Chapadinha, no leste do Maranhão, tem 70 mil habitantes e apenas no lado ímpar de quatro quadras de sua avenida principal, a asfaltada Oliveira Roma, contam-se 13 farmácias. Balcões e armários brancos, esmaltados, limpos, as farmácias são povoadas de fregueses, quase tantos quanto os que, logo depois da loja do Boticário, na esquina da Caixa Econômica Federal, frequentam a fila do Bolsa Família ou o guichê da Mega-Sena acumulada. À noite, boêmios, casais de namorados e alguns poucos “gaúchos” – negociantes de soja presentes na cidade apenas para uma transação bancária, pois as grandes plantações estão a 100 quilômetros, em outros municípios – reúnem-se na praça principal para tomar cerveja e assistir a novela ou o jogo do Brasileirão na grande tela de cristal líquido.
Nesta região do Baixo Parnaíba, quase divisa com o Piauí, que já não é mais floresta amazônica, mas a vegetação rasteira ainda não se definiu entre ser caatinga ou cerrado, o governo federal desenvolve uma de suas experiências de interiorização do ensino superior. Trata-se do Centro de Ciências Agrárias e Ambientais (CCAA), um campus avançado da Universidade Federal do Maranhão. A experiência está dando certo? Sim e não.
“O campus tem problemas, sim, mas é experiência fascinante com belo futuro”, diz Jocélio dos Santos Araújo, paraibano de 33 anos. Diretor desde 2008 do CCAA, onde há três anos funcionam cursos de graduação em agronomia, zootecnia e biologia, Jocélio chegou ao Maranhão depois de um périplo pelo país. Graduou-se em zootecnia no campus da Universidade Federal da Paraíba, na cidade de Areiad+ fez mestrado na Federal de Pelotas, RS, e o doutorado na Federal de Lavras, MG. Era orientador de mestrado na Universidade Estadual do Paraná, em Cândido Rondon, quando se candidatou a professor em Chapadinha e, mais tarde, a diretor do campus, para receber a maioria dos votos de alunos, funcionários e professores. “Esta região tem um dos dez piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil e a vida aqui tem poucos confortos. Mas por isto estamos aqui, para a transformação. Sabemos que o pioneirismo implica sacrifícios, é assim no mundo inteiro”, diz Jocélio. O IDH de Chapadinha (longevidade, educação e renda) é de 0,588, inferior à média do Maranhão (0,683) e também de Alagoas (0,677), os Estados com a pior qualidade de vida do país. Brasília tem o IDH mais alto, 0,874.
Ao lado de sua mesa, na apertada sala de diretor do campus, Jocélio ostenta um espectrofotômetro de infravermelho próximo. O delicado equipamento serve, por exemplo, para estimar o quanto de proteína um bovino ou caprino precisa para aumentar sua produção de carne ou leite. Em todo o Nordeste só a Embrapa possui semelhante joia, e Jocélio, mestre e doutor em zootecnia, a afaga com orgulho.
O maior dos problemas do campus está a menos de duzentos metros e estaria à vista do diretor se seu gabinete tivesse uma janela para o horizonte. Por trás de viveiros com experimentos de legumes e hortaliças aparecem os primeiros telhados dos invasores. Jocélio mostra um desenho com o traçado original do terreno da Universidade, algo com a forma de um trapézio, e separa 20% com um risco: “Até aqui mando eud+ o resto é invasão”.
Dos 150 hectares pertencentes ao campus, em torno de 120 estão ocupados por intrusos. Nada dos tradicionais sem-terra, aqui os invasores são gente de posses, mais de 100: pequenos e médios comerciantes, dentista, dono de uma rede de padarias, funcionários públicos, afilhados de políticos, ex-delegado e até um sargento aposentado da Polícia Militar que ergueu uma casa de campo com mais de 250 m2 , dois andares, avarandada, com piscina, obra de arquiteto competente e de bom gosto. Poucos invasores moram nas casas – alguns vivem em São Luís – ou não estão em casa nas horas de trabalho. Às três da tarde de uma quarta-feira, o Valor conversou com Antônio Diogo de Souza, que faz parte dos três ou quatro que não tinham onde morar antes da invasão. Antônio, com mulher e quatro filhos – o mais velho, 20 anos, desempregadod+ os demais não estudam -, está ali “há dez anos”. “Os ricos estavam chegando e eu cheguei também com minhas coisas”, diz. Ao lado de sua casa começa “o sítio” do dono das padarias. Antônio ocupa um terreno de 26 por 110 metros, onde, atrás da casa de taipa, cultiva uns dez pés de macaxeira. “Se o doutor quiser, vendo o terreno agora por 20 mil”.
Na 5ª Vara da Justiça Federal em São Luiz tramita o pedido de reintegração de posse. A causa se arrasta desde o ano passado e, pela ousadia de pedir a expulsão dos invasores, Jocélio foi ameaçado de morte, e, com a mulher, mineira, e duas filhas, uma de 16 anos e outra de 11 meses, teve de abandonar Chapadinha por alguns dias, no começo do ano. Foi quando, autorizado pelo juiz federal José Carlos do Vale Madeira, e pelo reitor da UFMA, começou a cercar com muros o terreno pertencente ao campus. Nada aconteceu com Jocélio, mas um vereador e seis capangas espancaram, no centro da cidade, o professor Telmo José Mendes, secretário do meio ambiente da atual prefeita, Danúbia Almeida (PR). O paulistano Telmo, formado em engenharia civil na PUC de Campinas, com doutorado de geociências na Unicamp, leciona desenho técnico, topografia e construções rurais no campus, aonde chegou precisamente durante a aula inaugural no dia 20 de novembro de 2006, em meio, segundo ele, ao maior temporal de sua vida. Como secretário municipal, Telmo recomenda fossas sépticas aos habitantes da cidaded+ como professor do campus, cuidou do muro que tenta evitar novas invasões. A ausência de fossas pode explicar o mercado para tantas farmácias em Chapadinha, como o muro do campus explicaria a surra em Telmo. Isaías Fortes (PP), prefeito eleito em 2006 e cassado logo depois por corrupção em gestão anterior, foi um dos que autorizaram amigos e afilhados a ocupar as terras do campus. E é pai do vereador espancador.
As terras foram doadas pela prefeitura à Universidade em 1983, em documento registrado em cartório. No local, funcionou um curso de pedagogia, também ligado à UFMA, que formou apenas uma turma, não promoveu novos vestibulares e fechou as portas em 1987 (José Sarney, PMDB, maranhense de Pinheiro, era o 35º presidente da República, com mandato de 1985 a 1990). Abandonados, os 150 hectares foram sendo invadidos. A própria prefeitura, em várias gestões, doou, também com papel passado, parcelas da propriedade, mas já não podia presentear com o que não mais lhe pertencia.
Só em 2006, o governo federal resolveu reocupar o terreno e dar-lhe um destino permanente e sério, ao lado de outros quatro campi no Maranhão: Imperatriz, Bacabal, Pinheiro e Codó. O campus agora integra o Programa de Apoio a Planos de Restruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Em despacho de 7 de maio, o juiz federal Madeira determinou uma perícia para definir os limites da propriedade da Universidade e a realização de um estudo sócioeconômico da situação dos “residentes em cada imóvel (o juiz não usa a expressão “invasores”)”. O reitor Natalino Salgado diz que a prefeitura de Chapadinha concorda em remover os moradores de baixa renda para terrenos da municipalidade. “Quanto aos demais, com casas de alvenaria, vamos brigar na justiça, sem acordo”. A prefeitura concorda também em ceder, até que a questão judicial se resolva, uma outra área para as atividades práticas do campus.
Esta é a segunda razão das queixas dos alunos: como podem funcionar cursos de agronomia, zootecnia, biologia, se não há espaço para plantar e semear, criar gado (caprino, especialmente), movimentar máquinas, cultivar peixes em tanques? “As primeiras turmas se formarão em 2011 e teremos deficiência em disciplinas de campo”, diz Charles Tavares, 20 anos, do quinto período de agronomia, cujo pai na cidade de Tuntum, ao sul do Maranhão, 480 quilômetros de Chapadinha, quer aproveitar o aprendizado do filho para melhorar o rendimento de seus 200 hectares de terra. ” Os professores são bons, mas ficamos na teoria. Às vezes vamos visitar fazendas aqui perto. É solução entre aspas, porque não basta ver o que os outros fazem. Tem que botar a mão na terra, errar, acertar. Assim é que se apreende”.
A namorada de Charles Wagner, Larissa Portela, 22 anos, leva dois dias no carro do pai para vir de Anápolis, Goiás, para cursar o terceiro período de zootecnia em Chapadinha. Ela também se queixa da falta de aulas práticas, mas diz que já fez dois anos de veterinária na PUC de Poços de Caldas, MG, – “onde descobri que minha vocação era a zootecnia” -, e observa uma vantagem em Chapadinha. “As coisas ainda não funcionam perfeitamente, mas aqui a mentalidade é nova e a partir do ano que vem acho que tudo será novo, laboratórios, equipamentos”. Larissa diz que há faculdades com 60,70 alunos para um professor. “Aqui a relação é de dez para um” .
Professores e alunos têm outra carência: salas de aula. Estas, mais a biblioteca, os laboratórios e a própria sala de reunião e descanso dos professores, comprimem-se no prédio da administração. Um moderno edifício à entrada do campus deveria estar pronto desde 2007, mas a construtora faliu no meio das obras. Elas foram retomadas este ano e metade das instalações está concluída, à espera de detalhes de acabamento, água e luz. O reitor Natalino voltou de Brasília há dez dias com uma boa notícia: o Ministro da Educação, Fernando Haddad, liberou R$ 6 milhões para assegurar que o novo prédio e um anexo para abrigar máquinas dos cursos de agronomia e zootecnia funcionem em março de 2010. Com isso, o campus pode abrir mão de salas de aula alugadas de uma escola particular no centro da cidade. “Com aulas em lugares diferentes e distantes, interrompe-se a convivência de docentes e discentes que define uma universidade”, diz o presidente do Centro Acadêmico da Biologia, Wagner Marques, 24 anos, quinto período. No ano passado, por causa das deficiências de infraestrutura, os três cursos, com a liderança da biologia de Wagner, entraram em greve e o campus ficou mais de um mês paralisado. Wagner não afasta a hipótese de nova greve no segundo semestre. Ele diz que, em São Luís, a reitoria dá pouca atenção aos problemas de Chapadinha e que recursos liberados por Brasília sofrem “estranhas demoras” no seu repasse para o campus (o reitor nega).
O campus tem hoje 406 estudantes e é destacável a quantidade de alunas. Elas só são minoria em ciências biológicas: 109 homens, 47 mulheres. Nas 102 matrículas de zootecnia, as mulheres são exatamente a metade. E em agronomia há 47 homens e 101 mulheres. O diretor Jocélio considera pequeno o número de estudantes. Com 40 vagas a cada semestre, o campus deveria ter hoje perto de 800 alunos.
“A causa é a fraca aprovação no vestibular”, diz André Luiz Gomes da Silva, fluminense de São João do Meriti, doutor em biologia. Aos 21 anos, soldado da aeronáutica no Rio, lembra que foi denunciado por um cabo por ler um livro de plantas e flores no horário de serviço. “É verdade, capitão”, disse André ao comandante, “tenho exame hoje à noite.” “Exame de quê?” “Biologia, estou no terceiro ano de graduação”. “Cabo”, gritou o capitão, “você é que merece alguns dias de gancho”. André Luiz, de família pobre da Baixada Fluminense, fez todos os cursos em escola pública e é considerado um dos melhores professores de Chapadinha. “É igual à gente”, dizem os alunos.
Larissa Portela conta que havia 500 inscritos para 80 vagas na zootecnia quando fez vestibular. “Só passaram 24”. Analu Pereira dos Santos Costa, da cidade de Brejo, a 80 quilômetros, 20 anos, quinto período de biologia, mãe viúva e professora primária, conta que em sua turma de vestibulandos, em 2007, eram 200 candidatos. “Passaram 13”. André Luiz explica: “O número de inscritos confirma o interesse pelo campus no Norte, no Nordeste e até no Centro Oeste. As pessoas não passam no vestibular porque o ensino médio é fraco”.
Em lugar de escolas de cara e alta tecnologia, não seria melhor instalar em Chapadinha, como se tentou fazer na década de 80, escolas de licenciatura, formar professores de ensino médio? A maioria dos professores e alunos discorda. O reitor argumenta: “A presença do campus já mobiliza e vai modernizar a economia da região, gerar emprego e renda no Maranhão e também no Piauí, que é próximo. E tenho uma notícia: Estamos implantando a 100 quilômetros, em São Bernardo, uma extensão do campus de Chapadinha, com cursos de licenciatura em ciências da natureza, matemática, informática, ciências humanas. As aulas vão começar em março”.
Lívio Martins Costa Jr. é da vizinha cidade de Brejo, e veio a ser professor em Chapadinha depois de graduar-se na UFMA e fazer mestrado e doutorado na Federal de Minas Gerais. Reconhece que, até agora, o campus contribuiu pouco para mudar mentalidade e modo de produção da região de Chapadinha, cuja economia ainda gravita em torno do comércio, do cultivo do babaçu e algumas plantações de soja, com mão de obra que os “gaúchos” – quem planta soja no Maranhão é gaúcho, mesmo que tenha nascido em Juiz de Fora – importam de outros Estados, pois “aqui ninguém sabe manejar máquinas de até R$ 1 milhão”, como diz Charles Wagner, o namorado de Larissa. “Precisamos de um efeito demonstração, alguém que venha de baixo e que faça sucesso. Ele servirá de modelo e outros o seguirão. Tem que acabar essa ladainha: “meu vizinho se mata e nunca sai do lugar””, diz Lívio, que leciona no campus e tenta criar empresários modelo em experiência que realiza com 20 famílias de criadores da cabras e ovelhas a 70 quilômetros da cidade. Veterinário e parasitologista, Lívio leva seus alunos para constatar os progressos que já alcançou no combate à verminose do rebanho e no aumento da produção (5 kg de peso vivo, 2,5 kg de carne) em caprinos de corte que trata com tanino de acácia. “Nunca pensei que poderia exercer a profissão na minha terra”, diz Lívio, otimista, também, com o crescimento da produção de soja. “Pode ser o início de uma cadeia produtiva, industrialização local de óleo e farelo, fábrica de rações para permitir criação de frangos. É isso: visão empresarial e vontade política”.
“E o transporte dos estudantes?”, pergunta Joyce Laís Alves de Souza, 20 anos, quarto período de biologia, filha de um pedreiro em Magalhães Almeida, a 160 quilômetros de Chapadinha. “Não é mestre de obras, não. É pedreiro mesmo, ganha diária de R$ 35, quando trabalha”, explica Joyce. Ela, Analu e a outra companheira de república, Ana Paula, 20 anos, quarto período de biologia, nascida em Nina Rodrigues, a 90 quilômetros, vão juntar-se todas as manhãs a dezenas de colegas que, na frente da prefeitura, esperam carona para o campus. Não há transporte coletivo na cidade. Para chegar até o campus, só de carona, de bicicleta ou moto. “Na volta até dá para vir a pé, a gente vem conversando, sem hora para chegar, mas são mais de 40 minutos”, diz Ana Paula. As três, que, mesmo quando o Valor as fotografava, não largavam os livros, pois era época de provas, contribuem com R$ 160 cada uma para a caixinha comum destinada ao aluguel de uma república com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, mais alimentação e limpeza.
Não há transporte e também não há restaurante universitário, nem quadra de esportes no campus. “As duas últimas questões terão solução até o ano que vem. Estou na reitoria há apenas 18 meses”, diz Natalino, 60 anos, médico nefrologista, maranhense de Cururupu, e doutor pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Já o transporte é problema da prefeitura que, como tudo na cidade, parece não ter muita consciência do que representa um campus universitário nas imediações.