A ilha de Santa Catarina, que é parte de Florianópolis, esta capital adorável que leva o nome de um tirano, sempre foi conhecida por suas belezas naturais. São 42 praias, algumas delas ainda belíssimas, quase sem a depredação humana. Por conta disso, nos anos 80 começou uma grande explosão migratória de gente que queria viver num lugar que tivesse todas as modernidades de uma capital, mas que conservasse aquele ar provinciano de um lugar pequeno. Por ser uma ilha – 424 quilômetros quadrados/ 54 km de comprimento por 18 de largura – logo, finita, as pessoas que para aqui vieram acreditavam que a vida seria sempre como foi: pacata, segura e cheia de beleza. Mas, hoje, com 408 mil habitantes e 250 mil carros, a cidade é cotidianamente um caos, com apenas algumas “ilhas” de conforto reservadas aos donos do capital. Quando chega o verão, o caos triplica, com a ilha chegando a abrigar um milhão de pessoas, que disputam a péssima malha viária, a água e a luz.
Por conta de todos os problemas causados pela ocupação desordenada da ilha, somado ao turismo predador, as comunidades vivem em pé de guerra com o poder público, porque, como é sabido, os governantes, no mais das vezes, não estão nem aí para as gentes. Eles governam para um grupo específico de pessoas “os ricos” e a maioria da população precisa ganhar na luta aquilo que é seu direito. Agora, neste ano de 2010, uma batalha de titãs está para ser travada: é a do Plano Diretor, construído durante três anos pelas comunidades organizadas. Nele, a população exige, entre vários pontos, o fim da verticalização da ilha, o respeito ao ambiente natural e a melhoria da mobilidade urbana. Mas, a prefeitura, depois de incentivar a participação de todos, contratou uma empresa/fundação de fora da cidade que será a responsável pelo desenho do Plano Diretor. Isso gerou revolta entre as gentes que prometem fazer barulho se a proposta feita por elas não for acatada.
A última ação da prefeitura, por exemplo, foi reunir na FIESC (Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina) um grupo de pessoas que nunca participou do processo do plano diretor, mas que foi convidada a dar palpites no último minuto do “segundo tempo”. Segundo Ataíde Silva, da Associação dos Moradores do Campeche, era uma multidão de corretores de imóveis, especuladores e outros tipos jamais vistos no processo participativo e que certamente serão os que terão mais poder no fechamento do projeto final.
PREFEITURA DESRESPEITA A LEI – A idéia do plano diretor participativo sempre foi uma reivindicação das comunidades e em 2006 foi acolhida pelo IPUF, órgão da prefeitura, sendo implementada a partir de audiências públicas oficiais. Depois, foram criados grupos gestores nos distritos e um grupo gestor municipal, tudo oficial e dentro da lógica da institucionalidade. Este processo todo durou três anos, com realização sistemática de reuniões nas comunidades, oficinas, encontros, debates. Durante este tempo todo, uma infinidade de gente saiu de suas casas, entregou suas noites, fins-de-semana e horas de trabalho para produzir um desenho ? o mais democrático e participativo possível ? das comunidades onde viviam. Tudo foi pensado. Como seriam as ruas, a mobilidade, o tamanho dos prédios, o saneamento. Porque a coisa mais racional para quem administra uma cidade é ouvir quem nela vive, pois nada melhor do que aquele que sofre o cotidiano e conhece seu lugar de morada para encontrar saídas para os problemas que surgem com o crescimento da cidade.
Mas, terminado este processo, depois de tudo pensado e decidido, a prefeitura decidiu entregar para uma empresa privada – preterindo inclusive seus próprios técnicos – o fechamento do plano. Não bastasse isso, para realmente fechar a proposta de organização da cidade, realizou outros encontros fora do que estava acordado, como, por exemplo, um no Hotel Castelmar, em horário comercial, e outro na Fiesc. Ora, ao fazer isso a prefeitura privilegiava uma parcela da sociedade, os empresários, que muito pouco participou no decorrer dos três anos de discussão. Essa atitude provocou nas comunidades uma sensação muito forte de ilegitimidade. ?Nós vamos entrar na justiça para garantir o respeito ao que foi decidido pelas comunidades. Essa empresa só tinha que sistematizar o que a população pensou e não fazer outra coisa?, insiste Ataíde.
E foi justamente nestas duas reuniões que a Cepa (fundação contratada para fazer o plano) apresentou a proposta que choca com quase tudo o que as comunidades discutiram. No plano da empresa, apresentado inclusive em encarte no jornal de maior distribuição na cidade, a proposta principal é crescer. Ou seja, completamente na contramão das propostas atuais de organização urbana, que criticam o verticalismo e o crescimento exacerbado. Além disso, divide a cidade em zonas metropolitanas, de multicentralidade (que significa grande densidade populacional) e de patrimônio cultural (poucas comunidades no sul, na lagoa e no norte). Nas duas primeiras tudo está permitido em nome do progresso e nas culturais, alguma coisa pode se salvar.
No caso do bairro do Campeche, a Cepa estabeleceu que será uma zona de multicentralidade, podendo haver construções de vias expressas e prédios de mais de quatro andares. Mas, a comunidade não decidiu por isso. Pelo contrário. A proposta é de manter a via principal como está, e abrir espaço para ciclovias e outras vias de acesso a comércio, impedindo assim o crescimento sem medida e a imobilidade causada pelo excesso de carros. No que diz respeito a prédios também está vetada a verticalização. A comunidade tem bem claro que esta proposta dos empresários de encher o bairro com até 400 mil pessoas é um delírio só possível na cabeça de quem lucra com a construção civil. “Nossa comunidade só tem água para 180 mil pessoas. Não dá para brincar com os recursos naturais”. E isso se aplica a qualquer outra comunidade que esteja sob as vistas predadoras dos empresários da construção.
O que os lideres comunitários perceberam foi que a empresa ainda usou as informações dadas pela comunidade para valorizar certas áreas para a especulação. Exemplo: quando a população lutou por ter um parque na região da penitenciária, os que mandam na cidade decidiram alterar o zoneamento para aquela região, permitindo que fossem construídos prédios em volta da área do parque. E assim pode acontecer com outros espaços que historicamente são reivindicados pela comunidade. Nesse sentido, os ricos usam a luta do povo para tornar ainda mais valorizado os espaços que serão destinados a eles. É um jogo absolutamente desigual.
No projeto da CEPA, divulgado em jornal diário, tudo parece muito bonito, mas, nele, não aparecem as letras pequenas, no caso, o micro-zoneamento. Assim, um desavisado, ao ler as diretrizes pode achar que está tudo bem, uma vez que o discurso, como sempre, apela para a idéia de desenvolvimento, como se preservar e organizar a vida de maneira mais natural fosse coisa de louco. A empresa propõe conservação da paisagem, corredores de articulação da mobilidade, regiões de acelerada transformação e inovação (nome bem típico do neoliberalismo) e descentralização da ocupação. Mas, o panfleto não diz sobre como isso será feito e para o benefício de quem.
A REAÇÃO POPULAR – Para as comunidades que se debruçaram sobre o Plano Diretor durante três anos seguidos esta proposta da prefeitura é farsesca e ilegal. E, sendo assim, a única resposta deve ser a luta. Se a empresa contratada está apresentando apenas uma proposta de macro zoneamento, as comunidades já definiram o micro e o macro. Ou seja, como vai ser o sistema viário de cada lugar, que ruas devem ser criadas, como tem de ser as construções, quantos andares, que áreas precisam ser preservadas. As gentes que aqui vivem desde sempre sabem muito bem onde tem alagamento, onde verte a água, onde a chuva prejudica. O povo sabe do lugar onde está. E não vai permitir que sua palavra seja negada.
No caso do Campeche, já são vinte anos discutindo um plano diretor. E, desta vez, foi um processo proposto pela própria prefeitura. Não cabe, pois, faltar com a palavra. Ou o que foi decidido pela comunidade é posto em prática, ou se haverá de levantar em rebelião.
Isso vale também para a proposta de saneamento que está proposta no plano o qual prevê grandes obras, emissário jogando esgoto no mar e outras coisas faraônicas, só desejadas pelas empresas de construção. Já as comunidades decidiram que querem um saneamento alternativo, pequenas estações de tratamento nos bairros que não poluem rios nem o mar. As soluções existem e já foram colocadas no papel depois de inúmeras oficinas realizadas pelo Movimento Saneamento Alternativo (MOSAL) que reúne várias entidades e associações de bairros de Florianópolis. Sendo assim, não se permitirá qualquer mudança apenas para privilegiar o empresariado e os especuladores.
O MEIO AMBIENTE – A cidade de Florianópolis é conhecida como um lugar mágico, de belezas inacreditáveis e a idéia dos empreiteiros é transformar o lugar num monstro de concreto. Mas, a população já decidiu que não quer isso. Pelo contrário, quer preservar o que tem de mais belo que é a natureza. Se, para isso for necessário sair da roda viva do progresso sem limite, muita gente está disposta a aceitar. O povo quer segurança, vida saudável, tranqüilidade e beleza. Pelo menos no Campeche isso já é decisão comunitária. E em outros lugares também, o que torna a proposta da prefeitura uma aposta na minoria rica que mal vive a cidade.
Mas, como a população da capital já viu escaparem os mega empresários que falsificaram licenças ambientais no que ficou conhecido como Operação Moeda Verde, levada a cabo pela Polícia Federal, as barbas estão de molho. Porque boa parte destas figuras está por trás dos planos da prefeitura. Eles estão pouco se lixando para a natureza ou para a segurança ambiental das pessoas. Querem lucros e nada mais. São os mesmos que privatizam os costões, os aqüíferos, que destroem a paisagem e erguem espigões. Alguns acabam tornado-se inúteis como os da Praia Brava, que era um dos lugares mais lindos da ilha e hoje é uma nesga de concreto. Foram tantos prédios numa destruição tão brutal daquele espaço que nada restou da beleza que havia. Já ninguém mais quer morar lá.
Agora, no Campeche, segundo informações do presidente da Amocam, a Casan, que está construindo a rede coletora de esgoto no bairro, autorizou a empresa privada que faz o serviço a colocar os canos nas ruas que passam por cima das dunas, portanto, ilegais, colocadas em área de preservação. “O que isso significa? Que valeu a pena invadir as dunas?”
O que precisa ficar claro para a população é que estão em questão dois projetos bem definidos. Um deles foi discutido e decidido democraticamente pelas pessoas que vivem nesta cidade, nos bairros, nas comunidades, num processo de longos anos. O outro foi desenhado a portas fechadas, por empresa alienígena, levando em conta apenas os interesses dos empresários, que em nada se encontram com os interesses da população.
Agora está posto o desafio para toda a população. Ou as gentes se acordam e defendem uma cidade onde se possa viver com segurança e conforto, ou a ilha de Santa Catarina estará fadada a acolher – nos empreendimentos pomposos – uma pequena fatia de ricos, em detrimento da destruição da vida da maioria.
Não precisa ser muito esperto para ver que os desastres ambientais, que estão acontecendo cada dia com mais freqüência, tem relação visceral com a maneira como os seres humanos organizam suas cidades. Casas coladas na beira-mar são levadas por tsunamis, prédios altíssimos desabam sob os temores de terra. Mas, nos lugares onde as construções são baixas e se respeita a natureza, os desastres sempre causam muito menos dano e as vidas e salvam.
Aos florianopolitanos cabe decidir por um bom viver para todos e não só para alguns.