As relações do trabalho no Brasil trafegam de forma tumultuada em um universo complexo: é preciso respeitar nada menos que 922 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), diversos incisos do artigo 7º da Constituição Federal e um sem-número de dispositivos da chamada legislação esparsa. O emaranhado de regras convive com um crescente afunilamento do espaço de negociação entre empregadores e empregados em um ambiente que, segundo especialistas, constrange as contratações.
“A isso se soma a jurisprudência, um conjunto que, além de gerar uma economia informal que absorve cerca de 50% dos ocupados em todo o país, contribui para abarrotar a Justiça do Trabalho de processos que se arrastam por anos a fio”, lembra o sociólogo José Pastore, professor aposentado da FEA-USP e um dos mais respeitados analistas do setor. “Não por acaso, o país ostenta o posto de campeão do mundo ocidental em complexidade nas relações trabalhistas.”
Por ser muito detalhista – e de alcance federal -, a legislação trabalhista torna-se um obstáculo principalmente para as micro e pequenas empresas, analisa a especialista Sônia Mascaro Nascimento. A seu ver, o microempresário acaba sendo tratado da mesma forma que o de grande porte, um ranço dos tempos em que foi criada a CLT, na primeira metade do século passado, quando prevalecia o modelo verticalizado de produção. “Essa legislação foi feita num momento em que as empresas eram na sua maioria grandes e ainda nem se sonhava com a enorme quantidade de prestadores de serviços que se observa hoje.”
Como contrapartida, Sônia Mascaro acha que a legislação esparsa vem oferecendo proteção crescente à dignidade do trabalhador. Na sua visão, o país vive hoje, sob o aspecto humano, um momento particularmente violento nas relações de trabalho. “Essa desumanização avança no mesmo ritmo da competitividade gerada pelo mercado”, diz, citando como exemplos os casos dos operadores de telemarketing e trabalhadores de call center, os chamados infoproletários. “As condições de trabalho oferecidas a essa gente, geralmente muito jovem, são uma expressão acabada da atual desumanização do trabalho.”
Quase todos especialistas na área concordam que no início, em 1943, a CLT – reunindo um conjunto de regras e procedimentos que passou a nortear o relacionamento entre o Estado, empresários e trabalhadores – fazia parte da solução. Afinal, ela ajudou no processo de industrialização de um Brasil que via naufragar sua agricultura cafeeira em meio ao nevoeiro da Depressão de 1929, além de ter convertido o emprego em um fator de transformação social. Porém, com o tempo, a legislação trabalhista do primeiro período da era Getúlio Vargas – cujo arcabouço inicial se encontra preservado até hoje – foi se tornando obsoleta sob muitos aspectos e passou a ser parte do problema.
Pastore defende a desburocratização do mercado de trabalho como forma de combater o desemprego e, principalmente, tentar reverter a trajetória crescente da informalidade. Segundo ele, o conjunto de medidas e expedientes que regulam o mundo do trabalho custa hoje 102,43% do salário ao empregador. “Esse é um número certo e, por estar definido pela Constituição, inegociável.” A seu ver, a informalidade se ajusta ao espírito de um velho adágio francês – quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o direito. “No campo do emprego formal, muitas vezes existe o impulso de se negociar, mas no Brasil a lei ou a jurisprudência funcionam como uma barreira.”
Um estudo de 2008 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrava que as empresas têm dificuldade em se adequar às novas condições do mercado diante de uma legislação trabalhista limitadora. Entre as medidas necessárias, o relatório evidenciava a necessidade de se alterar as regras. “Em particular, as leis e negociações coletivas muito abrangentes, em nível de indústrias ou setores, que estabelecem regras horizontais válidas para todas as empresas de todos os setores, reduzem a agilidade das empresas e, por vezes, impõem custos que, se suportáveis para algumas, são severamente restritivos para muitas outras”, destacava um dos trechos do trabalho.
Na mesma linha, Pastore avalia que uma das heranças do arcabouço inicial da CLT que perdura até hoje é que todo conflito entre empregados e empregadores deve ser acertado por lei e não por negociação, para evitar que o conflito fique circunscrito às dependências da empresa. “Como toda a legislação foi feita de uma forma detalhista, sobraram apenas dois direitos para serem negociados: os salários e a participação dos trabalhadores nos lucros”, diz Pastore.
Numa mesa de negociação, há sempre dois lados – o empregado que pede mais remuneração e o empresário que deseja mais produtividade. “Se um lado pede xis de remuneração e o outro consegue o mesmo xis de produtividade, zera a equação e todo mundo ganha”, ilustra Pastore. “Com essa imposição de 102,43% não sobra espaço para a negociação, porque o empregado já sabe que o seu décimo-terceiro salário, seu terço de férias e seus outros direitos legais já estão no seu bolso.”
Pastore ressalva, no entanto, que nem tudo deve ser entendido como passível de negociação. A proteção ao trabalho do menor, à gestante, as licenças maternidade e paternidade e outros direitos fundamentais – ampliados inclusive por novos dispositivos da Constituição Federal de 1988 – são inegociáveis. “Se houvesse uma área de negociação pelo menos 50% maior do que a de hoje, já haveria condições de se proceder a ajustes mais finos entre produtividade e remuneração”, calcula. Ele pondera, no entanto, que isso só seria conquistado via mudança constitucional.
Do ponto de vista técnico, Pastore acha que a modificação na Carta Magna seria tarefa simples. Bastaria uma pequena alteração na redação do artigo 7º. No lugar em que está escrito “são direitos dos trabalhadores” se escreveria “salvo negociação, são direitos dos trabalhadores”, incluindo-se a seguir “atendendo também a inegociabilidade da proteção ao menor, à gestante etc.” Do ângulo político, entretanto, ele vê a inclusão daquelas “duas palavrinhas”, como uma missão impossível. “Nenhum parlamentar aceita patrocinar essa mudança, razão pela qual só espero reformas fatiadas, tópicas.”
Para Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico nacional do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a legislação trabalhista passou a fazer parte do problema e não da solução porque na maior parte do tempo as regras foram criadas em momentos autoritários. “No caso das relações de trabalho, a mudança no sistema de regulação deve ser precedida pela conscientização, por parte da sociedade, de que as medidas significariam a revalorização dos aspectos tanto da negociação como da segurança jurídica”, diz. Outra precondição é a constituição de atores com maior capacidade política de estabelecer acordos, inclusive no universo sindical. “Como favorecer a negociação com uma estrutura que tem apenas alguns sindicatos fortes, como os de metalúrgicos e bancários, em centros urbanos importantes, se no resto do Brasil vigora a lei da selva?”
Na seara do governo, o ministro Carlos Lupi, do Trabalho e Emprego, também defende algumas mudanças, embora considere que o Brasil é um dos países com a legislação trabalhista mais avançada do mundo. “Devemos nos orgulhar disso, e não tentar derrubar a CLT.” A ideia, diz, é eliminar aquilo que está em desuso e que simplesmente não tem mais aplicabilidade no mundo atual, prejudicando o trabalhador.
Lupi entende que a chamada flexibilização dos direitos trabalhistas, como vem sendo apresentada pelos empresários, defende apenas um ponto de vista. Isto é, os empregadores estariam tentando se livrar da responsabilidade que têm com seus funcionários. “Devemos, ao contrário, lutar para ampliar e aperfeiçoar os direitos dos trabalhadores, em causas como a redução da jornada semanal de trabalho, das atuais 44 horas para 40 horas, e a criação de planos de cargos e salários para todo o serviço público.”
Na visão do ministro, a CLT foi um instrumento primordial para resguardar a empregabilidade em momentos de revés, como a crise financeira que atingiu o mundo no fim de 2008, quando foi sugerida a flexibilização dessas leis. “Um dos grandes desafios do país hoje é acabar com o pensamento de que os direitos do trabalhador são prejudiciais ao crescimento do país”, diz, queixando-se de que a legislação trabalhista, de uma hora para outra.
O ministro do Trabalho e Emprego ilustra sua convicção de que o país está na vanguarda da legislação trabalhista comparando o caso brasileiro com o da China, que não tem nenhuma legislação na área. Pastore, porém, argumenta que não é possível fazer a comparação Brasil-China porque lá há uma série de regras que não são levadas a sério e muito menos cumpridas e a taxa de informalidade é muito mais alta que a nacional, beirando os 75%. “Dá para comparar a legislação brasileira com as que vigoram na União Europeia, Estados Unidos, Japão, Coreia, América Latina, mas com os demais países dos BRICs, não dá”, sustenta. Pastore conta que na Índia a informalidade é ainda maior – da ordem de 90% -, porque, em que pese os indianos contarem com uma legislação rigorosa e de inspiração inglesa, o regime de castas sociais provoca um curto-circuito. “A Rússia também tem uma legislação, mas, na prática, ainda vigora o centralismo estatal por lá.”
“Na comparação com o resto dos países do Ocidente, porém, a complexidade e rigidez das leis brasileiras, caras e juridicamente inseguras, ganha de goleada”, afirma Pastore. No caso dos países anglo-saxônicos se legisla apenas uma parcela dos direitos do trabalho, ficando a parte do leão para ser acertada por negociação no contrato coletivo de trabalho. “Toda vez que eles percebem que o acordado no contrato não está bom, sentam-se novamente em volta da mesa e reformulam tudo”, explica. Segundo ele, nos Estados Unidos também vigora um modelo mais negocial que estritamente legal.
A necessidade de mudanças no cipoal de procedimentos regulatórios é um tema tratado com igual interesse tanto no seio de entidades empresariais do peso de uma CNI como no de centrais sindicais da dimensão da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Denise Motta Dau, secretária de relações do trabalho da CUT, afirma que a central também está bastante empenhada em fortalecer o processo de negociação. “Mas para isso é preciso ter um ambiente propício, com sindicatos fortes e com capacidade de negociação, onde ambas as partes se tornem interlocutores de boa fé”, sustenta. Sua preocupação é, explica, o fato de ainda existirem no país cerca de 8 mil sindicatos pequenos e frágeis do ponto de vista negocial, com apenas algumas “ilhas de excelência” que têm de fato poder de fogo.
Denise se alinha, portanto, com a vertente que defende que, antes da flexibilização nas leis trabalhistas, é preciso mudar a legislação sindical. Por essa corrente é inaceitável que um empregado seja obrigado a contribuir com sindicatos que não lutam pelo seu interesse. O certo é que ele se filie por vontade própria, contribua e receba seus benefícios. “No Brasil de hoje ainda há um número enorme de sindicatos que são criados mais para recolher dinheiro que qualquer outra coisa, ainda sob a vigência da legislação da primeira fase getulista, que interfere na organização sindical”, diz, lamentando que não haja no país sindicato por ramo. “Só tem sindicato por categorias, pulverizado, o que divide a classe trabalhadora.”
A secretária de relações do trabalho da CUT concorda que a CLT é de fato um modelo bastante burocratizado. “A CUT nasceu questionando a CLT, um modelo baseado nos direitos individuais e não coletivos, e também criticando a unicidade sindical, o imposto sindical e a intervenção forte do Estado na organização sindical e nas relações de trabalho”, diz.