa.
A oferta de mão de obra qualificada e de universidades respeitáveis também tem contribuído para pôr o país no mapa dos investimentos em PEampd+D. “Pesquisa tem a ver com talento, e isso o Brasil tem”, afirma Dias, da IBM.
Esse também foi um fator crucial na escolha do Brasil para acolher o primeiro centro de pesquisas da fabricante de veículos Chery fora da China. “Aqui tem engenheiros, mão de obra das montadoras e gente das universidades”, afirma Luís Curi, presidente da empresa no país. A companhia ainda não definiu onde será instalado o centro de PEampd+D, mas já tem R$ 150 milhões reservados para destinar às instalações, à contratação de pessoal e à construção de uma pista de provas para seus carros. O escopo do trabalho será amplo: do design dos veículos até pesquisas de fontes alternativas de energia.
Quando estiver concluído, dentro de um ano e meio, o centro terá papel relevante nos planos da Chery de se tornar uma companhia global – missão que requer aprender sobre a cultura e os gostos dos consumidores ocidentais. Com fábricas das principais marcas de veículos, o Brasil tornou-se um grande laboratório para a companhia chinesa.
Essa combinação entre oferta de mão de obra especializada e um mercado consumidor amplo fizeram da indústria automotiva o setor que mais investe em PEampd+D no Brasil: foram quase R$ 4 bilhões em 2008, segundo a Pintec mais recente. Na sequência, aparecem os segmentos de telecomunicações (R$ 1,75 bilhão) e de petróleo (R$ 1,7 bilhão).
“As montadoras começaram a ver o Brasil não só como um porto de destino para seus produtos, mas como uma alavanca para seus lançamentos mundiais”, avalia Curi. Ele lembra que não foram poucos os modelos de carros desenvolvidos no país e replicados em outros mercados.
Não é por acaso. A qualidade da mão de obra e a existência de um mercado consumidor em crescimento são justamente os fatores que mais pesam para as empresas na hora de escolher onde vão instalar seus centros de pesquisa e desenvolvimento. Essa é a conclusão de um estudo conduzido pelo professor Sérgio Queiroz, da Unicamp. O professor analisou quais são os elementos determinantes para os investimentos em PEampd+D num conjunto de 17 países, incluindo o Brasil.
“Nos países desenvolvidos, a existência de gente qualificada e “clusters” de pesquisa sólidos são os fatores mais importantes. Mas, num país como o Brasil, o tamanho do mercado é o diferencial”, afirma o professor.
A fabricante de cosméticos L”Oréal sabe muito bem disso e tem tirado proveito da diversidade étnica dos brasileiros para criar produtos que podem ser usados em diversas partes do mundo. “O Brasil é um país único. Tem todos os tons de pele e todos os tipos de cabelo. O que desenvolvemos aqui podemos aplicar em outros países”, diz o diretor de pesquisa e desenvolvimento da multinacional francesa no país, Serge Restlé.
Criado há dois anos com uma estrutura muito enxuta, o centro de PEampd+D da L”Oréal no Rio dobrou de tamanho recentemente e agora tem 25 funcionários. No laboratório, os pesquisadores estudam matérias-primas e desenvolvem novos cosméticos, com atenção especial aos produtos para cabelos. “É importante estar perto do consumidor para saber qual é a demanda”, observa Restlé.
Essa proximidade de um mercado consumidor grande e aberto a novidades é, ao mesmo tempo, o diferencial e a fraqueza do Brasil. Nos departamentos de inovação das companhias, sobra engenharia de produtos – que dá resultados mais imediatos às empresas -, porém falta a ciência propriamente dita. “No trabalho de PEampd+D que se faz por aqui, há muito “D” e pouco “P””, afirma Queiroz, da Unicamp.
Em alguma medida, é natural que seja assim. As empresas só se dedicam à pesquisa para chegar ao desenvolvimento de novos produtos. De maneira geral, o “D” é sempre maior que o “P” na parcela de orçamento que as companhias dedicam à inovação. Até aí, nenhuma surpresa.
A questão é que muitas empresas preferem manter suas áreas de pesquisa científica concentradas ao redor de núcleos universitários de excelência – como é o Vale do Silício (EUA) para o setor de tecnologia da informação – e só transferem aos países emergentes a parte aplicada do processo de inovação.
Nada de errado com a vocação brasileira para a criação de produtos, mas reforçar a pesquisa científica também é importante, ressalta o acadêmico da Unicamp. “Para isso, é preciso investir em “clusters” científicos e, sem haver um plano de longo prazo, isso não existe. A coisa avançou, mas ainda é tudo muito desarticulado”, diz Queiroz.
Seria quase imediato, portanto, pensar que a grande lacuna da inovação no país reside na falta de recursos do governo. Na prática, não é bem assim. O Brasil investe em pesquisa e desenvolvimento o equivalente a 1,1% do Produto Interno Bruto (PIB). Metade disso corresponde a verbas públicas. O restante é dinheiro das empresas. Essa relação é bem diferente nos países desenvolvidos, onde os investimentos das companhias puxam o gasto total para cima e fazem a engrenagem funcionar.
O acesso ao dinheiro público melhorou com a criação dos fundos setoriais no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e se consolidou no governo Lula. O volume de recursos da Finep para financiar projetos de PEampd+D cresceu dez vezes nos últimos dez anos e agora está em R$ 4 bilhões anuais.
Para especialistas, o gasto público não é tão baixo, o privado é que está subdimensionado. Essa relação camufla as enormes diferenças regionais do país. Na média brasileira, 40% dos investimentos em pesquisa são feitos pelas empresas. A realidade paulista é bem diferente: no Estado mais rico do Brasil, o número sobe para 63%, afirma o diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Carlos Henrique de Brito. Isso ajuda a elevar os gastos paulistas em PEampd+D para 1,52% do PIB – mais que o total investido por países como a Espanha.
“É importante para a economia que as empresas tenham capacidade de criar tecnologia no país. Isso gera prosperidade e estimula a competitividade”, observa Brito. “O desafio é que o sistema brasileiro tem muitas diferenças regionais.”
Essa desigualdade é marcada não apenas em termos geográficos, mas também no que diz respeito aos setores da economia. Ao mesmo tempo em que se destaca em áreas como energia, veículos e bens não duráveis, o Brasil deixa a desejar em outros segmentos. Sem haver incentivo econômico, faltam nas universidades e nas instituições públicas centros de estudos que supram essas lacunas. Nesse caso, muitas vezes são as próprias empresas que acabam assumindo o papel de formar mão de obra especializada e de usar seus melhores talentos para pensar em inovação.
Foi assim que a subsidiária brasileira da Voith Paper se transformou no centro mundial de pesquisas em papel “tissue” (absorvente) para o grupo de origem alemã. Com investimento de R$ 15 milhões, a companhia acaba de desenvolver melhorias em uma máquina para o deságue (secagem) da celulose que elevarão a capacidade de processamento dos atuais 1,6 mil metros por minuto para 2,6 mil a partir do próximo ano. Tudo foi desenvolvido internamente.
O presidente da empresa para a América do Sul, Nestor de Castro, diz que não se encontra no país um ambiente muito favorável aos projetos de PEampd+D em celulose e papel. “Falta ao Brasil um centro científico nessa área, porque o país não é muito forte nesse setor em termos mundiais”, avalia o executivo. “A barreira é grande. Se não fôssemos uma empresa internacional, não conseguiríamos financiar os nossos projetos.” Não há um grande núcleo universitário voltado à indústria de papel. É a própria Voith que fomenta, na Universidade Federal de Viçosa, um curso dirigido para esse mercado – do qual extrai parte de sua mão de obra. Segundo Castro, a companhia não usa recursos públicos em seus projetos, apenas deduz do Imposto de Renda as despesas com pesquisa e desenvolvimento.
“Se as empresas estão reforçando suas áreas de PEampd+D é para compensar a falta de competitividade do país nas exportações. Senão, acabam perdendo o conhecimento acumulado ao longo do tempo”, afirma o presidente da Voith Paper.
Essa defasagem é herança do modelo de industrialização brasileiro, pouco competitivo desde sua origem. O protecionismo que perdurou até o início dos anos 90 deixou boa parte das companhias brasileiras à margem daquele que é um ingrediente fundamental para a inovação: a pressão do concorrente. “As empresas gastam pouco porque nunca tiveram necessidade, mas estão precisando cada vez mais. A partir daí, começa a haver esse processo que estamos vendo agora”, observa Queiroz, da Unicamp.
Sapo não pula por boniteza, mas por precisão, já dizia João Guimarães Rosa em “Sagarana”. Eduardo Costa, da Finep, costuma recorrer a essa metáfora para explicar a recente onda de investimentos em centros de PEampd+D no Brasil. “As empresas não vão sobreviver se não inovarem.”
Nos setores onde se estimulou mais a concorrência, investir em pesquisa tornou-se uma necessidade. Caso emblemático é o das telecomunicações. A desestatização do setor, em 1998, foi o marco para um salto tecnológico. As operadoras vencedoras tiveram de se mexer para reduzir o enorme gargalo de linhas telefônicas que havia no país – o que implicou investir em redes, sistemas informáticos e processos.
Esse movimento se refletiu também nos fornecedores de infraestrutura para telecomunicações. A Ericsson tem projetos de pesquisa e desenvolvimento no Brasil desde os anos 70, mas foi somente depois da privatização que a companhia sueca estruturou um centro de inovação no país. Fica em Indaiatuba, na região de Campinas conhecida como o “Telecom Valley” brasileiro – onde as áreas de inovação de diversas companhias do setor se reúnem em torno do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), remanescente da antiga Telebrás.
A Ericsson investe uma média de R$ 70 milhões por ano em PEampd+D. A unidade brasileira tornou-se tão relevante para o grupo que é a única com liberdade para escolher a área de suas pesquisas. “Estamos bastante alinhados com a evolução tecnológica do setor”, afirma o gerente de assuntos corporativos, Edvaldo Santos. O Brasil oferece condições bastante favoráveis ao trabalho de inovação da companhia, diz. Núcleos universitários voltados às telecomunicações e acesso a recursos públicos contribuem para essa percepção. No ano que vem, a companhia dará início a seu segundo projeto de pesquisa em parceria com a Finep. “O ambiente está muito melhor agora que há dez anos, quando abrimos o centro de pesquisas.”
Essa mudança se deve a fatores internos, mas também é conjuntural. Nos últimos anos, a crise econômica mundial chamou a atenção dos investidores para o mercado brasileiro e transferiu para o país recursos que antes eram direcionados a projetos de PEampd+D nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. “Durante muito tempo, o ambiente científico foi dominado pela ideia de que os estrangeiros nunca fazem pesquisa no Brasil. Mas, na verdade, mais da metade do esforço de PEampd+D no país tem sido feito por estrangeiros”, afirma Brito, da Fapesp.
Essa percepção sobre a origem do capital deu lugar a uma visão mais pragmática do próprio governo sobre esses investimentos. Na análise dos candidatos às linhas de financiamento da Finep, o que mais conta é a qualidade dos empregos que podem ser criados no mercado brasileiro a partir daquele programa de pesquisa. “O que queremos é acesso a empregos mais qualificados na divisão internacional do trabalho. As empresas que nos oferecerem isso têm de ser tratadas com tapete vermelho”, ressalta Costa, presidente da Finep.
Para os especialistas, as mudanças são notáveis, mas é preciso avançar mais. Falta investir em setores de alta tecnologia, como o farmacêutico e o de eletroeletrônicos, que ainda são muito frágeis no país. Falta melhorar em educação e formar mais engenheiros – o Brasil tem 11 mil novos doutores a cada ano, mas apenas 10% deles vêm da área de engenharia, segundo levantamento do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). “O cenário melhorou, mas ainda é muito desarticulado. Precisa haver um plano de longo prazo para incentivar os projetos de pesquisa”, observa Sergio Queiroz, da Unicamp. (Colaborou Gustavo Brigatto, de São Paulo)