A bordo de um avião da United Airlines para Nova York, o matemático Welington de Melo pediu um copo de vinho. Seu companheiro de viagem, Artur Avila, pediu outro. A aeromoça desconfiou: “Que idade você tem?” Artur tinha 19 anos, com jeito de menos, e ficou sem o vinho. Era a sua primeira viagem profissional. Havia sido confiado aos cuidados de seu orientador de doutorado, mas, em terra, sua mãe ainda não se tranquilizara inteiramente com a decisão de deixá-lo partir para os Estados Unidos.
Sob lei seca, Artur desembarcou no aeroporto JFK e seguiu com Melo para a Universidade de Stony Brook, no litoral norte de Long Island, a cerca de cem quilômetros dali. Corria o ano de 1999. Os dois iam ao encontro de Mikhail Lyubich, codiretor do Institute for Mathematical Sciences, centro de excelência em pesquisa matemática. Lyubich vinha da Ucrânia, onde a reputação de matemático brilhante não o livrara dos obstáculos pequenos e grandes de um judeu na antiga União Soviética. Mantido longe dos grandes centros acadêmicos do país, fora descoberto por um colega americano e emigrara para os Estados Unidos, onde agora integrava a direção do IMS. O encontro havia sido combinado meses antes, quando Lyubich, a convite de Melo, viera ao Rio participar de uma conferência no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, o Impa.
Ao receber os brasileiros em Stony Brook, Lyubich acabava de escrever uma série de artigos em que provava os seus achados mais importantes. “Pouquíssimas pessoas compreendiam de fato do que se tratava”, comentou recentemente, “e Welington era uma notável exceção. Foi dele a proposta de que o Artur explorasse essa linha de pesquisa.” Melo, na época com 53 anos, havia se doutorado em 1972, e Lyubich, então com 40 anos, obtivera o PhD em 1984. Artur, nascido em 1979, era um estudante ainda à cata de um bom problema para sua tese de doutorado. Até a véspera, chegava ao Impa levado pela mãe, Lenir, que achava mais prático esperar por ali do que voltar para buscá-lo.,
Os representantes das três gerações passaram um mês jogando ideias de lá para cá, num estilo de fazer matemática que só pede um quadro-negro, giz e espaço para andar de um lado para outro. As conversas, diárias, aconteciam nas salas do instituto, na casa de Lyubich, em restaurantes ou durante as caminhadas pelos bosques em torno da universidade. A colaboração entre eles era possível porque a matemática é refratária a hierarquias. “A prova é a prova”, diz Artur, referindo-se ao caráter irrefutável da verdade. Um jovem que acaba de chegar pode falar de igual para igual com gente já estabelecida. Ou mais que isso: “Volta e meia, assombrado, eu percebia que o Lyubich e eu estávamos um pouco atrás do Artur”, lembra Melo. “Ele era tão jovem… Eu me esquecia disso e tomava um susto.”
Um dia ele e Artur foram a Nova York ouvir a palestra de um matemático. No Village, bairro conhecido pela fartura de restaurantes, saíram atrás de um lugar para comer. Melo se lembra da impossibilidade de conciliar os gostos: “Eu perguntava: ‘E esse coreano, Artur?’, e ele respondia: ‘Nunca provei.’ ‘Esse italiano?’ ‘Não conheço.’ Imagine, não conhecer comida italiana. O Artur acabou almoçando no McDonald’s. Ele sabia pouca coisa do mundo.”
Ao cabo de um mês de intensas discussões, o trio divisava uma estratégia clara para resolver o problema que os absorvia, mas a prova ainda não estava ao alcance. Havia um obstáculo que se recusava a ceder. Lyubich e Melo decidiram deixá-lo nas mãos do garoto. “Isso foi em março”, lembra Artur. “Fiquei com o problema na cabeça e uns meses depois, em setembro ou outubro, tive uma ideia esquisita.”
Um teorema não pode ser desfeito, escreveu o grande matemático inglês G. H. Hardy. A matemática é a única ciência que lida com a verdade, o que se comprova em qualquer biblioteca: a literatura matemática é perene, enquanto a das outras ciências se torna rapidamente obsoleta. Dois mil anos de história não acrescentaram uma ruga ao teorema de Pitágoras. Salvo por interesse histórico, ninguém mais estuda o sistema solar de Ptolomeu. Já Euclides continua de pé. A matemática funciona por acúmulo, e não por substituição.
A validade permanente das verdades matemáticas se relaciona com o fato de ela estar apartada do mundo real, fora do tempo e das circunstâncias do universo. O matemático e filósofo francês Henri Poincaré escreveu que a descoberta matemática é o processo mental que menos toma de empréstimo elementos do mundo exterior. A mente se alimenta da mente. O início clássico de um tratado de geometria diz: “Vamos considerar três sistemas de coisas. As coisas que compõem o primeiro sistema nós as chamaremos de pontosd+ o segundo, de linhasd+ o terceiro, de planos.” Coisas. A matemática obriga a lidar com os objetos mais remotos e inumanos que a mente dos homens já concebeu, diz o belga David Ruelle.
Artur Avila, 30 anos, barba sempre por fazer, doutor em matemática pelo Impa, vive entre a França e o Brasil. Em Paris, trabalha no Centre National de la Recherche Scientifique, o CNRS, instituto estatal de fomento à pesquisa. No Rio, é pesquisador do Impa. Vem acumulando prêmios cada vez mais importantes. Os grandes centros de pesquisa matemática do mundo convocam a sua presença e muitos gostariam de contratá-lo. Quando um não-iniciado pede que ele explique o que faz, Artur coça os olhos, gesto que costuma ser acompanhado de um longo silêncio. “O meu trabalho é um pouco difícil de explicar. Eu estudo a estrutura de operadores. Faz sentido, operadores? Operador é uma matriz infinita e simétrica. Esse operador tem um espectro…”
E assim vai, mas ninguém precisa se sentir constrangido. É comum os matemáticos não compreenderem o que um colega faz. Existe um trabalho de um vietnamita de 37 anos, Ngô Bao Chau, parado há mais de um ano na mesa do editor-chefe de uma prestigiosa revista de matemática. As implicações do artigo parecem ser formidáveis, mas todos os especialistas consultados para referendar a publicação disseram-se incompetentes para atestar se está correto ou não.
Carlos Gustavo Tamm Moreira, conhecido como Gugu, colega e colaborador de Artur, um sujeito bonachão de 36 anos que distribui sua paixão entre a matemática, o Flamengo e o Partido Comunista, conta uma anedota de quando se candidatou a vereador pelo PCB. O programa eleitoral lhe dava 18 segundos para se apresentar ao público. Acelerando a toada, ele metralhava: “Olá, eu sou o Gugu, candidato a vereador pelo Partidão com o número 21602. O meu trabalho vocês já conhecem: eu provei que as interseções estáveis de conjuntos de Cantor regulares são densas na região onde a soma das dimensões de Hausdorff é maior do que 1.” É uma brincadeira, mas traduz a natureza rarefeita do mundo habitado por matemáticos.
A física estuda o mundo naturald+ a biologia, os organismos vivos. São ciências cujo objeto está ao alcance da compreensão do leigo. A matemática é um pouco diferente, embora imaginemos conhecê-la. Ela seria aquilo que aprendemos na escola – aritmética, geometria, álgebra, análise combinatória -, apenas levado às últimas consequências. Em teoria, a proposição não está errada. Na prática, a diferença entre a matemática da escola e a dos centros de pesquisa se mede não em graus de complexidade, mas em saltos de qualidade, como se a matéria dos bancos escolares fosse a lagarta e a alta matemática, a borboleta. Imagine-se alguém que jamais tivesse visto a segunda. Para essa pessoa, seria impossível, da lagarta, intuir a borboleta. Essa pessoa somos todos nós, os não-matemáticos.
O trabalho de Artur é pensar borboletas. No seu vocabulário, elas são chamadas de objetos – infinitos, complexos, caóticos, únicos, imensos, previsíveis, prováveis, elegantes, belos, monstruosos. Esses adjetivos, todos eles, integram o léxico dos matemáticos, alguns com uso preciso e técnico, outros como recurso para descrever atividades do espírito. Os objetos só existem como coisa mental. Ninguém sabe onde habitam. Os matemáticos ainda não chegaram à conclusão se o que fazem é inventar ou descobrir os seus objetos. “Onde está tanta ordem?”, é a maneira como Artur formula a questão, que de resto não lhe interessa responder por não ser um problema matemático.
A moeda corrente da matemática é o que alguns chamam de crédito-teorema, que serve para valorar a quantidade e a qualidade dos problemas resolvidos. Por essa conta, na geração de Artur, pouquíssimos matemáticos acumularam tantos pontos. De janeiro a novembro do ano passado, ele produziu no mínimo seis grandes trabalhos. Na Califórnia, decidiu enfrentar um problema surgido em 1964 e popularizado em 1980, depois que um físico prometeu dez martínis a quem o solucionasse. Em colaboração com uma colega ucraniana, Artur encontrou a prova do que ficara conhecido na literatura como “o problema dos dez martínis”. Na mesma semana em que demonstrou ser falsa uma conjectura na qual matemáticos vinham trabalhando havia anos, teve uma iluminação que lhe permitiu avançar significativamente num de seus projetos mais ambiciosos: construir, sozinho, a teoria geral de um problema nascido na física.
Artur, como vários matemáticos formados no Impa, trabalha com sistemas dinâmicos, área que investiga as leis de processos que evoluem no tempo. Surgiu com os estudos de Newton sobre o movimento dos planetas. Hoje, teoremas de sistemas dinâmicos são ferramentas para descrever a evolução de epidemias, provar que toda previsão meteorológica de mais de cinco ou seis dias vale tanto quanto uma moeda lançada no ar ou descrever impactos demográficos produzidos por essa ou aquela mudança de parâmetro. Tome-se uma população de lobos. Se existem poucos espécimes, haverá fartura de comida e a população crescerá. Inversamente, um número grande de lobos produzirá escassez de alimentos e decréscimo da população. O sistema dinâmico descreverá a maneira como essa população progride: trata-se de saber, a partir das condições do presente, o que esperar do futuro.
Muitas vezes o que se espera é a regularidade. Uma bola lançada numa cuia estacionará no fundo. Um pêndulo oscilará entre dois pontos. Sistemas com um número finito de estados, que repetem padrões, são chamados de regulares. Existem sistemas dinâmicos que se comportam de maneira mais interessante, e estes constituem a especialidade do Impa. A princípio, eles evoluem de maneira previsível. Subitamente, porém, de maneira violenta, deixam de ter um padrão reconhecível e se tornam irregulares. São sistemas extraordinariamente sensíveis a pequenas discrepâncias iniciais. A sabedoria popular diz: “Por falta de um prego, perdeu-se a ferradurad+ por falta de uma ferradura, perdeu-se o cavalod+ por falta do cavalo, perdeu-se o cavaleirod+ por falta do cavaleiro, perdeu-se a batalhad+ por falta da batalha, perdeu-se o reino.” Sistemas dinâmicos preveem o impacto do prego sobre a instabilidade do reino.
Quando o comportamento de um sistema deixa de apresentar qualquer padrão, ele é chamado de caótico. Caos pode significar muitas coisas. No caso, é um conceito que exprime tudo o que não se pode saber sobre o futuro. Na ausência de certezas, descreve-se, com detalhamento infinito, como o sistema se modificará: até este ponto ele evoluirá de maneira regular, oscilando entre tais e quais estadosd+ a partir deste ponto será caótico, apresentando estas e aquelas características.
A fumaça do cigarro sobe como uma fina coluna até que, por razões que independem da brisa ou do movimento da mão, ela se esgarça e passa a formar arabescos de trajetória imprevisível. É uma boa imagem para um sistema complexo que evolui da regularidade para o caos. Tomando-se a primeira molécula de fumaça saída do cigarro, pode-se prever sem dificuldade qual será sua posição futura dali a um segundo. Dali a 10 segundos, porém, a molécula terá se esgarçado, e será impossível antecipar onde estará.
Lyubich, Melo e Avila são dinamistas da não-regularidade, especialistas em caos. Haviam se reunido em Stony Brook para estudar uma determinada classe de sistemas de características caóticas. Não estavam preocupados com lobos nem pêndulos. Trabalhavam apenas com modelos matemáticos, mas, por analogia, era como se quisessem compreender a região acima do ponto de dissipação da fumaça. O que acontecia ali?
Usavam uma técnica matemática que permite penetrar, como um batiscafo, nas mais ínfimas estruturas desse espaço. Tomavam um pequeno intervalo da região dos arabescos e o colocavam sob um microscópio puramente lógico. O espaço se ampliava, como um zoom do Google Earth. Ao analisar a ampliação, viam que, dentro da desordem, cercadas de caos por todos os lados, havia pequenas áreas de ordem – pequenas colunas regulares de fumaça, por assim dizer. Punham então este mínimo espaço ocupado pela coluna regular no microscópio e de novo, ao ampliá-lo, encontravam outra vez, por toda parte, fumaça sem forma entremeada por minúsculas ocorrências de fiapos regulares.
Seguiram assim, nesse mergulho vertiginoso por intervalos cada vez menores. Não era novidade que, ao tomar qualquer ponto de um espaço caótico, perto dele sempre se acharia uma janela de ordem. Mas os espaços regulares e caóticos – ou estocásticos, como preferem os matemáticos – aparecem intercalados de maneira complexa, e o que os três fizeram foi mostrar a universalidade dessa organização. Descobriram a lei que rege o comportamento de toda uma classe de sistemas que evoluem para o caos, como se a descrição da fumaça explicasse também a transformação das nuvens, o percurso de um galho na cachoeira ou o giro das folhas num vendaval.
Em janeiro de 2009, dez anos depois de Stony Brook, Artur acordou de madrugada no apartamento do Leblon que comprou com sua mulher, a economista Susan Schommer, uma moça gaúcha que faz pós-doutorado no Impa. “E agora? Tento dormir de novo ou penso um pouco?” Decidiu pensar. Ficou ali, no escuro, olhando para o teto. Do lado de fora, os últimos foliões de algum bloco pré-carnavalesco se arrastavam pela rua, cantando e caindo. Do lado de dentro, nada além de um homem parado na cama, de olhos abertos, ao lado da mulher que dormia.
Contudo, havia movimento. Sem se mexer, Artur começou a girar objetos matemáticos na cabeça, como alguém que contorna uma estátua para vê-la de todos os ângulos. Estava retomando um problema que deixara de lado seis anos antes, por não saber como prosseguir. “Fiquei pensando de maneira gentil”, ele conta. Era um pensamento meio à deriva, sem âncora: “Eu tinha dois objetos, mas não sabia como um se relacionava com o outro. Tinha batido num muro.” Até aquela madrugada, ele só vira o objeto como duas partes isoladas, sem encaixe. De repente, veio: “Mas se eu mudo a perspectiva, ele se revela como isso. Ele é isso. Posso seguir adiante.” A sensação era a mesma de quem se concentra nas formas esfaceladas de um quadro cubista e, dando um passo para trás, quem sabe outro para o lado, consegue finalmente recompor a figura – ali está a mulher, o violão e a partitura. Tudo é uma coisa só.
Ainda no escuro, Artur começou a calcular as consequências do seu novo ponto de vista e percebeu que conseguia produzir muito mais informação. “A narrativa já tinha engordado”, explica. Seu objeto, que até então não revelara muito de si, começou a gerar histórias cada vez mais fantásticas, como se ele tivesse encontrado o segredo daquelas caixinhas de surpresa hermeticamente fechadas que, a um golpe certeiro, abrem-se num festival de bandeirinhas, bonecos de mola e música de circo. Artur ficou excitado, mas voltou a dormir. “Nem anotei, não tenho medo de esquecer as minhas intuições.”
No dia seguinte, decidiu “atacar o objeto por todos os lados” – o vocabulário dos matemáticos é pródigo em metáforas bélicas. “Foram dez dias, dezoito horas por dia. Tecnicamente, era muito difícil, mas a ideia estava lá.” Passava o dia andando em círculos no apartamento. Volta e meia parava, olhava para o teto, fazia uns riscos no papel para ajudar o raciocínio. “A maior parte do trabalho acontece na cabeça. A sensação é de absorção total. Me lembro de abrir um espumante que estava na geladeira. A rolha explodiu, o vinho começou a escorrer e eu não agia, ficava só olhando aquilo e pensando: ‘Não era pra ele estar escorrendo, normalmente isso não acontece…'”
A cada momento, coisas cada vez mais improváveis aconteciam com o objeto – exatamente o que Artur desejava. Ele buscava uma prova por contradição: se estivesse errado, o objeto era monstruoso, “coisas horrorosas aconteciam com ele”. Objetos matemáticos podem ser fáceis de visualizar (um círculo) ou muito complexos (aqueles com os quais Artur quase sempre trabalha), mas, para existir, todos precisam ser dotados de uma característica: ser lógicos. Objeto horroroso é aquele que revela características que acabam por anulá-lo, como se possuísse uma anomalia genética tão grave que tornasse a vida impossível.
“Continuei assim até encontrar uma contradição. Depois de uma semana de trabalho, a prova por absurdo estava feita. Minha conjectura era verdadeira.” Artur acabava de dar um passo significativo para solucionar um problema que se originara na física: a equação de operadores de Schrödinger quase-periódicos – aquilo que tentou explicar depois de um longo silêncio. Até então, tinha-se uma compreensão parcial do problema. Ele intuiu a possibilidade de empregar sistemas dinâmicos para entendê-lo globalmente.
Artur costuma acordar por volta do meio-dia. Trabalha muito na cama e preza o tempo morto. Acha que transporte público é um ótimo lugar para fazer matemática, uma das razões pelas quais não gosta de carros. Já teve ótimas ideias nos longos trajetos do metrô parisiense. Em 2008, durante um voo Rio-Paris, decidiu pegar um problema com o qual andava brigando há dois anos. “Acho que foi entre um filme e outro daquela televisãozinha”, diz. Foi girando as coisas na cabeça e, surpreso, viu que a complexidade se reduzia a uma expressão simples. Quando o avião pousou no aeroporto Charles de Gaulle, tinha resolvido o problema – descobrira mais uma peça do quebra-cabeça de Schrödinger.
Artur prefere “fazer conta de cabeça” – e por “conta” não se entenda tábuas de multiplicação, mas construção de ideias, geografias mentais com vales, picos, dobras, abismos, descontinuidades. “Papel é força bruta. Na cabeça não dá pra manipular objetos muito grandes, e isso me obriga a fazer contas mais simples”, explica. Ele isola as características que mais lhe interessam e descarta o acessório: “Faço uma caricatura do objeto.”
Seu pensamento alterna expressões formais com palavras do dia a dia. “Num paper que escrevi com o Gugu, a gente classificou os objetos como objetos bons, muito bons, excelentes e, quando os excelentes tinham algumas características a mais e se tornavam os melhores objetos possíveis, eram objetos cool.” Também existe “o lado negro”, um lugar onde “você encontra coisas horríveis, particularmente detestáveis, que violam a tua capacidade de compreensão”. Um problema se transforma numa geografia dividida em regiões maçantes, paraísos e infernos. Nos lugares maçantes, todo comportamento é regular. É a Suíça. Nos paraísos, acontecem coisas interessantes e inesperadas. No inferno as provas falham, e é preciso mostrar que tudo lá desaparece, como em Hiroshima.
Jean-Christophe Yoccoz, de 52 anos, é francês. Morou no Brasil de 1981 a 1985, período durante o qual deu aulas no Impa. Em 1994, por seu trabalho em sistemas dinâmicos, ganhou a maior honraria da profissão, a Medalha Fields, dada a cada quatro anos a no mínimo dois e no máximo quatro matemáticos com menos de 40 anos (desde sua criação, em 1936, apenas 48 pessoas ganharam a medalha). Yoccoz lembra um duende irlandês – cheinho, simpático e muito vermelho (no caso, de sol). Casado com uma brasileira, ele passa temporadas no Brasil. “Certamente o Artur é o matemático mais talentoso que já encontrei, pelo menos entre aqueles com quem tive proximidade”, diz ele, numa sala do Impa.
Para explicar as características de Artur, Yoccoz retoma uma velha taxonomia de matemáticos: existem aqueles que constroem teorias e os que resolvem problemas. Artur é um resolvedor, segundo Yoccoz. “Ele tem o talento de um Jean Bourgain ou de um Terence Tao” – dois dos maiores matemáticos da atualidade – “que veem coisas que os outros não enxergam. Você tem um problema insuperável, eles olham e, pumm!, você chega do outro lado.”
A descoberta matemática é um processo misterioso. A capacidade de ver diferente é uma de suas características. A intuição, é outra. Um grande matemático definiu intuição como a capacidade de “saber sem saber”. Ela deriva da imaginação, e afirma “tal propriedade pertence a tal objeto, mas não posso provar”. Alexander Grothendieck, talvez o maior visionário da segunda metade do século passado, e uma das únicas pessoas a quem o epíteto de gênio não parece exagerado, definia-a como a capacidade de “sentir a rica substância por trás de um enunciado”. Olha-se para um lugar onde só existem fragmentos e, subitamente, tem-se a percepção de um corpo, cada pedaço ligado ao outro por uma estrutura subjacente.
A intuição pode desaguar em iluminações – e a matemática está repleta delas. “Todo mundo tem a sua historinha”, diz Marcelo Viana, professor do Impa e colaborador de Artur. Num pequeno ensaio clássico, Poincaré descreve pelo menos quatro das que experimentou, uma delas responsável pela primeira descoberta que lhe trouxe reconhecimento e glória. Aconteceu quando ele ia tomar o ônibus, enquanto conversava com um amigo sobre assuntos sem relação com a matemática. No momento em que tocou o pé no estribo, ele soube que sabia. As iluminações não podem ser induzidas. São sempre concisas, chegam feito um raio e produzem o sentimento inequívoco de certeza. Fazia tempo que Artur deixara de lado o problema que lhe veio à cabeça na noite da insônia. Poincaré não parou um instante para refletir sobre o que acabara de lhe acontecer. Continuou a conversa normalmente.
Outro grande matemático francês, Laurent Schwartz, escreveu que o processo da descoberta matemática é análogo ao da percolação do café. A princípio, a água quente não consegue atravessar a camada densa de pó. Aos poucos, o veio principal se bifurca, e pequenos filamentos se infiltram por outros caminhos. Nada acontece – até que, de súbito, o líquido vence o obstáculo e brota do outro lado. É a ideia.
Artur passa longos períodos de inatividade, dias ou semanas, “e aí vem uma ideia e o trabalho exaustivo começa”. Uma de suas estratégias é trabalhar em vários problemas ao mesmo tempo, “de vários sabores”. Quando um empaca, ele ataca outro. Volta e meia diz que deu sorte, pois acha que a ideia lhe veio à toa, ou ele se embrenhou por um caminho improvável que desembocou numa solução. Mas é claro que as ideias percolavam. Sua mulher tem uma opinião clara a respeito: “Quanto mais o Artur trabalha, mais sorte ele tem.”
Milhares de ideias ocorrerão ao matemático ao longo de sua vida produtiva. Todos dizem que o principal critério para reconhecer imediatamente a superioridade das que se impõem é o fato de serem belas. Matemáticos são mais próximos de artistas do que de engenheiros. “Imagine duas coisas inteiramente distintas, criadas independentemente”, propõe Artur, “e imagine que, por alguma razão misteriosa, você descobre que elas são parte de uma coisa só.” Ele está descrevendo um dos modos do senso estético, ao qual é particularmente sensível.
As ideias discutidas em Stony Brook ganharam uma extraordinária expansão nos últimos anos. “Nas mãos de Artur”, diz Mikhail Lyubich, “elas estão se tornando uma ferramenta universal, uma espécie de cola que une vários problemas aparentemente não relacionados.” Os grandes matemáticos às vezes são comparados a pioneiros e colonizadores. Uns se atiram em terras impensadas e assentam ali um posto avançadod+ outros conectam essas ilhas de pensamento ao corpo da disciplina. Artur é um colonizador.
“Ele tem a capacidade de descobrir relações insuspeitas entre coisas, e é disso que os matemáticos gostam”, diz Viana. A beleza seria essa intuição de uma totalidade. Esse sentimento estético é a peneira que separa o joio do trigo. Por ela só passam os objetos que, por belos, anunciam: Existo. “Passamos a vida pensando em objetos lindos”, diz Yoccoz, com um sorriso de felicidade. “O prazer estético é comparável ao da música.” Grandes matemáticos são estetas, e a beleza será, para todos eles, uma das mais poderosas ferramentas da descoberta. Pelo entusiasmo com que falam do que lhes passa pela cabeça, é como se existisse música e nós, os não-matemáticos, fôssemos todos surdos.
“Matemática é o rigor infinito”, diz Artur. A definição ajuda a compreender sua aversão a falar sobre o que não pensou. Não é incomum ouvi-lo responder “Não sei” ou vê-lo refletir antes de se manifestar sobre uma pergunta trivial. Quando fala, suas palavras tendem a acertar o centro do alvo, onde não patinam. Como, por exemplo, estava abismado com o fato de o governo do Mato Grosso do Sul ter incluído remédios homeopáticos na cesta de drogas de combate à gripe suína, dava a entender que era cético quanto à homeopatia. “Não”, explica com um sorriso. “O princípio da homeopatia é a diluição absoluta, ou seja, no final do processo, não se preservou uma molécula sequer do princípio ativo. Eu não sou cético em relação à homeopatia. Cético implica dúvida, e eu não tenho dúvida nesse caso.”
A exigência de rigor parece ser um desses traços inatos que, se não suficientes, são ao menos necessários para indicar uma vocação matemática. O sintoma se revela cedo e, no caso de Artur, foi responsável por sua saída – antes que o expulsassem – de um dos melhores colégios do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu.
Seu pai, Raimundo, um amazonense, começou a vida cultivando uma roça de mandioca à beira-rio. Aos 15 anos, foi para Manaus, onde conseguiu um emprego de copeiro no palácio do governador. Conciliando trabalho e estudo, terminou o ensino médio. Decidiu tentar a sorte no Rio, passou num concurso público e entrou para o Instituto de Resseguros do Brasil, que o ajudou a pagar a faculdade – “Acho que de contabilidade”, diz o filho. No IRB, conheceu Lenir. Tiveram só um filho, que era ainda pequeno quando se separaram. Ele foi criado pela mãe.
Com 6 anos, Artur foi matriculado no São Bento, um colégio no centro do Rio que costuma ocupar o primeiro lugar da maioria dos rankings de melhores escolas do Brasil. Já aos 5 anos lia livros de matemática, e, como o currículo lhe parecesse algo tedioso, ia atrás de material didático de classes mais adiantadas. Chegou a comprar apostilas do Telecurso 2º Graud+ como estava no ensino fundamental, aquilo lhe parecia mais avançado. Aos 13 anos, era bom aluno de história e ciências. As questões sociais lhe interessavam, e durante algum tempo achou que jornalismo pudesse ser uma opção de carreira. Herdou do pai a paixão pelo Vasco e pedia à mãe que o levasse aos treinos do time. Podia se dar a esse luxo, pois a escola não apresentava desafios maiores.
Artur teria encerrado o segundo grau do São Bento como quem passa férias, não fosse a disciplina de religião. Pela primeira vez, aos 14 anos, trombava com um obstáculo. Sua dificuldade não era o conteúdo, mas a natureza da discussão. Concluiu rapidamente que estava sendo apresentado à má filosofia: “Eles tratavam Deus como uma questão de lógica. Eu não podia aceitar, e isso independia de eu acreditar ou não em Deus”, lembra. “Se o padre dissesse ‘Estes são os dogmas da Igreja’, tudo bem. Mas eles sugeriam que a razão levava necessariamente à existência de Deus. Esse era um argumento filosófico, e sem o contra-argumento me parecia falacioso. Eu queria a refutação, e a refutação da refutação.” Como nenhuma das partes arredava pé, os beneditinos lhe sugeriram que deixasse a escola. “Foi um alívio”, ele diz.
Ainda no São Bento, Artur teve a sorte de encontrar um bom professor que lhe falou das olimpíadas de matemática. Na primeira de que participou, aos 13 anos, na PUC, Artur saiu-se “relativamente bem”. Se tinha alguma dúvida sobre o seu talento para resolver problemas, deixou de ter. No mesmo ano, ganhou sua primeira medalha olímpica na edição nacional da competição. O bronze de 1992 viraria ouro em 93, 94 e 95.
Do São Bento foi para o Santo Agostinho, outro colégio de grande reputação. As ciências exatas lhe pareciam cada vez mais fáceis, e ele começou a faltar às aulas para não abrir mão de acordar tarde, hábito que sempre cultivou com zelo. O currículo o irritava: “As pessoas aprendiam as matérias não para saber, mas para passar numa prova. Na grade, depois da aula de física vem português e depois geografia. Num sistema desses, o que eu podia aprender? Preferi a matemática, escolhi aprender bem uma coisa, para a vida.” Tinha 16 anos.
No mesmo ano de 1995, Artur integrou a equipe brasileira que foi à olimpíada internacional de matemática, a mais dura competição mundial para alunos do ensino médio. Cada país envia no máximo seis representantes, escolhidos entre os mais talentosos da nação. Países como China, Rússia e Estados Unidos tratam a competição como questão de Estado. As equipes são selecionadas por meio de processos extremamente rigorosos e treinadas por matemáticos competentes ao longo de semanas, em regime de imersão. O Brasil, na época, apenas reunia os seus talentos e os embarcava no avião, no máximo tendo lhes fornecido uma lista de exercícios dias antes. As provas aconteceram em Toronto, no Canadá. Participaram 73 países e 412 competidores. Artur cravou cinco das seis questões e, como outros 29 jovens (nenhum deles brasileiro), voltou para casa com uma medalha de ouro. Chegando aqui, o Impa imediatamente lhe ofereceu uma bolsa de iniciação científica.
Artur começou a frequentar a instituição e, ainda no Santo Agostinho, iniciou o curso de mestrado, que concluiria junto com o segundo grau. (Ele pulou o curso regular da universidade.) Há um bom tempo deixara de comparecer com assiduidade às aulas do colégio. Havendo uma frequência mínima para passar de ano, era o caso de perguntar sobre sua taxa de faltas. Artur pensou – mais do que a pergunta exigia. “Se eu escrever que você faltava a 50% das aulas, você achará estranho?” Ele olhou para os lados, tirou os óculos e coçou vigorosamente os olhos com o punho das mãos, gesto a que recorre toda vez que uma pergunta lhe parece trivial ou tediosa. “Não precisa ser rigoroso”, sugeri. Artur sorriu: “É difícil você me pedir para não ser rigoroso – 50% é um valor preciso. Diz que eu faltava de 30 a 50% das aulas.”
O prédio do Impa tem longos terraços que se esparramam pelas franjas da Floresta da Tijuca. Seus banheiros são limpos. Pelos corredores, ouve-se espanhol, inglês e francês. Com um pouco de paciência, russo, pársi, chinês e alemão. Nasceu em 1952, por iniciativa do CNPq, a agência nacional de fomento à pesquisa que havia sido criada no ano anterior. Durante os primeiros anos, viveu numa sala tomada de empréstimo ao Instituto de Física, e de mudança em mudança, chegou à sede própria, no Horto do Jardim Botânico. Está voltado para a formação de mestres e doutores nas mais diversas áreas da matemática, além de promover o aprimoramento do ensino de matemática com cursos e publicações dirigidas a professores.
É, sob todos os aspectos, a melhor instituição de ensino do país. Nenhum outro centro de pesquisa goza de prestígio internacional semelhante. O Impa publica ou é citado com regularidade nas melhores revistas de matemática do mundo. Alguns dos 230 doutores que já formou estão na fronteira da ciência. Nenhum deles pagou um centavo para estudar. O Impa é o resultado de uma rara conjunção de fatores: política pública bem-sucedida e administradores dotados de boa ambição, realismo e competência técnica, à parte o fato singular de a matemática ser ao mesmo tempo barata e não-ideológica.
Criado pelos matemáticos Lélio Gama, Maurício Peixoto e Leopoldo Nachbin, desde o início o Impa conseguiu se aproximar dos mais talentosos matemáticos da época. Peixoto e Nachbin eram pesquisadores ilustres e, graças ao respeito intelectual de que gozavam, bem como às delícias tropicais do Rio de Janeiro das décadas de 50 e 60, conseguiram criar um influxo constante de grandes matemáticos que vinham lecionar e pesquisar aqui. Gigantes como os franceses Laurent Schwartz e René Thom ou o americano Steve Smale deram palestras ou ensinaram no Impa. (Smale fez uma de suas mais notáveis descobertas durante a estadia no Rio.) Os três são medalhistas Fields e figuram em qualquer lista dos mais importantes matemáticos da segunda metade do século passado.
A excelência do Impa está amarrada ao nome de Jacob Palis, considerado o maior matemático brasileiro. Palis levou adiante o projeto dos fundadores. Durante a sua gestão, o número de alunos e matemáticos estrangeiros aumentou substancialmente. Welington de Melo chegou ao Impa em 1970: “A quantidade de matemática que aprendi nesses corredores foi uma grandeza. Jacob criou esse ambiente.” Eram os anos do regime militar, e enquanto a maioria das universidades sofria com a ausência de liberdade, o Impa se fortalecia – ideias abstratas jamais incomodam os donos do poder, sejam eles generais ou comissários. A matemática floresce sob todos os regimes políticos e, por só precisar de papel e lápis – às vezes, nem isso (Arquimedes fazia desenhos na areia) -, pode ser praticada em condições extremas. O francês Jean Leray revolucionou a topologia numa prisão da Segunda Guerra.
A matemática é mais sensível a recursos intelectuais do que materiais – e os primeiros estavam disponíveis. O Impa está para a matemática assim como a Jamaica para o atletismo: não compete em tudo para ser excelente em alguma categoria. Conquistou excelência em sistemas dinâmicos não-periódicos e se tornou referência internacional. Steve Smale é um dos heróis totêmicos do campo. Ele foi o orientador de doutorado de Jacob Palis, que orientou Welington de Melo, que orientou Artur Avila.
A fila de carros para entrar no estacionamento da PUC, no bairro da Gávea, às vezes não anda. Naquela quinta-feira de setembro, o compromisso era uma conversa com o matemático Nicolau Corção Saldanha, marcada para as 11h30. Eram 11h15 e o carro não avançava. Convinha ligar e pedir desculpas pelo possível atraso. “Qual o teu carro?”, perguntou Nicolau (todos o tratam pelo primeiro nome). “Daqui a um minuto estou aí. A gente conversa no carro. Não vou precisar mesmo de quadro-negro.” Em poucos instantes apareceu, de bermuda e tênis Bamba. Por princípios vegetarianos, não usa couro. Entrou no carro e sugeriu que déssemos umas voltas pelo Leblon.
Nicolau Saldanha tem 45 anos e foi o primeiro brasileiro a ganhar uma medalha de ouro numa olimpíada internacional de matemática. Competiu em 1981, em Washington, e solucionou todas as questões. O talento excepcional o levaria da PUC, onde fez o mestrado, para Princeton, um dos grandes centros mundiais de matemática. Ali estudou com um dos maiores matemáticos dos últimos 50 anos, William Thurston, seu orientador no doutorado. Foi considerado o aluno mais brilhante de Princeton na época.
Nicolau é muito branco e tem um ar cansado, de quem dorme pouco. Sua fala é suave, algo etérea, e suas feições lembram as de um compositor romântico entregue a prelúdios. Quando Artur chegou ao Impa, foi um dos primeiros professores que encontrou. “A turma era enorme”, lembra Nicolau. “Sou conhecido por dar provas desafiadoras. As notas eram baixíssimas, mas a performance do Artur era extraordinária. Só percebi que ele existia por causa do desempenho, nem tenho certeza se ele assistia às aulas. Eu não me lembro dele lá. Ele nunca fez uma pergunta.”
Na sala do Impa que ocupa durante os meses que passa no Brasil, de bermuda, camiseta e sandália de dedo, seu uniforme quando está no Rio, Artur se recorda: “O nome do curso era ‘Análise da Reta’ e foi muito importante pra mim.” Até então, sua experiência matemática era vencer competições. O curso de Nicolau era bem mais do que isso. A cada aula ele era apresentado a ideias complexas, com as quais só era possível lidar revendo o modo de pensar. Nicolau permitia que os alunos levassem livros e anotações para as provas. Artur ia só com a caneta. “Eu só levava o que tinha na cabeça”, diz, “porque as respostas não estavam nos livros. Essa era a coisa legal das provas do Nicolau: você tinha que ter uma ideia.” A nota para passar era três. “O Artur tirava doze, a nota máxima”, lembra Nicolau, “o segundo tirava seted+ o terceiro, cinco.” Artur frequentava, sim, as aulas. Se não chamava atenção, é porque não abria a boca: “Eu era quieto porque queria ter muita certeza do que falar”, explica. “Leva tempo até ter meia-certeza, que é o mínimo pra fazer pesquisa.”
Desde o ano anterior, quando ganhara a medalha de ouro em Toronto, Artur se tornara o mais valioso integrante da equipe olímpica brasileira. Estava tudo acertado para viajarem para a Índia, sede das Olimpíadas de 1996, quando, poucos dias antes do embarque, ele avisou que não ia. Instalou-se a crise. O Brasil provavelmente deixaria de ganhar mais um ouro – e até então só conquistara cinco, incluindo o dele. O comitê organizador, do qual faziam parte matemáticos influentes, pressionou, mas Artur não transigiu. A equipe teve de partir desfalcada.
Entre o Canadá de 1995 e a Índia 96, algo muito importante havia acontecido: ele entrara no Impa. “Não tinha ideia do que era fazer matemática. Olhei e disse: é isso.” A competição não lhe agradava mais. “Lá tudo tem solução, e a graça da matemática é a incerteza: você pode gastar anos lutando contra alguma coisa que talvez nunca se resolva.” A pressa também o incomodava. Matemáticos não precisam tomar decisões urgentes e nenhum deles é forçado a provar uma conjectura até o fim do mês. “Matemática é feita com tempo, não existe a pressão. E eu gosto de refletir”, diz Artur.
Desistir da olimpíada foi a primeira decisão do matemático que Artur Avila viria a ser. “Se eu estiver correto”, diz Elon Lages Lima, seu orientador de mestrado, “isso mostra claramente que aos 17 anos ele já sabia como se constrói uma carreira. Não lhe interessava ganhar pela segunda vez um prêmio que já tinha. Havia coisas mais importantes a fazer.”
Artur ocupa uma salinha triste num dos prédios mais feios de Paris, onde trabalham 300 matemáticos. São apenas duas mesas, um quadro-negro, um armário de metal e um telefone que ele não sabe como operar. Até 2008, estava contratado como chargé de recherche, encarregado de pesquisa, vinculado ao Laboratório de Probabilidades e Modelos Aleatórios do CNRS. A salinha triste era novidade e vinha no embalo de uma promoção. Em outubro de 2009, ele iniciava o ano acadêmico na França como um dos mais jovens matemáticos a chegar ao posto de directeur de recherches, diretor de pesquisas.
Afora o salário melhor, isso significou apenas uma mudança de andar. “O pesquisador promovido é transferido para outra cidade, onde terá de trabalhar e ensinar. No meu caso, eles sabem que eu quero ficar aqui, então o jeito burocrático de resolver o problema foi me trocar de andar.” Mudança de andar significa ser alocado a um laboratório diferente – no caso, o Institut de Mathématiques de Jussieu. “Se um pesquisador reclamar da transferência e me usar como exemplo de exceção, eles sempre vão poder dizer que os papéis provam que eu mudei.” Como matemáticos são independentes e trabalham como e quando querem – “seria escandaloso se alguém determinasse o que devo atacar” -, a rigor não muda nada.
O privilégio é uma das concessões que o CNRS faz para não correr o risco de perdê-lo. A promoção prematura foi estimulada por um e-mail que baixou na caixa de mensagens do chefe de Artur: era da Universidade Yale, nos Estados Unidos, demonstrando interesse em contratá-lo. Provavelmente ele não aceitaria, pois gosta da França. “Eu ganho dois salários mínimos, mas é o suficiente”, diz. “Não preciso de muita coisa. Acho bom viver num lugar com escola pública boa, saúde, transporte. Uma sociedade em que um pesquisador ganha dois salários e ninguém ganha trinta me interessa.” Também aprecia o costume civilizado de comer calmamente. “Os americanos comem andando”, diz. Fica horrorizado quando dá palestras nos Estados Unidos e depois não o chamam para jantar.
A única obrigação de Artur é produzir matemática. “Sou muito afastado das coisas concretas. Eu relutaria em dizer que o que eu faço serve.” No entanto, perguntas sobre a utilidade da pesquisa pura começam a aparecer na boca de funcionários do Estado. O que você tem feito para melhorar o mundo? O que você tem feito pela economia? “Existe uma pressão do governo francês. Sutil, mas está lá.”
Para a maioria das pessoas, a utilidade da matemática parece óbvia: pontes, projeções econômicas, algoritmos de computador. Boa parte dos matemáticos acha essas aplicações desinteressantes. “O que serve para a vida é banal e chato”, disse Hardy, num livrinho clássico de 1940 intitulado Em Defesa de um Matemático. “A matemática que pode ser usada para tarefas comuns pelo homem comum é desprezível, e aquela que serve aos economistas e sociólogos não serviria nem como critério para conceder uma bolsa de estudos a um estudante de matemática”, escreveu. “A verdadeira matemática dos verdadeiros matemáticos, a matemática de Fermat, Euler, Gauss, Abel e Riemann, é quase toda ela inútil.”
As posições de Hardy são exageradas – grandes matemáticos se dedicam ao que ele chamaria de matemática útil -, mas não traem certo consenso entre seus colegas de profissão. Para muitos, o tema nem chega a merecer conversa. Kepler precisou das propriedades da elipse para chegar às leis do movimento dos corpos celestes, mas os gregos haviam se interessado por ela simplesmente porque a forma lhes parecia bonita. A dificuldade brutal de um problema é razão suficiente para que alguém dedique a vida a resolvê-lo. Aos matemáticos, caberia levar às últimas consequências as possibilidades da razão e, assim, aferir até onde ela é capaz de ir. Os usos vêm depois – quando vêm.
Em 1998, aos 18 anos, Artur Avila começou o doutorado. “Jovens muito brilhantes tendem a ser chatos, querem se exibir o tempo todo”, lembra Welington de Melo. “Não era o caso dele. Ele raramente fazia perguntas, mas quando fazia, você tinha que levar pra casa e pensar durante o fim de semana.” Contudo, não foram as boas perguntas ou as notas altas que começaram a chamar a atenção de Melo. Havia outra coisa, mais rara e muito mais importante: Artur não se interessava por problemas secundários. Parecia só perseguir os fundamentais. Na época, Melo estava trabalhando num artigo que julgava importante. O trabalho principal já estava feito, mas havia alguns aspectos secundários que ainda não tinham sido enfrentados. Melo achou que Artur, por ser tão jovem, veria aquilo como um desafio. Propôs que resolvesse os problemas e assinasse o artigo junto com ele. “Imagine, ele era um adolescente…” Artur não aceitou. Melo sorri: “Não era um problema central.”
Matemáticos falam não só em beleza, mas também em bom gosto, que definem como a capacidade de detectar o que é importante. Desde muito cedo, Artur mostrou ter uma intuição aguda para os grandes problemas. Elon Lages Lima acha que essa é a maior qualidade dele: “Artur tem uma visão mais clara do papel de um matemático do que a maioria dos outros alunos brilhantes que passaram por aqui. A gente existe para resolver o que nunca foi resolvido antes. Isso não se faz deliberadamente. É como o instinto de caça do animal. Ele faz porque está dentro dele.”
Tudo na vida de Artur Avila está orientado para a eficiência. O apartamento do Rio, num prédio pequeno e sem elevador, a uma quadra da praia, é espartano. As estantes não têm livros e as paredes não têm quadros. Uma mesa, poucas cadeiras. Uma cama eternamente desfeita e uma televisão plana pregada à parede. Com o passar dos anos, ele foi deixando quase tudo de lado para se preocupar apenas com sua mulher, com culinária – “Ninguém passa anos em Paris sem se civilizar”, diz Marcelo Viana -, com informações políticas colhidas na internet e com matemática. Nunca mais assistiu a um jogo do Vasco. Não vai ao cinema, pois desconfia da crítica. Prefere filmes antigos, pois “se chegaram até aqui é porque são bons”.
Ao ouvir que eu estava lendo a autobiografia de Laurent Schwartz, um catatau de 528 páginas, sugeriu, sem ironia: “Por que você não pega do meio, como eu faço?” Certa vez, usou a frase “O livro que eu li.” O livro? Só um? “O último foi em 2000, num avião. Comprei no aeroporto. Era aquele do Oscar Wilde…” O Retrato de Dorian Gray? “É. Peguei no meio, li um pouco, ficou meio misterioso, aí voltei pro início.” Não terminou. Não lê nem textos técnicos. Diz que seu método preferencial de estudo é a conversa.
Não despacha bagagem em aeroporto. O que não cabe na mala de mão ele deixa na lata de lixo do terminal, para não ficar esperando na esteira de chegada. Não tem tralhas, roupas, excessos. Não gosta de dar aulas e quase não tem alunos. “A essa altura, é penoso pra mim explicar as miudezas.” Não perde tempo. Pensa matemática e viaja para fazer matemática. De janeiro a agosto do ano de 2009, passou pelas universidades de Maryland, Stony Brook (NY), Cal-Tech (Califórnia), Irvine (Califórnia), North-western e Chicago (Illinois), Stony Brook (novamente)d+ deu seminários em Marselha e na Alemanha. Ainda iria para o Chile e retornaria à França.
Sua capacidade de produção é prodigiosa. Sozinho ou em colaboração, já publicou cerca de quarenta artigos em revistas internacionais, 1 112 páginas ao todo. Onze deles apareceram nas três mais prestigiosas publicações do mundo, Annals of Mathematics, Acta Mathematica e Inventiones Mathematicae. “Nenhum outro matemático brasileiro tem ou teve em toda a sua carreira uma lista de publicações da dimensão da do Artur. É impressionante mesmo em nível internacional para gente da faixa etária dele”, diz Melo. Artur tem um objetivo claro: não dissipar energia nem desperdiçar o vigor da sua juventude. Opera feito um míssil balístico. “Quando você é jovem, talvez tenha mais energia para atacar brutalmente o objeto”, diz.
Nicolau Saldanha, a quem todos se referem como um dos mais brilhantes matemáticos brasileiros, se impressiona com o modo como seu ex-aluno trabalha e publica. “Ele tem um interesse imenso em escrever, diferente de muitos outros colegas, que preferem pensar matemática a escrever matemática.” Olhando pela janela do carro, completa: “No fundo, eu sou meio assim. Tenho dificuldade em escrever pra ser publicado. Fico satisfeito de ter resolvido um problema, isso basta, é pra mim, eu não me preocupo em saber se isso vai melhorar o mundo ou não”, diz, como se, para ele, a matemática fosse mais um prazer do que uma profissão.
Artur é o profissional consumado. Não tem prazer em escrever, mas sabe que a tarefa faz parte do trabalho. “Polir não é emocionante. Tenho trabalhos anunciados desde 2003 que não tive tempo de pôr no papel. No momento em que você resolve, o resto deixa de ser interessante. Quando perguntam, eu digo que a prova está no laptop.” A quantidade de artigos publicados atesta o contrário. Artur não só publica como se preocupa em escrever bem: “Eu preciso que o leitor se interesse pelo meu objeto. Essa é a minha função. Isso implica cuidado com a narrativa.” Nunca mais releu sua tese de doutorado “porque o estilo é pavoroso”.
Sua disciplina profissional está associada a um amor profundo pelo que estuda. Um dos poucos filmes recentes a que assistiu foi Gênio Indomável, de Gus Van Sant, no qual Matt Damon faz o papel de um prodígio matemático. Artur odiou: “O cara não gosta do objeto. Aquilo parecia uma disputa, quem resolve antes esse problema, quem resolve aquele. O sujeito podia estar estudando qualquer coisa, nada era específico. Nenhum matemático é assim. A gente estuda uma coisa porque gosta dela”, diz. Ele, por exemplo, não gosta muito de álgebra, na qual tudo é certo. Prefere objetos mais flexíveis, com pequenas doses de incerteza, erros que ele terá de controlar para que não se propaguem. “Costumo brincar que não gosto muito daquele sinal de igualdade. Prefiro as aproximações.”
Muitas vezes, o que um matemático tem de mais valioso a ensinar não são suas provas, mas o seu modo de pensar. No segundo ano do doutorado, Artur encontrou Lyubich no Rio. Foi uma conversa definitiva. “Comecei a fazer perguntas, e ele, que era um matemático muito importante, começou a pensar alto”, conta. Artur ficou mesmerizado. Lyubich não tinha medo de errar. A liberdade levava o raciocínio por direções absolutamente especulativas. Era possível sair por aí, pelos lugares mais fantasiosos da matemática, guiado apenas pela intuição. “Foi uma surpresa”, relembra Artur. “Vi como um matemático excepcional pensava matemática. Fui pro Welington e perguntei se era possível uma contribuição com o Lyubich.” Não demorou, estava em Stony Brook.
Quando, meses depois, Artur apresentou a tal ideia estranha para remover o obstáculo que os impedia de chegar à prova, Melo e Lyubich ficaram desconcertados: “Estava fora da caixa de ferramentas que a gente conhecia”, explica Melo. “É como um piano: você só pode tocar aquelas teclas, não existem outras, mas de vez em quando alguém aparece com alguma coisa que não está na escala.”
Parte do trabalho desenvolvido em Stony Brook integrou a tese de doutorado de Artur, defendida em 2001, aos 21 anos, diante de uma banca ilustre composta por Marcelo Viana, Jacob Palis e dois matemáticos estrangeiros, o francês Yoccoz e o americano John Mil-nor, ambos ganhadores da Medalha Fields. No mesmo ano foi para a França, como pesquisador do Collège de France, e estreitou o contato com Yoccoz. “Foi muito importante. Como eu não leio, só conhecia o que se discutia no Impa. Eu era muito ignorante, e só lá descobri como a matemática é grande.” Ficou na França cinco anos.
Em 2006, recebeu uma bolsa do Clay Mathematics Institute, uma fundação privada americana de apoio à matemática. A bolsa é oferecida a jovens de grande potencial. A liberdade é absoluta: o ganhador pode morar onde quiser e tem garantidos não só um bom salário, como dinheiro para aluguel e gastos com viagens de trabalho. Artur pediu licença não remunerada ao CNRS – seu empregador depois do Collège de France – e voltou para o Brasil, onde permaneceu, sempre ligado ao Impa, pelos três anos de duração da bolsa.
Ficar no Brasil não é uma posição ideológica. “Não sou nacionalista. Não torço muito pelo Brasil, mas quero que a matemática daqui avance. Gosto de ficar perto dos colaboradores brasileiros” – Gugu e Marcelo Viana são os principais -, “e também é bom porque lá fora está sempre acontecendo muita coisa. É importante ter um tempo pra parar e pensar. Muitas coisas são feitas no isolamento.” A bolsa Clay expirou em julho de 2009, mas o cnrs aceitou que ele passasse meio ano aqui. Quando está no Brasil, recebe apenas pelo Impa. Quando está na França, apenas pelo CNRS.
O dinheiro aqui é bem melhor. Artur tem tentado seduzir professores estrangeiros a virem para o Brasil com o que ele chama de “salário em quilos de filé-mignon”. “Lá é perto de 40 euros, aqui estava por 17 reais ontem. Na França, com todos os descontos, um pesquisador como eu ganha em torno de 2 500 euros. No Impa, um cara que está começando ganha 8 800 reais.” Jacob Palis exerce uma influência extraordinária na matemática brasileira. De 91 a 98 foi presidente da International Mathematical Union, a organização responsável, entre outras coisas, por conceder, nos seus congressos quadrienais, a Medalha Fields. Não existe Academia Sueca para a matemática. Existe a IMU.
Palis ocupa um escritório no último andar do Impa, instituição sobre a qual fala com paixão desenfreada. É um homem de 69 anos, jovial, alto, em boa forma, de bochechas caídas e sorriso meio maroto. Parece achar o mundo divertido. Na parede atrás de sua mesa, aparece em fotografias ao lado dos grandes do mundo. Matemáticos eminentes, cientistas de primeira grandeza, o então presidente da China Jiang Zemin.
Sua energia é furiosa. Atual presidente da Academia Brasileira de Ciências, é constantemente interrompido por dois celulares e dois telefones fixos que tocam sem parar. Quase sempre são questões políticas a serem resolvidas – mais fundos para pesquisa, mais pressão para que o ministro abra as comportas.
Para Jacob Palis, não há dúvida de que Artur é resultado direto do Impa, um dos pontos máximos da história da instituição. Houve outros. “O Ricardo Mañe, que ficou famoso depois que morreu muito cedo, o que mostra que estamos na periferia. Se ele fosse ligado a uma universidade como Princeton ou Harvard, é provável que tivesse ganhado a Fields. O Marcelo Viana é outro que ficou na short list da medalha. Tem o Gugu, que é extraordinário.” No momento, porém, parece que as apostas se canalizam todas para Artur Avila.
Artur afirma que foi sua a decisão de ir para a França, mas Palis sugere que houve uma estratégia institucional por trás disso. “Nós não fomos muito inocentes ao estimular a presença do Artur na França. O fato de ele passar meio ano lá e meio ano aqui aumenta a visibilidade dele.”
Entre 19 e 27 de agosto próximo, a cidade de Hyderabad, na Índia, receberá o congresso internacional da IMU. Serão vinte sessões, cada qual dedicada a um campo específico da matemática, além de vinte palestras plenárias, nas quais um matemático fala para toda a comunidade de colegas.
“É uma honraria imensa”, diz Marcelo Viana, o único brasileiro que já teve esse privilégio. Artur será um dos plenaristas do encontro. “Na idade dele, então, é fora do comum. Os plenaristas são convidados porque as descobertas que fizeram são tão importantes que o trabalho é considerado um avanço para o conjunto da matemática.” Viana conta que três coordenadores de área defenderam o nome de Artur para a plenária. “Três que eu sei”, diz ele. “Isso significa que pelo menos três campos da matemática julgam que a contribuição do Artur foi determinante para eles.”
Em sua sala no Impa, tomada por uma bagunça épica, Artur evita olhar para a imensa janela por onde entra um sol de primavera. Bebeu um pouco demais na véspera e está com uma leve ressaca. O Impa organizara um churrasco para comemorar dois importantes prêmios internacionais recebidos por pesquisadores da casa. O primeiro, por Gugud+ o segundo, por Artur, concedido pela Academia de Ciências francesa a matemáticos de menos de 35 anos que deram uma contribuição significativa ao campo. Só soube da existência do prêmio – e dos 30 500 euros que o acompanharam – ao ser notificado que o ganhara.
Na Índia, Artur falará de vários aspectos do seu trabalho, inclusive Schrödinger. Até setembro, já havia feito o principal das partes I e II de sua teoria global. Um problema incontornável o impedia de chegar à parte III, a última. “Um dia eu espero resolver isso”, dissera lá atrás. Agora, com dor de cabeça, protegendo os olhos do sol, ele sorri: “Apareceu uma ideia essa semana. Acordei de madrugada e teve uma certa mágica.”