A história da propriedade da terra sintetiza uma parte importante da história do Brasil.
Com a Independência, em 1822, caducaram as ordenações portuguesas que organizavam o sistema jurídico colonial. Nossa primeira Assembleia Constituinte, reunida no ano seguinte, não legislou sobre a terra, que se tornou um bem livre, mas nem por isso acessível. Mantida a escravidão, só os senhores podiam exercer a prerrogativa da propriedade.
A aproximação da Abolição colocou na ordem do dia um problema grave: quando os escravos fossem libertados, como se conseguiria mantê-los trabalhando nas grandes fazendas, sedes do poder oligárquico, se o país era despovoado e a terra era livre? Surgiu daí a nossa primeira Lei de Terras, em 1850. O acesso legal à propriedade fundiária passou a depender de doações da Coroa, seguidas de operações de compra e venda.
Os fazendeiros da época ganharam o direito de legalizar propriedades por meio de simples declaração, registrando nas paróquias locais os limites das terras que consideravam suas. Formaram-se assim gigantescos latifúndios, marca registrada da nossa história.
Quando a terra era livre, os trabalhadores eram escravosd+ quando se aproximava o dia em que eles seriam livres, ela foi aprisionada. Assim, na segunda metade do século 19, permeando Império e República, o Brasil resolveu a questão da escravidão e ao mesmo tempo criou a questão agrária, a qual, jamais resolvida, desdobrou-se na questão urbana atual.
Primeiro nas senzalas, depois nos latifúndios e agora nas favelas ou periferias, sempre o mesmo pano de fundo: multidões sem direitos.
Dada a enormidade do país, grande parte do território permaneceu na condição de terra pública até recentemente. Muitos pensadores brasileiros do século 20 imaginaram que o grau de concentração da propriedade rural diminuiria à medida que posseiros se espalhassem pelas áreas de fronteira agrícola que permaneciam em gradativa expansão.
Não foi o que ocorreu. Com a cumplicidade de sucessivos governos federais e estaduais, por meio da grilagem e da violência, por doações ou por compra a preço simbólico, implantou-se nessas áreas novas -especialmente o Centro-Oeste, a Amazônia meridional e o cerrado setentrional- uma estrutura agrária ainda mais concentrada do que aquela que predomina nas áreas de ocupação secular, com óbvias repercussões sobre o tipo de agricultura que praticamos.
A história se repete na Amazônia, a última fronteira. Se a medida provisória 458 for sancionada pelo presidente da República, na forma como saiu do Congresso Nacional, estaremos diante de uma volta ao passado.
Uma área maior do que o Estado da Bahia será doada a particulares sem cuidados que garantam condições mínimas de justiça, progresso e sustentabilidade. Grandes e médios proprietários ficarão com mais de 70% das terras que hoje são públicas. Um grileiro ou uma empresa que tenham 50 prepostos poderão legalizar, praticamente de graça, latifúndios de 75 mil hectares, mesmo que já possuam outras propriedades rurais. Com cem prepostos, reais ou fictícios, a área dobrará. Por persuasão ou por coação dos pequenos, em uma região em que o Estado é ausente e falha a cobertura da lei, estará aberto o caminho para um aumento desenfreado da concentração fundiária.
A Amazônia é uma região frágil, onde se chocam interesses nacionais e internacionais, sem que Estado e sociedade tenham sido capazes de definir e implementar um projeto coerente de desenvolvimento. É um dos grandes desafios para o nosso futuro, talvez o maior de todos.
Repetir o que foi feito em 1850 não é a melhor decisão.
CESAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.