O presidente Lula costuma dizer que é um “sem diploma”, mas não é bem assim. Ele fez curso técnico de torneiro mecânico, em duas escolas do Senai em São Paulo, entre 1961 e 1963 e saiu diplomado no ofício aos 17 anos. A partir daí, passou a ganhar mais de um salário mínimo e virou cidadão, como ele mesmo destaca. Lula não passou por headhunters, que seguramente o barrariam por não ter universidade e nem falar inglês. Mas foi aprovado e reaprovado por 60 milhões de recrutadores que viram nele a formação adequada para ser chairman da empresa Brasil, que produz anualmente quase US$ 1,5 trilhão.
Mesmo sem querer, o frequente esquecimento do presidente a respeito do próprio diploma reforça a noção de que a formação técnica é opção apenas para quem não consegue fazer faculdade ou não tem ambições que vão além do chão da fábrica. Essa visão constituída desde o surgimento das primeiras escolas do Sistema S (Senai, Senac, Sesc e Sesi) nos anos 40 gerou o que hoje é um dos principais gargalos da educação e da própria competitividade da economia brasileira, a insuficiência de mão de obra qualificada técnica e tecnológica para atender as demandas cada vez mais exigentes do setor produtivo.
Em comparação com países como EUA, Alemanha e Coreia do Sul, que têm entre os que terminam o ciclo regular pelo menos 50% com formação técnico-profissionalizante, no Brasil esse índice fica entre 8% e 9%. “É um patamar muito baixo”, diz o próprio ministro da educação, Fernando Haddad. “Por princípio, todo cidadão tem que ter direito à profissionalização, no ensino médio ou superior. Um bom número seria alcançar entre 40% e 50%, o que é praticável em uma década se o acesso gratuito ao ensino técnico continuar crescendo.”
Essa espécie de fosso que se criou entre o ensino fundamental e a universidade decorre ironicamente dos avanços da própria educação no Brasil nos últimos dez a 15 anos. No início desta década, o país conquistou a denominada “universalização” – acesso à escola básica a 100% das crianças. Na outra ponta, o número de vagas no ensino superior também cresceu, ainda que a qualidade de muitas dessas instituições seja questionada pelo próprio MEC.
O brasileiro hoje tem em média pouco mais de sete anos de escolaridade (em comparação a quase 12 anos dos coreanos, por exemplo), o que significa dizer que o principal ponto de evasão escolar se dá entre o fim do curso básico e os três anos de nível médio – no ano passado, 19,4% dos alunos entre 15 e 18 anos da Grande São Paulo desistiram do ensino médio. As várias pesquisas na área demonstram que o abandono ocorre principalmente porque o aluno que precisa trabalhar não vê utilidade no que aprende no ensino médio regular.
Dez entre dez especialistas em educação entendem que a maior oferta de ensino profissionalizante equilibrado – que juntasse conteúdo abstrato de formação intelectual e a especialização técnica – não apenas reduziria a evasão como elevaria as possibilidades de acesso à universidade.
Para o diretor-executivo da Fundação Nacional da Qualidade (FNQ), Ricardo Corrêa Martins, tanto o ensino médio como o universitário estão muito “desligados” do dia a dia do trabalho. “A formação é muito generalista e as instituições são muito resistentes às mudanças. Isso levou muitas empresas a montar suas próprias universidades, para compensar o que falta na formação escolar.” A socióloga Maria Helena Guimarães Castro, ex-secretária da Educação de José Serra, concorda que as escolas técnicas não têm a escala que o Brasil precisa para atender as atuais necessidades da economia, mas considera que o problema começa ainda na educação fundamental. “O curso técnico não pode ser visto sozinho como o salvador da pátria. Uma grande parte das crianças chega ao nível médio com dificuldade de leitura, em matemática e, portanto, despreparada.”
Maria Helena defende uma mudança no modelo, com a inserção de período preparatório nas próprias escolas técnicas, para compensar a defasagem trazida do fundamental. “Nossas escolas, como o Senai e o Senac, são muito boas e referência para outros países. Mas não dá para resolver a carência desse tipo de ensino por decreto, como tentou fazer o governo militar, foi um desastre. Se os alunos não chegam bem preparados, ou se as escolas forem criadas sem a devida qualidade, não serão formados bons profissionais.”
Outra especialista em educação e políticas públicas, a professora Márcia Leite, da Universidade de Campinas (Unicamp) diz que o primeiro passivo da educação nacional são as pessoas de baixa escolaridade ou analfabetas funcionais ainda jovens, mas que já passaram da idade para voltar ao ensino fundamental. “As políticas a elas dirigidas são pouco impactantes frente ao desafio que o problema representa.” Ela questiona também a carga horária no ensino fundamental. “Embora disponível a praticamente toda a população em idade escolar, a maior parte dos turnos ainda é de até quatro horas, quando em países com sistema educacional de melhor qualidade é de pelo menos seis horas.”
Além de adotar medidas como premiar com bônus o desempenho dos professores estaduais, o governo paulista segue também na direção da ampliação da oferta de cursos técnicos. As Etecs, hoje com 170 unidades, têm previsão de ganhar novas cem unidades no ano que vem. E as Fatecs, de nível superior, com 49 unidades, estão expandindo a sua atuação ao oferecer cursos em formato “telepresencial” (aulas transmitidas por televisão a salas de aula), em parceria com a Fundação Roberto Marinho.
“Nunca houve tanta gente preocupada com a educação e isso é muito importante. Mas os avanços, embora espetaculares nos últimos anos, têm se dado apenas na quantidade”, avalia o economista e educador Claudio Moura e Castro. Para ele, o ensino médio profissionalizante é um dos “grandes enguiços” do sistema educacional brasileiro. “Só as Etecs (escolas técnicas do Centro Paula Souza) em São Paulo encararam o desafio e estão indo bem. A oferta nas instituições privadas também avança rapidamente, mas só nas áreas de baixo custo. O Senai e Senac andam muito bem, mas são pequenos e insuficientes para a demanda”, resume.
A ideia geral no Brasil ainda é a de que o conceito de educação profissionalizante se reduz ao ensino médio. “Mas no grupo está toda a parcela da educação que colabora para a aplicabilidade de conhecimentos no mercado de trabalho – inclusive a educação superior”, reforça a diretora de educação profissional do Ministério da Educação, Andréa Andrade, que tem em sua área a supervisão também dos cursos superiores definidos como “tecnológicos”, cuja oferta cresce rapidamente. Segundo dados do MEC, em 1999, eram 317 cursos no país, número que saltou para 3.702, entre públicos e privados, em 2007.
Andréa ainda vê o preconceito em relação aos cursos técnicos e tecnológicos afetando a escolha da profissão pelo recém-formado. “Até há pouco tempo, se você somasse os alunos de administração, direito, pedagogia e comunicação, por exemplo, chegava a 60% do total da clientela universitária do país.” Na tentativa de reduzir essa concentração, desde 2006 o MEC organiza catálogos com a relação dos cursos de tecnologia para chamar a atenção do jovem pré-universitário para uma das 102 especializações possíveis na área.
A discussão sobre a educação, que toma proporções inéditas no país, atrai também a atenção das organizações trabalhistas. “A qualificação do trabalhador é fundamental e defendemos a implementação de um sistema nacional articulado de educação”, diz José Celestino Lourenço, secretário nacional de formação da CUT (Central Única dos Trabalhadores). A entidade quer participar mais ativamente das decisões do Sistema S. “O Senai, o Senac etc. recebem recursos federais pesados e as decisões não podem ficar só nas mãos dos empresários. Precisamos ter participação paritária nos conselhos nacionais, e não apenas simbólica”, completa Lourenço.
André Portela, economista da Fundação Getúlio Vargas especializado em mercado de trabalho, pondera que o comércio global e as próprias mudanças tecnológicas passaram a pressionar o sistema educacional a formar profissionais mais qualificados. “Hoje, esses cursos (do ensino médio) são voltados para preparar o jovem para o vestibular e isso não atende à parcela que pensa em tornar-se profissional antes da faculdade. É preciso compor um currículo que envolva disciplinas técnicas, mas sem esquecer do conteúdo abstrato, que faça o jovem exercitar a capacidade intelectual.”
No bojo dessa gigantesca discussão sobre educação, duas conclusões são unânimes. Os avanços nos últimos tempos são significativos e inéditos, mas o país ainda está longe de um sistema educacional capaz de prover o mercado de trabalho de profissionais qualificados para uma das maiores economias do mundo. Nesse sentido, o próprio presidente talvez devesse exaltar mais o simbólico caminho de seu diploma técnico, que como ele mesmo já disse, o transformou em cidadão.