Que futuro tem um centro de pós-graduação em Geografia que vê com reservas o estudo de realidades forâneas? Por óbvia, pulemos logo a resposta para dar lugar ao espanto. Sim, pasmado leitor, geógrafo ou não, é disso que vive um certo professor da pós-graduação em Geografia da UFSC, hoje ocupante de um dos cargos da mais alta hierarquia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Que conclusão tirar de tamanho disparate? O mais tacanho provincianismo acadêmico. É isso. De fato, em recente entrevista à Folha de S. Paulo, o economista chinês Huang Yasheng, professor no MIT, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, se disse espantado por saber “que não existe um único centro de estudos sobre a China nas universidades brasileiras”, lembrando que qualquer “boa universidade americana, européia ou asiática já tem um bom centro com sinólogos há anos”.1 É de lamentar que o ilustre economista não tenha tido conhecimento do Núcleo de Estudos Asiáticos que montamos, aqui no departamento de Geociências, com a ajuda do ex-embaixador do Brasil em Cingapura, Amauri Porto de Oliveira, no ano de 2004. Mas desse desconhecimento não padece nosso professor-tabaréu – se bem que a adjetivação aqui pareça um pouco injusta, se nos referimos aos povos Tupi-Guarani e sua reconhecida capacidade para assimilarem traços de culturas diferentes, mas também “tupinizarem” os povos estranhos,2 o que, aliás, serviu de dístico para as inovações estéticas do modernismo brasileiro. Como andamos recuados!
Não é só isso, todavia. Nosso professor foi proponente, no departamento de Geociências, da criação de núcleos de estudos em Geografia Humana sobre a África e a América Latina, o que propusemos se transformasse, junto com o Núcleo de Estudos Asiáticos acima citado, em um Laboratório de Estudos do Espaço Mundial. Surpreso, leitor? Isso mesmo. Aquele que argumenta acerca da inescapável falta de qualidade dos estudos sobre a realidade de países estrangeiros feitos a partir de programas de pós-graduação brasileiros −no caso, um estudo sobre a Venezuela e outro sobre a Índia −, ele mesmo, quer estudar a realidade africana e de países da América espanhola. Será que a síntese que se nos está posta é a de que o dito professor, somente ele, detém o conhecimento destes estudos? Ou, ainda pior visto o cargo a que foi alçado, mudou ele de idéia e estes núcleos, voltados para estudos de improvável qualidade (sic), deverão fechar? Como esta segunda alternativa é −politicamente − inviável, resta concluir que estamos diante de um novo tipo daquele nosso velho conhecido mandarinato do saber. Enquanto isso, pouco sabemos de um importante membro deste agrupamento de elevado potencial de crescimento e transformação social conhecido como Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), enquanto a Venezuela é estudada por economistas, historiadores, profissionais da saúde, etc. Na Geografia, não. Aliás, para ser mais preciso uma única vez! Mas por que então não se pôs empecilhos? − Não diga que agora é perseguição, professor, não diga! Isso é mania persecutória… Conhecemos bem essa estória. A propósito, em qualquer departamento de qualquer universidade brasileira, o aluno de graduação participante de núcleos de pesquisa, com bolsa PIBIC, de monitoria ou outras modalidades, é forte candidato em concursos de pós-graduação. E para isso foram criadas as citadas bolsas.
O leitor, ciente da necessária análise qualitativa dos projetos de pós-graduação, deve estar se perguntando, a esta altura, acerca das questões substantivas. Sim, para um dos projetos se opôs questões “substantivas”. (Antes, porém, é preciso abrir um parêntese para dizer que de um conjunto de seis professores, apenas um, o próprio, concluiu ser inviável a execução dos estudos.) A questão se refere à categoria marxista de formação social, que o geógrafo Milton Santos teorizou como uma categoria da formação sócio-espacial. E a encrenca (escusas aos não iniciados, mas aqui questões mais específicas são inevitáveis) dizia respeito à antiga − e um tanto positivista − acusação de uma ausência de espacialidade no texto. Ora, em primeiro lugar, vale indagar se, no atual “estado da arte”, a relação marxismo e geografia comporta uma única interpretação. Ou, ainda melhor, se a interpretação dominante não foi submetida à crítica. Não me parece. Máximo Quaini, lembrando que Marx freqüentou o curso de Karl Ritter, um dos fundadores da Geografia moderna, apontou ter o geógrafo francês Yves Lacoste se equivocado ao insistir que os problemas do espaço estavam ausentes das preocupações do fundador do marxismo3 − perspectiva, diga-se, de algum modo presente em Milton Santos e outros mais, também submetidos à crítica.4 Segundo, e no que respeita à terminologia, mesmo Milton Santos asseverou: “Poder-se-ia também falar exclusivamente de formações sociais, pois estas não se realizam de nenhuma maneira fora do espaço.”5 E então, caro leitor? Puro pedantismo, não é mesmo? Pedantismo de um mandarinato que, como costuma ser, se põe a falar do que não sabe, ou sabe muito pouco.
Demais, é oportuno lembrar da operação, muito freqüente nos últimos tempos, de esconder o que há de marxismo na geografia de Milton Santos. Tanto que os “discípulos”, no mais das vezes, já não concedem relacionar seus textos com os clássicos do marxismo, insistindo, mesmo, ter ele abandonado as categorias mais diretamente desenvolvidas a partir desta tradição. Isso nem sempre é consciente, claro, mas não resta dúvida que o resultado é quase o mesmo de dizer, como o faz a direita mais agressiva, que o marxismo está morto. Logo o marxismo, que um filósofo da estatura de Jean Paul Sartre disse ser a filosofia insuperável de nosso tempo, instrumento, mesmo, da autocrítica marxista6 − algo muito diferente, evidentemente, da vulgata que a direita, para fragilizá-lo, quer fazer dele. E aqui voltamos ao indigitado professor, hoje incensado por estudantes e a esquerda do CFH. Quando o autor destas mal traçadas iniciou a docência na UFSC, há exatos onze anos, auge, portanto, da ofensiva neoliberal, foi advertido por ele, e outros mais que não cabe aqui citar, que Marx estava morto. Ora, de onde vem então toda essa adulação que o cerca? De uma esquerdização de conveniência, usada para galgar cargos da administração universitária? Se é assim, talvez aqui também esteja o segredo não revelado da perseguição antes assinalada − queixa que toca todo um grupo de pesquisa, não por acaso dedicado à categoria de formação social, extraída diretamente de Marx, mas com vigorosas contribuições de Lenin, Gramsci, entre outros. (Delírio persecutório coletivo?) Aliás, sem subscrever tudo o que foi ali dito, parece que aqui há um ponto de contato com o artigo que há pouco, o professor Waldir Rampinelli publicou no Boletim da Apufsc, acerca da direitização na UFSC.7 Aproveitando a deixa, diria ser exatamente essa esquerdização de conveniência, carreirista, também uma das razões da fragilidade recente da vida sindical universitária, que se deixou facilmente aparelhar por um esquerdismo infantil, para lembrar um velho mas vigoroso texto de Lenin.8 O que não se aplica a todo o sindicalismo, claro, repleto de gente valiosa. Conquanto um tal carreirismo seja certamente moeda corrente para estes cientistas bissextos que andam por aí.
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[1] Ver China vive ciclo de reestatização. Folha de S. Paulo, 1o/11/2009, p. b-5.
[2] Holanda, S. B. Raízes do Brasil, José Olympio, 1991, p. 72.
[3] Quaini, M. Marxismo e Geografia. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 34.
[4] Mamigonian, A. A Geografia e a “Formação Social como Teoria e como Método”. Souza, Maria A. A. de (org.). O Mundo do Cidadão – Um Cidadão do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.
[5] Santos, M. Por uma geografia nova. 6a ed. São Paulo: Edusp, p. 240. Grifo meu.
[6] Sartre, J. P. Questão de método. In: Sartre. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 124. Ver também a interessante introdução de Sartre à obra de Togliatti, P. O caminho italiano para o socialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
[7] Rampinelli, W. J. A direitização na UFSC e a função do CFH. In: Boletim da Apufsc, 23/11/2009, n. 701, p. 2 e 3.
[8] Lenin, V. I. Acerca do infantilismo “de esquerda” e do espírito pequeno burguês. In: Obras Escolhidas. Tomo 2. Moscou: Edições Progressod+ Lisboa: Edições “Avante”, 1981.