Na última década, a formação de mestres e doutores no Brasil cresceu mais de 100%, com quase 50 mil profissionais titulados a cada ano. O país está hoje em 13º lugar no ranking dos países que mais publicam artigos científicos. Os orçamentos das principais agências governamentais de fomento à produção científica aumentaram de modo significativo e ampliou-se a concessão de bolsas de estudo em todas as áreas do conhecimento. Somando Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), subordinada ao Ministério da Educação (MEC), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), vinculada ao governo paulista, o número de bolsas concedidas a mestrandos e doutorandos passou de 36.495 em 2000 para 69.696 no ano passado.
“O bom momento da produção científica no país está relacionado à retomada do crescimento econômico, que estimula as empresas a dedicar mais esforços a atividades internas de PEampd+D [pesquisa e desenvolvimento] e os governos, a destinar mais recursos para bolsas de estudo e projetos de pesquisa.
No entanto, “ainda sentimos falta de pesquisadores”, diz Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O número de cientistas em relação à população é pequeno na comparação com países desenvolvidos. Temos um terço dos pesquisadores da Espanha, país com o mesmo número de habitantes do Estado.”
Nas contas de Renato Janine Ribeiro, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), ex-diretor de avaliação da Capes, é preciso dobrar o número de bolsas de estudo a mestrandos e doutorandos [leia entrevista na pág. 8], embora tenha crescido o universo constituído por mestres e doutores, “e isso é um grande ganho”. Contudo, “seria uma ilusão supor que esse crescimento seja acompanhado pela qualidade” de forma linear. “A pesquisa científica tem um nível de variação muito grande, com aspectos positivos e aspectos que podemos achar que não são tão bons. Mas o saldo é positivo.”
Jorge Almeida Guimarães, presidente da Capes, agência que responde por cerca de 60% da concessão de bolsas de mestrado e doutorado no país e pela supervisão do sistema nacional de pós-graduação, calcula que “deveríamos ter dez vezes mais doutores para dar aulas e orientar na pós-graduação”. Entre 2000 e 2009, a oferta de programas de mestrado e doutorado em universidades brasileiras públicas e privadas cresceu 65%, para 2,5 mil cursos com mais de 160 mil matriculados.
A alta da oferta levou a Capes a extinguir o auxílio ao mestrado no exterior e aumentar a concessão de bolsas de estudo no Norte, Centro-Oeste – exceto Brasília – e Nordeste, regiões com os piores índices de formação em níveis de pós-graduação. Neste ano, a Capes e o CNPq decidiram oferecer, indiscriminadamente, bolsas a todos os mestrandos e doutorandos elegíveis de universidades públicas e privadas do Norte e Centro-Oeste. “Há áreas no país em que não podemos criar programas de mestrado e doutorado porque não temos professores qualificados. Isso cria um vácuo na possibilidade de desenvolvimento”, avalia Almeida Guimarães.
A opção da Capes e do CNPq dá margem a críticas de Brito Cruz, da Fapesp, que em 2008 (último dado disponível) despendeu R$ 638 milhões em financiamento à pesquisa, ou 17,2% dos recursos originários de fontes estaduais, da ordem de R$ 3,7 bilhões, correspondentes a 24% do total aplicado no Estado. Enquanto isso, fontes privadas contribuíram com 62,8% e o governo federal, com 13,1%.
“A política da União deveria ser equilibrada. A disparidade maior é vista na distribuição das universidades federais no Brasil. Somando vagas às matrículas e dividindo pela população de jovens que concluem o ensino médio, em São Paulo a chance de se entrar em uma universidade federal é de 0,1%, enquanto a média no país é 12%, existindo alguns Estados com 70%. Não acho que seja um assunto político, relacionado ao governo Lula. O governo federal tem uma longa história de descompromisso com a educação superior no Estado de São Paulo”, afirma Brito Cruz.
Almeida Guimarães contra-argumenta: “Uma região não tira bolsas de outra. Qualquer administração se defronta com a questão das disparidades regionais. Nossa missão é atuar para minimizá-las”.
Compartilhando um orçamento de R$ 2,4 bilhões em 2009 e responsáveis por mais de 80% do fomento à pesquisa científica no país, Capes e CNPq costumam atuar em parceria com as fundações estaduais, abrindo editais para programas acadêmicos e liberando bolsas diretamente para instituições de ensino públicas e privadas bem avaliadas. Tanto as agências federais como as estaduais têm autonomia para definir políticas e áreas prioritárias de fomento, com participação de seus conselhos técnicos e acadêmicos. Com relação aos critérios de escolha de bolsistas e projetos de pesquisa, a análise geralmente é baseada no mérito acadêmico e científico das propostas. Também se leva em conta que é preciso preparar mão de obra qualificada para o mercado de trabalho.
Mario Neto Borges, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), avalia positivamente a relação entre agências estaduais e federais. “Desde que as fundações estaduais passaram a respeitar seu orçamento vinculado às receitas dos governos, foi possível fazer mais parcerias com a Capes e o CNPq, que exigem contrapartidas para os repasses. Elas normalmente conduzem políticas do governo que está no poder, mas como são instituições totalmente consolidadas, dá para manter equilíbrio. Muitas ações já estão estabelecidas e sofrem pequenas variações.” Borges acrescenta que a Fapemig concedeu 7 mil bolsas de estudo e financiou 1.200 eventos acadêmicos em 2009. “Investimos R$ 232 milhões, orçamento dez vezes maior que o de sete anos atrás.”
Almeida Guimarães justifica a prioridade que a Capes confere à formação de pós-graduandos nas áreas de engenharia e computação: “Estamos falando de áreas com alto índice de empregabilidade em vários setores e que permitem gerar distribuição de renda”. Das 45 mil bolsas concedidas pela agência em 2009, cerca de 6,5 mil foram destinadas a programas de mestrado, doutorado e pós-doutorado em engenharia. É a maior participação entre os segmentos contemplados pela Capes: ciências biológicas ficaram em segundo lugar, com 4.384 bolsas, seguidas de ciências agrárias (3.733), medicina (3.408), letras e linguística (1.990), química (1.629), astronomia e física (1.249), ecologia e ambiente (738), entre outras.
Não por acaso, o Brasil tornou-se protagonista internacional no desenvolvimento de tecnologias e inovações em biocombustíveis, prospecção de petróleo, alta computação para o sistema financeiro, medicina tropical, odontologia, agronegócio e indústrias aeronáutica e automotiva. Para Brito Cruz, da Fapesp, essas atividades estão diretamente associadas a avanços econômicos e sociais verificados no presente e esperados para o futuro. “No Brasil, o principal resultado trazido por pesquisa tecnológica foi o biocombustível. O etanol de cana de açúcar permitiu que se fizesse aqui o que nenhum outro país conseguiu, que é substituir a gasolina por um combustível mais limpo em grande quantidade. Há também o avanço na produtividade de alimentos, assunto de extrema relevância nos próximos anos, com a perspectiva de aumento da população mundial.”
O coordenador do programa Pró-Engenharia da Capes, Sandoval Carneiro Junior, diz que a atual demanda por engenheiros no mercado de trabalho permite prever que a distribuição de bolsas à área aumentará nos próximos anos, mas é preciso que o perfil do curso de engenharia seja mais atraente para o jovem ainda na graduação. “Os dois primeiros anos do curso são muito engessados, com pesadas disciplinas de matemática e física. Há muita desistência. O estudante de medicina bota o jaleco branco e vai ser médico desde o início. Mas estamos trabalhando com o Ministério da Educação e a Confederação Nacional da Indústria com a proposta de oferecer bolsas já na graduação e também para modificar a metodologia do curso.”
Wilson Alves Sparvoli, de 25 anos, mestrando em filosofia da Universidade de São Paulo (USP), discorda da priorização às engenharias. Com bolsa padrão da Capes, de R$ 1.200,00 por mês, para a elaboração de tese sobre o pensamento dos filósofos racionalistas René Descartes (1596-1650) e Gottfried Leibniz (1646-1716), ele estranha que as áreas de exatas tenham maior peso na definição da política de fomento à pesquisa. “Sinto que o apoio a humanidades é desvalorizado em relação às áreas técnicas e com mais apelo de mercado. Não dá para entender qual é o critério de avaliação das agências ao manter o mesmo prazo de pesquisa e cobrar o mesmo relatório de produtividade para programas de filosofia e engenharia.”
As agências públicas de fomento também investem nas chamadas “pesquisas induzidas”, com editais convocando grupos de estudiosos de diferentes organizações ou empresas para a elaboração de pesquisas conforme a orientação do governo. Almeida Guimarães destaca o investimento de R$ 600 mil por ano da Capes num projeto de desenvolvimento de estudos e formação de recursos humanos sobre TV digital, do desenvolvimento de tecnologias para a fabricação interna de componentes eletrônicos a questões de transmissão. “Foi uma demanda das empresas. O sistema da TV digital está aí e poucos profissionais estão gabaritados para atuar. Mandamos gente estudar no Japão e concentramos grupos de pesquisadores para desenvolver um novo programa de pós-graduação em engenharia que atenda à demanda do Estado nesse setor.”
Nas próximas semanas, a agência vai lançar um edital focado na extensão da fronteira marítima do país. Serão cerca de R$ 40 milhões para financiar, por quatro anos, 100 bolsistas de doutorado em áreas como biologia do mar, engenharia naval, petróleo e gás e defesa. “O Brasil ganhou as 200 milhas marítimas [zona econômica exclusiva] e a Marinha está desesperada porque não tem como explorar isso. Vamos lançar um enorme edital para preparar o país para uma nova fronteira de desenvolvimento”, diz Almeida Guimarães.
Com editais semelhantes, desde 2007, o CNPq formou 124 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), que também trabalharam soluções para TV digital, engenharia naval, prospecção de petróleo em alto mar, biocombustíveis. O INCT de Reabilitação do Sistema Encosta-Planície, baseado no Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ), recebeu R$ 3,3 milhões para financiar quatro anos de estudos de mais de 100 pesquisadores de várias universidades brasileiras, o que inclui bolsas a estudantes de engenharia civil e geotécnica, compra de equipamentos para laboratórios e cobertura de viagens para participação em congressos no Brasil e no exterior.
Segundo o coordenador do INCT da Coppe-UFRJ, professor Willy Alvarenga Lacerda, o grupo fez a identificação das novas áreas com risco de deslizamento em Angra dos Reis após o desastre do fim do ano passado, e está trabalhando com as prefeituras do Rio de Janeiro, Niterói e Duque de Caxias em estudos de reabilitação de encostas degradadas por erosões ou escorregamentos. “A partir do nosso trabalho técnico, o poder público pode tomar decisões sobre obras e interdição de áreas perigosas.” Como exigência do edital, o grupo também desenvolve livros didáticos sobre os assuntos pesquisados.
Desde janeiro à frente do CNPq, principal agência federal de apoio à pesquisa e formação de recursos humanos na área tecnológica e de inovação, o físico Carlos Aragão defende a proximidade entre universidade e empresa, inclusive com as agências de fomento cumprindo papel de repassadoras de recursos públicos não reembolsáveis a companhias inovadoras.
“Com a Lei da Inovação (nº 10.973, de dezembro de 2004, regulamentada em outubro de 2005 pelo decreto nº 5.563) , empresas recebem recursos do Estado e devolvem em forma de resultado, de inovação, que ajuda a aumentar a produtividade, criar mais empregos”, diz Aragão. “Hoje em dia, é possível dar dinheiro para projetos considerados de natureza estratégica via financiamento não reembolsável da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos, órgão do MCT]. Outros incentivos, como contrapartidas tributárias, também são muito bem-vindos. A discussão existe no setor e a gente espera que a iniciativa privada contribua cada vez mais para esse debate. Não entramos na seara tributária, que teria de ser discutida pela área econômica, mas no futuro [o fomento de agências como o CNPq] poderia repercutir nisso.”
Esse é um dos assuntos que vão alimentar as discussões de autoridades, formuladores de políticas públicas, pesquisadores, cientistas e representantes da comunidade acadêmica e do universo empresarial durante a 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, agendada para os dias 26, 27 e 28 de maio, em Brasília. O evento vai analisar avanços e gargalos do setor nos últimos anos e propor o desenho de nova política nacional centrada no desenvolvimento sustentável para o período 2011-2022. O encontro também vai estipular a expansão dos gastos brasileiros, público e privado, em ciência e tecnologia em proporção ao PIB. “Estamos em 1% e podemos passar dos 2% até 2022, o que nos coloca num patamar respeitável no mundo”, afirma Aragão.
Na área de fomento à produção científica, o plano decenal – que vem sendo discutido desde o início deste ano em reuniões técnicas, seminários preparatórios e conferências em etapas municipais, estaduais e regionais – vai trazer tópicos como a aceleração dos lançamentos de programas de pós-graduação, a formação de mais mestres e doutores, mais dinheiro para as agências e fundações de fomento à pesquisa, regras mais flexíveis para a concessão de bolsas de estudo e até a aprovação de leis que autorizem o investimento de recursos públicos não reembolsáveis em companhias inovadoras.