A Universidade Federal de Santa Catarina completa cinquenta anos em 2010. É muito importante analisar, escrever e publicar a sua breve história de cinco décadas, já que se pode “compreender o presente pelo passado” e ao mesmo tempo entender “o passado pelo presente”, abrindo, assim, uma perspectiva para o futuro. A Universidade, chamada de “Máxima Casa do Saber” nos países de língua hispânica, gera e distribui a ciência e o conhecimento que, por sua vez, devem ter como objetivo primordial levar suas populações a uma emancipação. “Não se pode negar”, dizia Marc Bloch, “que uma ciência nos parecerá sempre ter algo de incompleto se não nos ajudar, cedo ou tarde, a viver melhor”1.
No entanto, a história não é linear e muito menos feita tão somente pelos detentores de cargos administrativos. Michelet, já no século XIX, defendia a história na perspectiva das classes subalternas, ou seja, “daqueles que sofreram, trabalharam, definharam e morreram sem ter a possibilidade de descrever seus sofrimentos”. Voltaire, protestando contra o relato dos acontecimentos a partir da atuação de autoridades, dizia que, “de 1.400 anos para cá, não houve nas Gálias senão reis, ministros e generais”, já que só deles se falou. Daí que o livro dos cinquenta anos da UFSC tem de levar em conta a todos para interpretar melhor o mundo, para ajudar a mudar a vida, para reconhecer raízes e processos, para defender verdades, para denunciar mecanismos de opressão e, por fim, para fortalecer a luta libertária2.
Porém, parece estar em curso uma fraude sobre a história dos 50 Anos da UFSC. Em reunião de Diretores de Centro com o Reitor, para tratar do projeto da escrita da história, por volta do mês de junho de 2009, foi apresentada a proposta de se contratar uma empresa de jornalistas (sic) para escrever sobre os cinquenta anos de nossa instituição. Terceirizar a história das cinco décadas de existência da UFSC, tendo a universidade um curso de história e outro de jornalismo, é um acinte à nossa inteligência e um desrespeito à nossa própria instituição. Obviamente que nestas condições o contratante diria ao contratado o que ele deveria relatar e omitir, enfatizar e ocultar, louvar e demonizar. Essa ideia, um verdadeiro absurdo, foi rejeitada, não pelos integrantes daquele encontro, mas sim pelas imediatas repercussões negativas que teve entre algumas pessoas. Infelizmente, o Departamento de História da UFSC, com exceção de dois professores, silenciou diante de tamanha aberração.
Lembro aos organizadores das “Comemorações dos 50 Anos da UFSC” que, para escrever a história de nossa instituição, é preciso levar em conta, entre outras coisas, todas as forças que atuaram dentro da universidade, sejam elas sob o aspecto político-ideológico de esquerda, sejam de direitad+ os vinte anos da ditadura militar, com a censura e a repressão dos serviços de inteligência contra os trabalhos dos docentes, dos técnico-administrativos e dos estudantesd+ o Decreto-Lei 477 e as punições aos alunos, bem como as razões das mesmasd+ a participação do DCE na Novembrada e a repressão às manifestações populares em defesa da liberdade dos estudantes pela polícia do governador biônico Jorge Bornhausend+ as moções de apoio do Conselho Universitário ao Ato Institucional n. 5d+ o atrelamento da educação aos interesses dos Estados Unidos, chegando-se ao ponto de se ter uma disciplina obrigatória – Estudo de Problemas Brasileiros, EPB I e II –, em todos os cursos de graduação e pós-graduação, com duração de dois semestres, cujos programas foram elaborados a partir dos manuais da Escola Superior de Guerra do Brasil (ESG), que por sua vez recebia do National War College e do Industrial College of the Armed Forces, ambas escolas de Washington, os fundamentos da ideologia de segurança nacionald+ a redemocratização da universidade com eleições para a reitoria, bem como para os demais cargos, e a interferência do poder econômico e político nas escolhas dos mesmosd+ a corrupção interna – seja com a promessa de cargos e vantagens, seja com festas e churrascos comprometedores – que permeia de cima a baixo as eleições para a reitoriad+ as greves e a grande estratégia da ditadura militar em tentar transformar a entidade de autárquica em fundacional para poder privatizá-lad+ a pós-graduação e sua internacionalização em prejuízo da nacionalizaçãod+ o projeto de privatização da universidade pública do governo FHC e a resistência da comunidade da UFSCd+ o sindicalismo de docentes e técnico-administrativos juntamente com o movimento estudantil na defesa da universidade pública, gratuita e de qualidaded+ o ensino, a pesquisa e a extensão e o consequente ganho de qualidade de vida na regiãod+ por fim, a estratégia nacional-desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek ao criar a UFSC, pensando no crescimento do sul do país. Estes são apenas alguns pontos, entre tantos outros, que precisam ser pesquisados, tratados e escritos. Trabalho longo, árduo e de muita pesquisa. Inclusive de história oral. Alguém ousaria, por exemplo, escrever a história da UFSC sem ler com atenção todas as atas do Conselho Universitário? Algum Centro de Ensino teria a coragem de contratar um jornalista para narrar a história de sua unidade, sem a realização de uma investigação séria e profunda, alegando simplesmente que o contratado dispõe de técnicas aprimoradas para se expressar, sendo nós professores?
Seria lastimável, sob todos os aspectos, se a história da UFSC se tornasse uma história oficial, com características de relato laudatório e hagiográfico. Ou seja, uma longa série de fatos e fotos de ex-reitores com suas honrarias e obras. Só um deles carrega dezoito medalhas, vergado para o chão feito acólito em veneração, tamanho o peso do metal.
Espero que a história da UFSC, nos seus cinquenta anos, não se torne a história oficial dos magníficos, dando a impressão de que nestas cinco décadas por esta instituição só passaram reitores, pró-reitores, diretores de centro e chefes de departamento. Que a história da universidade de 2010 não seja a árvore de Natal do Dário Berger de 2009. O Ministério Público Federal, por certo, estará atento a tais gastos, principalmente com a EdUFSC, e, por outro lado, as resenhas encarregar-se-ão de analisar criticamente o conteúdo do livro da história do 50 Anos da UFSC.
Em tempo: A Secretaria de Cultura e Arte e a Pró-Reitoria de Pós-Graduação, que programaram uma série de conferências com “grandes nomes da arte e do pensamento internacionais”, deveriam dar-se conta de que a UFSC, pelo menos geograficamente, está situada na América Latina, o continente do “novo”, na concepção de Noam Chomsky. Para tanto, deveriam convidar grandes intelectuais, também, da ciência política, da sociologia e da história latino-americana para participar da comemoração dos 50 Anos. Sugiro à douta comissão os nomes, por exemplo, do cientista político Atílio Borón, do sociólogo Pablo González Casanova, do historiador Adolfo Gilly do escritor Gabriel García Márquez, do pensador Aníbal Quijano, entre tantos outros. A festa não só precisa, mas deve, também, ser plural.
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NOTAS:
1 BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 45.
2 BLANCO, José Joaquín. El placer de la história. In: PEREYRA, Carlos (Org.). Historia para qué? México: Século XXI, p. 86.