Classificar Manuel Zelaya como o novo cesarista latino-americano é incorrer em erro conceitual grosseiro. Buscar na influência da política externa venezuelana elementos que permitam compreender os acontecimentos em Honduras revela apenas a precariedade da análise, a falácia de uma metodologia preguiçosa e a má fé política de quem se aventura por esse caminho.
Se há algo a ser correlacionado entre os dois países é um passado de institucionalização precária, de redistribuição regressiva da riqueza produzida e empobrecimento crescente das classes trabalhadoras. Se, encarnando aquilo que Gramsci definiu como cesarismo progressivo, Hugo Chávez golpeou fortemente as agremiações tradicionais (Ação Democrática e Copei) e as oligarquias que se refestelaram de petrodólares, sem reinvestir no país um centavo sequer, Zelaya foi derrubado, numa quartelada, no dia em que realizaria uma consulta popular, convocando a população a se manifestar sobre uma reforma constitucional. Seria a ampliação do espaço público ameaça tão intensa que justifica a brutalidade da reação?
O que une a oposição de direita em Tegucigalpa e Caracas não é o apreço pela legalidade, mas a veneração reacionária por um passado que não lhes poupou privilégios em detrimento de uma maioria excluída de qualquer direito. Enquanto a elite venezuelana, desde a nacionalização do petróleo nos anos 1970, fez do recurso básico a fonte de uma economia do desperdício, incrementando as importações para consumo de bens luxuosos, a hondurenha soube aproveitar ao máximo o fato de o país, por duas décadas, ter, como destaca Flávio Aguiar em seu artigo (Honduras: a lógica do golpe), se transformado em um centro irradiador de ações militares anti-esquerdistas no próprio país e nos vizinhos, como em El Salvador e na Nicarágua.
O que se passava no país centro-americano era o embrião de uma política de transferência de renda para os mais pobres, que desagradou às elites conservadoras bem como as oligarquias partidárias, sedentas por continuar a usufruir o bem público como direito hereditário. O fato de Zelaya ter confrontado o Congresso, o STF e o Ministério Público serve como justificativa para a ação militar? Há como endossar tese do presidente interino, o golpista Roberto Michelleti, de que se tratou de uma ação preventiva, um contragolpe? O isolamento internacional responde a essas questões.
Como na famosa letra de Chico Buarque, a direita golpista não se deu conta de que “o tempo passou na janela e só ela não viu.” A resolução unânime de repúdio ao golpe de Estado na Assembléia Geral da ONU, o ultimato da OEA e a condenação categórica da União Européia e dos Estados Unidos demonstram que há uma nova configuração geopolítica mundial sendo desenhada. Para desespero da direita Carolina e seus apoiadores habituais que acompanharam com alguma esperança a quartelada em Tegucigalpa.
Já estamos distantes da época em que Robert Mcnamara, então Secretário de Defesa dos EUA elogiava ditadores latino-americanos dizendo que “eles são os nossos líderes. Não é necessário estender-me sobre a importância de ter em posições de liderança, homens que conhecem previamente como nós, americanos, pensamos e fazemos as coisas”.
A política, como instrumento de reinvenção, operou uma acentuada mudança de cálculo. Dessa vez, o golpismo não percebeu que “lá fora, uma rosa nasceu, todo mundo sambou e uma estrela caiu”. Feliz conjunção da poética e da práxis que não aceita retrocessos.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil