Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 3.734/08, do deputado Ribamar Alves (PSB-MA), propondo modificação no artigo 5º da lei 3.999/61. Essa lei fixa o piso salarial dos médicos e dentistas, mas só daqueles empregados de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, como estabelece seu artigo 4º. Hoje, o valor desse piso é igual a três vezes o salário-mínimo. Se o projeto for aprovado, o piso subirá para R$ 7.000 – soma respeitosa aos deveres e responsabilidades dos médicos-, mas continuará sem beneficiar os que trabalham para o setor público.
Em um país cujos salários da maioria de seus trabalhadores são pouco valorizados, é legítimo indagar: Os médicos, em média, já não ganham muito? Quais os benefícios, para o Brasil, de aumentar o piso salarial somente de médicos do setor privado? O valor do piso não deveria amparar também os vencimentos de médicos empregados da administração pública, nos moldes do Sistema Único de Saúde, instituído pela Constituição de 1988?
Uma análise sintética revela que alguns médicos ganham muito trabalhando em seus consultórios privados. Muitos médicos ganham mais que a média da população, excedendo 60 horas semanais de trabalho em três ou mais empregos e muitos plantões. Entretanto, parte substancial dos médicos que trabalham para o SUS ganha em torno de R$ 1.500. Sem entrar no mérito da quantia, o piso é mecanismo que permite estabelecer um patamar de dignidade para que o médico possa cumprir o que a sociedade exige dele: obter boa formação acadêmica em regime integral durante seis anosd+ fazer residência para se tornar especialistad+ atualizar-se constantemented+ formular diagnósticos elaborados e administrar tratamentos complexos, sem lesar os pacientes com suas decisões ou ações.
A importância de um salário equitativo é a mesma para os médicos do setor privado e os do SUS. A Constituição é clara ao estabelecer, em seu artigo 7º, V, como direito do trabalhador o “piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho”. O artigo 39, que trata dos servidores públicos, dita em seu parágrafo 1º: “A fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará: I – a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreirad+ II – os requisitos para a investidurad+ III – as peculiaridades dos cargos”.
Todos esses quesitos não devem diferir significantemente por ser o empregador do médico de direito público ou privado, visto que o atendimento ao paciente sempre tem que ser o melhor possível e que todo brasileiro tem direito a ser tratado com excelência ao utilizar os serviços do SUS. Pagar salários irrisórios aos médicos dá prejuízo. Médicos mal pagos são obrigados a acumular empregos e plantões, tornando-se mais propensos a cometer erros que podem custar a vida -resultantes da fadiga, das consultas apressadas para poder se deslocar entre os diversos empregos e da falta de tempo para estudo e lazer.
Estabelecer salário digno para todos os médicos possibilitaria adequar o número de horas trabalhadas a níveis mais saudáveis, condizentes com suas responsabilidades. Consequentemente, o médico se tornaria mais produtivo e até custaria menos, considerando o elevado desperdício resultante de prescrições e retornos indevidos causados pela correria atual. Além de valorizar os profissionais atuais, a remuneração justa terá repercussões nas gerações futuras.
Hoje, excelentes alunos são desencorajados de cursar medicina pelo medo de não conseguirem empregos que compensem o gasto exigido na formação. O piso incentiva que médicos talentosos se tornem estudiosos, que desenvolvam e repassem conhecimentos adequados à realidade do país, diminuindo nossa dependência da importação de medicamentos, equipamentos e know-how.
O brasileiro tem o direito à assistência médica pública e eficaz assegurado pela Constituição Federal. É dever do Estado prover os mecanismos para que os recursos direcionados à saúde sejam otimizados em benefício dos usuários do SUS. Estabelecer vencimentos dignos para médicos do setor público faz parte desse dever. E, na ponta do lápis, sai mais barato pagar um bom médico do que remediar.
Davi de Lacerda, 37, graduado em medicina pela USP e residência em dermatologia pelo Johns Hopkins Hospital (Baltimore, EUA), é médico em consultório privado e no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Milton Arruda Martins, 55, médico, pós-doutorado pela Universidade Harvard (EUA), é professor titular da Faculdade de Medicina da USP.
Marcos Boulos, 63, médico, é professor titular e diretor da Faculdade de Medicina da USP.