A reforma sanitária brasileira nasceu da luta contra a ditadura, estruturou-se nas comunidades, nos serviços de saúde, nos sindicatos e nas universidades e resultou no pacto social estampado na Constituição Federal: a saúde como direito do cidadão e dever do Estado.
No artigo “A segunda reforma sanitária” (“Tendências/Debates”, 20/7), o secretário de Estado da Saúde de São Paulo, Luiz Roberto Barradas Barata, faz uma releitura deformada dessa grande conquista da população.
Ao alegar dificuldades “insuperáveis” do SUS (Sistema Único de Saúde), desfia saídas que vão da sugestão simplista de remunerar médicos por produtividade até a defesa enigmática de um “novo arcabouço institucional e legal” para a assistência farmacêutica, passando pela sublimação das organizações sociais como modelo de gestão.
Mais espantosa que tudo, porém, é a proposta de livrar as empresas de planos de saúde da cobertura de determinados procedimentos de urgência e alta complexidade em troca de uma contribuição para o SUS.
Embora seu raciocínio tortuoso afirme o contrário, é o sistema público que passaria, com isso, à posição complementar. Sem garantias de ressarcimento, o SUS aliviaria de vez os planos privados do ônus de tratar doenças não lucrativas.
Alheio à universalidade e à equidade, esteios do SUS incompatíveis com a atividade mercantil, o setor suplementar, ao pagar um “pedágio”, ficaria desobrigado também do atendimento integral.
Os planos de saúde sempre empurraram doentes e idosos para o SUS, lucram com o dinheiro público destinado ao financiamento de planos privados para o funcionalismo e ainda recebem subsídios indiretos, como a dedução, no Imposto de Renda, dos gastos com assistência suplementar.
O SUS foi inscrito na seguridade social para, com a assistência social e a Previdência, garantir condições de igualdade aos cidadãos por meio de sistemas universais, públicos e financiados por toda a sociedade. Até agora, o parasitismo do privado sobre o público só gerou injustiças no acesso à saúde.
Não há o que inventar. A democratização por meio do controle social e a subordinação da saúde, por ser de relevância pública, à autoridade descentralizada são princípios muito caros à sobrevivência do SUS. Longe disso, há gestores que se omitem, ao dificultar a participação popular, ao restringir o financiamento, ao permitir a expansão do setor privado em áreas que são estritamente públicas.
A sociedade brasileira investiu trabalho e esperança na construção de um sistema de saúde para todos. Mesmo emparedado, o SUS demonstra a todo tempo que é viável -vejam-se os programas nacionais de imunização, Aids e transplantes.
As falhas do Sistema Único de Saúde não serão resolvidas com a retórica de gestores que nem sequer dominam as condições para implementar as mudanças que defendem.
O reconhecimento dos avanços não pode esconder a indignação. Mesmo no Estado mais rico do país, a população sofre sem saber onde, em que condições será assistida ou quanto tempo tardará o atendimento.
Não é preciso uma segunda reforma sanitária para que os serviços do SUS passem a funcionar como uma rede integrada, com porta de entrada única.
É fácil arvorar-se em alternativa do futuro, supondo que tudo o que veio antes estava errado.
Difícil é dar cabo das mazelas do presente, como as dificuldade dos pacientes de acessar medicamentos e exames, os desvios de dinheiro público para hospitais lucrativos considerados filantrópicos, a manutenção da dupla porta de entrada, do atendimento a convênios e particulares em hospitais universitários do SUS, as más condições de trabalho e os salários aviltados dos profissionais de saúde, a utilização de cargos de direção e setores de compras do SUS como moeda política, o que tantas vezes leva à corrupção, drena recursos escassos e compromete a qualidade dos serviços.
Concluir a reforma sanitária em sua concepção original e superar o abismo entre o direito à saúde vigente e o direito vivido são deveres do Estado que não podem mais ser protelados. Para isso, é preciso estabelecer responsabilidades sanitárias claras, assim como mecanismos legais de punição de gestores e governos diante de metas não cumpridas e da desobediência aos preceitos constitucionais.
Mário Scheffer, 42, doutor em ciências, é pós-doutorando do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Grupo Pela Vidda/SP.
Sônia Fleury, 59, doutora em ciência política, é professora titular da Fundação Getulio Vargas (RJ) e presidente do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde).