O Ministério da Educação (MEC) quer alterar a maneira como o vestibular ocorre no país, unificando-o. A proposta é que um novo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), uma prova nacional, seja utilizado para seleção de candidatos às universidades. Um dos objetivos principais é aumentar a mobilidade dos estudantes. Um aluno no Nordeste, por exemplo, realizaria a prova na sua própria cidade e poderia concorrer a uma vaga numa universidade na região Sudeste e vice-versa. Como era de se esperar, mudanças dessa natureza suscitam dúvidas sobre as suas consequências e pede uma análise mais detalhada.
Inicialmente, vale mencionar o ponto negativo do processo: a pressa do MEC em implementar a proposta, tentando convencer várias universidades públicas a utilizarem o novo sistema já a partir deste ano. Isto demonstra certo descaso e desconsideração com os estudantes que, neste momento de natural dificuldade, tensão e stress, se deparam com mudanças nas regras do jogo de um dos exames mais importantes das suas vidas aos 45 minutos do segundo tempo. Além da unificação, o novo Enem vai ser caracterizado por mudanças no formato das provas, passando a ser algo entre o atual Enem e os vestibulares existentes. Regras claras, bem definidas e sem sobressaltos é o que se espera dos agentes reguladores. O mais correto seria o anúncio da mudança com bastante antecedência e sua implementação no futuro.
No entanto, não resta dúvida que a proposta racionalizaria o atual sistema. Recursos e tempo deixariam de ser desperdiçados pelos estudantes no deslocamento para a realização das provas nas diferentes universidades e ampliaria o leque das suas opções, sem mais se restringir àquelas geograficamente perto de onde moram.
Juntamente com a unificação do sistema, o governo promete aumentar as verbas destinadas para financiar os gastos extras que os possíveis migrantes teriam ao estudar longe de casa, como alojamento, por exemplo. É a partir daí que consequências interessantes podem ocorrer no processo.
Como as melhores escolas, em geral, estão nas regiões mais ricas do país, ocorreria um êxodo dos melhores alunos para elas. Não muito diferente do que ocorre com os nossos melhores jogadores de futebol para o exterior. Possivelmente, alunos das regiões mais ricas que não consigam vagas nas universidades das suas regiões ocupariam as vagas nas regiões mais pobres, visto que suas notas podem ser maiores do que as dos locais. Portanto, é provável que o movimento de alunos ocorra numa via de duas mãos. Atualmente, 0,05% dos estudantes brasileiros estudam fora do seu Estado. A possível mudança não elevaria este patamar para além de 20%, que é o nível nos Estados Unidos, aonde o grau de mobilidade continuaria sendo bem maior.
Com essa livre mobilidade dos alunos e a consequente integração geográfica do mercado, os estudantes se agrupariam nas diferentes universidades em função das suas qualidades. Por um lado, um corpo discente muito mais homogêneo passaria a existir dentro de cada universidade. Os melhores alunos ficariam agrupados nas melhores escolas, os médios nas escolas médias e por aí vai. Por outro lado, aumentaria a diferença entre as universidades em relação à qualidade média de seus alunos, pois as melhores instituições concentrariam ainda mais os melhores alunos.
Uma característica peculiar do mercado de educação ampliaria os efeitos sobre a diferença da formação dos estudantes das melhores escolas vis-à-vis às demais. O estudante é, ao mesmo tempo, consumidor e insumo no processo produtivo de uma universidade. Quem já frequentou os bancos escolares sabe que grande parte do aprendizado ocorre por meio da interação entre os alunos – o chamado efeito dos pares (em inglês, peer effect). Quanto melhor a qualidade dos alunos que entram, ceteris paribus, melhor a qualidade na saída, também pela sinergia criada pelos bons alunos. Seguindo este raciocínio, a diferença entre a qualidade do profissional formado nas melhores escolas do país, localizadas nas melhores regiões, em comparação com as demais, simplesmente aumentariam.
Não é improvável que estes melhores profissionais terminem por estabelecer-se nos centros mais ricos, com possíveis consequências para as disparidades regionais. Em contrapartida, no entanto, o mais provável é que a qualidade média da produção educacional no país aumente. Com a livre mobilidade de fatores (estudantes), eles tendem a ser alocados naquelas universidades que geram um maior retorno para os seus investimentos, com consequências positivas sobre qualidade total. Neste caso, teríamos então mais um possível exemplo do clássico conflito entre equidade e eficiência.
Algumas das consequências mencionadas acima, dentre outras, ocorreram no mercado de educação superior nos Estados Unidos, como consequência da maior integração geográfica a partir da década de 40. Várias causas levaram a essa maior integração, sendo uma das mais importantes o advento dos modernos testes padrão de admissão na década de 40.
Entender as possíveis consequências da proposta do MEC é de fundamental importância e contribui para que os diferentes atores envolvidos no processo se preparem para seus impactos. As consequências de uma maior mobilidade não devem ser desprezadas.
Eduardo de Carvalho Andrade é PhD em economia pela Universidade de Chicago e professor do Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa ([email protected]).