Cultura e censura, o grande antagonismo

A cultura é, muitas vezes, utilizada pelos povos oprimidos como mecanismo de resistência. Assim o fizeram os indígenas e os negros contra a imposição do sistema capitalista mercantil, que, inclusive, se utilizou da escravidão na América Latina por mais de 300 anos, para realizar uma acumulação sem precedentes na história da humanidade. Os colonialistas espanhóis, mais vorazes no processo de enriquecimento, passaram a respeitar determinados usos e costumes dos povos originários para poder explorar mais e melhor. Com a independência das colônias espanholas, a elite criolla não só censurou e massacrou a cultura nativa com o intuito de aumentar seu sistema primário-exportador, como também tentou liquidar a história e a tradição destes povos. O resultado de toda esta destruição desembocou na primeira revolução social da América – a Mexicana – a qual adquiriu dimensões globais, por sua posição geopolítica.

No século 20, a censura também foi largamente utilizada pelo Estado populista, mas de modo especial pelas ditaduras. Censurar é cortar, ou seja, impedir que um conhecimento se torne público. Se ontem a censura era feita para permitir a acumulação, hoje é para impedir a politização. Em ambos os casos ela significa alienação e destruição.

A censura acadêmica também chegou à editora da universidade (EdUFSC). Nela coordeno, desde 2003, a coleção Relações Internacionais e Estado Nacional (Rien), cuja principal característica é a análise crítica das relações internacionais em um mundo no qual conceitos como subdesenvolvimento, dependência, imperialismo e terrorismo de Estado foram substituídos por países emergentes, interdependência, globalização e guerra preventiva. Dos três livros publicados pela Rien, o primeiro trata do apoio político e teórico dado por Juscelino Kubitschek e Gilberto Freyre ao colonialismo portuguêsd+ o segundo analisa o nacionalismo e a dominação burguesa no Brasil dos anos 1950d+ e o terceiro trabalha o imperialismo e sua entrada na América Latina por meio da economia, do militarismo e da ideologia. A Coleção Rien tem sido muito bem aceita pelo público leitor, tanto que um dos títulos já está praticamente esgotado, e outro se encontra a caminho.

Na condição de coordenador da coleção, apresentei o livro El terrorismo de Estado en Colombia (já publicado por editoras da Venezuela, da Espanha e, agora, da França), de autoria de Hernando Calvo Ospina, jornalista do Le Monde Diplomatique, para fazer parte da coleção Rien. A obra foi examinada por dois docentes – um da UFSC e outro da UFRGS –, tendo ambos emitido pareceres favoráveis à sua publicação. Um deles foi Paulo G. Vizentini, professor dos cursos de História e de Relações Internacionais, como também do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vizentini é um nome nacional, com inserção internacional, no campo da pesquisa, do ensino e da análise das relações entre os países. Coordena, também, pela Editora da UFRGS, a série Relações Internacionais e Integração.

Ocorre que um membro do Conselho Editorial da EdUFSC, pertencente ao Departamento de Engenharia Elétrica, professor João Pedro Asumpção Bastos, inconformado com os dois pareceres favoráveis, pediu vistas das duas aprovações e, com uma leitura dinâmica de partes do livro (suponho, pois teve apenas uma semana para examiná-lo, enquanto os dois pareceristas levaram, no mínimo, um mês), exarou um parecer contrário à sua publicação, sendo acompanhado por quatro conselheiros. Dois conselheiros votaram contra, defendendo a publicação da obra. O inédito aconteceu: o eletricista venceu o internacionalista em matéria de política internacional. E o mais lamentável: não se pode ter acesso aos pareceres pelas vias normais, mesmo solicitando que se preserve o nome dos autores, agora, por força das circunstâncias, tornados públicos por mim.

A rejeição ao livro El terrorismo de Estado en Colombia se deve a cinco fatores fundamentais: 1) um profundo desconhecimento da realidade colombiana, imaginando-se que, ao se falar de terrorismo naquele país, só se possa incriminar os diversos grupos guerrilheiros e jamais o Estadod+ 2) um grande preconceito contra os governos nacionalistas andinos, que buscam a superação do capitalismo neoliberal e rentista, pois cabe à Colômbia, a mando de Washington, a função de deter tais avançosd+ 3) uma enorme falta de sensibilidade histórica, social, política e acadêmica, já que não se permite aos leitores em geral conhecer de perto, por meio de documentação primária, o terrorismo de Estado praticado na Colômbiad+ 4) uma mentalidade colonizada, porque publicar sobre o terrorismo de Estado na Colômbia significaria envolver diretamente os Estados Unidos em crimes de lesa-humanidade, sendo isso inaceitável para certos tipos de doutores que fizeram parte de seus estudos neste paísd+ 5) por último, uma ofensiva da direita dentro da UFSC, comandada pela administração central, que não apenas se apropria de sindicatos e de centros acadêmicos de estudantes, mas também da editora, usurpando sua finalidade primeira, a de publicar sobre a diversidade de pensamento.

Além disso, a mídia nacional e estrangeira vem discutindo com muito afinco o papel da Colômbia na América do Sul por conta das sete bases militares estadunidenses a serem instaladas no país, afetando, inclusive, a Amazônia brasileira. O livro, dentro de uma perspectiva histórica, ajudaria a entender esta realidade. No curso de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidade Nacional Autônoma do México, ele se tornou leitura obrigatória para os estudantes. Aqui foi vetado.

A linha editorial adotada pela EdUFSC, de se posicionar contrária a qualquer publicação de análise política que contenha o que parte de seus conselheiros denominam de militância, empobrece a nossa já fraca atuação editorial universitária. Livros que apresentem qualquer análise política com algum caráter de mudança já não podem mais ser editados. Neste caso, Marx, com O Capital e a perspectiva de superação do capitalismo, seria rejeitadod+ Weber, com Economia e Sociedade e a análise da burocracia, seria vetadod+ e Florestan, com a Revolução Burguesa no Brasil e sua crítica às classes populares marginalizadas, não passaria pelo crivo da editora. Afinal, são todos livros críticos com um objetivo militante muito claro: a mudança do Estado, da sociedade e do sistema. Esta é a situação autofágica na qual se meteu a Editora da UFSC. Em nome de um falso academicismo e de uma pretensa neutralidade, que nada mais é do que a preservação do conservadorismo e uma abertura para a direitização, abandona-se a linha mestra que deveria guiar qualquer editora universitária: a crítica e a pluralidade.

A responsabilidade por tamanho conservadorismo e por tão grande desserviço prestado à liberdade de conhecimento no que toca ao continente latino-americano cabe ao reitor Álvaro Prata (que mostrou desprezo pela América Latina em sua campanha para a reitoria), à secretária de Cultura e Arte, Maria de Lourdes Borges (que se orgulha daquilo que deveria se envergonhar: defender a ideologia eurocêntrica e, ao mesmo tempo, dirigir a arte e a cultura em uma universidade brasileira), ao diretor-executivo Luiz Henrique Dutra (mero executor de ordens superiores) e a uma parte significativa do Conselho Editorial da EdUFSC, que foi escolhida pela administração central e não dispõe de independência suficiente para zelar pela liberdade de pensamento de nossa casa editorial. É preciso democratizar a escolha dos integrantes deste conselho, para que este represente não apenas as várias áreas do conhecimento, mas também as diversas tendências políticas existentes na universidade. Para completar, só faltam atos secretos na editora. Aliás, os pareceres já o são.

Penso que não podemos nos calar diante da censura acadêmica e da imposição de políticas editoriais conservadoras, e até reacionárias, em uma universidade federal. A EdUFSC é mantida pelo orçamento público e não privado. Portanto, ela tem por obrigação refletir, teoricamente, as várias interpretações da sociedade. Rejeitar um livro por suas ineficiências, sim, mas por seu conteúdo histórico-político, não. Este foi um ato conservador, autoritário, antiacadêmico, antiuniversitário e antiplural. Nada fazer diante desta política estabelecida é guardar um silêncio bastante parecido com a estupidez.

* Professor da UFSC e coordenador da coleção Relações Internacionais e Estado Nacional (RIEN)