O transporte público em Florianópolis estabelece-se a partir de acordos construídos ao longo do tempo entre operadores privados e poder concedente. Assim, a configuração do sistema obedece a uma lógica de territórios geográficos que são historicamente dominados pelos mesmos operadores, ou por aqueles que adquiriram, por meio de transações privadas, linhas dos operadores anteriores. Um exemplo é o domínio da área central pela empresa Transol, que incorporou linhas da antiga Trindadense em meados dos anos 80. Essa última, por sua vez, havia adquirido anteriormente a linha “Agronômica” da empresa Tanner.
Tal processo de concentração teve regulação tímida do poder concedente, sendo antes marcado pela atuação dos governantes de plantão no sentido de facilitar as transações de linhas entre particulares.
Não surpreende, portanto, que a intervenção da prefeitura para a implantação do sistema integrado da capital tenha se pautado pela manutenção dos interesses dos donatários das linhas. Tais interesses dominaram o processo de planejamento do sistema, tanto do ponto de vista da definição das linhas como do modelo de concessão.
Pelo lado das linhas, preservou-se a lógica de territórios geográficos e sistema radial.
Nessa lógica, as linhas convergem para a região central da cidade. Por conseguinte, surge a dificuldade de operação das poucas linhas que atravessam fronteiras territoriais de empresas, como aquelas que ligam dois terminais periféricos (TILAG-TICAN, TILAG-TIRIO) ou as que se dirigem para pólos geradores (Jd. Atlântico-UFSC, p.ex.). Nessas, a fórmula encontrada é a alternância de operador, seja com base no horário (no caso de linhas da alta frequência), seja por dia da operação (no caso de haver poucos horários por dia).
Outro efeito negativo desse desenho é a necessidade de estocagem de veículos na região do aterro da Baía Sul, no centro. Tal área, antes proposta para equipamentos de lazer, foi tomada por um terminal cuja mera existência já havia sido questionada pelos primeiros proponentes de uma maior integração do sistema, em meados dos anos 1990. Também, não há avanço na necessária proposição de um sistema metropolitano, agravando a situação de concentração de ônibus no centro da cidade por conta das linhas que atendem as cidades vizinhas.
Do ponto de vista do modelo de concessão, a manutenção dos interesses historicamente construídos foi conquistada de forma escandalosa. A aprovação da Lei 034/99 em sessão da Câmara Legislativa, realizada sob proteção de barreira policial, é um capítulo que ilustra bem o grau de compromisso das instâncias de poder (nesse caso, o Legislativo municipal) com a ordem estabelecida pelo conluio entre empresários e governantes.
Pela lei, as empresas garantiram mais 10 anos de operação sem necessidade de se submeterem a processo licitatório, renováveis por mais 10 anos. Quando expirou o primeiro prazo em fevereiro último, a prefeitura resolveu não exercer a opção de renovação das concessões de linhas, escolhendo o processo licitatório que encontra-se em debate neste momento.
Um outro aspecto do modelo de concessão é o funcionamento do órgão regulador e gestor do sistema, isto é, a Secretaria Municipal de Transportes e Terminais (SMTT). Não raro, o titular da secretaria abdica do poder regulatório e de planejamento para manter tudo como se encontra. Essa relação próxima e de camaradagem entre a SMTT e as empresas atende a vários interesses, um dos quais pretensamente legítimo: com os poucos quadros disponíveis em seu corpo funcional e com o peso da responsabilidade pela operação do dia-a-dia dos ônibus, acaba havendo um interesse colimado entre o regulador e as concessionárias para que o serviço não pare. Outros interesses são representados por aquilo que se chama de “tomada o órgão regulador” pelas concessionárias.
Tal efeito é comum no modelo de “agências reguladoras” que surgiu a reboque da onda de privatizações das décadas de 80 e 90. No caso do sistema integrado, seus efeitos mais visíveis são a recusa da SMTT em centralizar a arrecadação, delegando-a para o sindicato patronal, e a falta de proposições de linhas novas, transversais às várias regiões de domínio de cada empresa. Não por acaso, o SETUF, em vez de Sindicato das Empresas, pode ter sua sigla confundida com “Secretaria de Transportes Urbanos de Florianópolis”.
A mudança da lógica do sistema, portanto, requer uma ruptura com o histórico envolvimento das empresas operadoras e o poder público. Exige, ainda, elementos que vão desde a criação de um órgão forte e independente de planejamento e gestão dos transportes, em nível metropolitano, até um redesenho das linhas do sistema, também com necessária abrangência para toda a grande Florianópolis, dado o alto grau de conurbação que caracteriza a região metropolitana. Por fim, e seguindo o modelo adotado em países como os Estados Unidos onde os transportes por ônibus são estatais, deve ser realizada a estatização da operação, a qual traria graus de liberdade muito importantes para que se possa realizar um planejamento e implantação de sistemas de transportes sem a interferência de interesses alheios à prestação de um serviço de alta qualidade.