O Processo de Bolonha, que pretende uma inédita unificação de carreiras universitárias, enfrenta a desconfiança do movimento estudantil europeu
Classificar como um novo “maio de 68” seria exagero, mas há tempos não se vê tanta agitação dentro do movimento estudantil europeu como nos últimos meses. Se há 40 anos os estudantes franceses foram às ruas pedindo reformas no ensino, paradoxalmente, os alunos protestam hoje contra as mudanças.
Desta vez, o epicentro da disputa não é a França, mas a Espanha, país onde existe a maior resistência à implementação do Tratado de Bolonha, uma carta de princípios firmada há dez anos visando a instituição de critérios unificados para o ensino superior na Europa. Profundo e abrangente, o Processo ou Plano de Bolonha, como é mais conhecido, promete criar um marco regulatório que englobará 48 países, indo desde Portugal até remotas repúblicas do Leste Europeu, como a Armênia e o Azerbaijão, que formam o Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES).
Desde outubro do ano passado, as manifestações contra as reformas no ensino têm se intensificado em diversos países. Na Espanha, os estudantes ocuparam várias universidades e já fizeram três paralisações gerais, a mais recente em março, quando ocorreram passeatas em 40 cidades espanholas. Em dezembro, houve uma explosão de violência na Grécia, depois da morte de um estudante de 15 anos, baleado pela polícia durante uma marcha de protesto. Na Grécia, o conflito é ainda maior, pois a constituição grega proíbe explicitamente a existência de universidades privadas.
Na Itália e na França, o movimento anti-Bolonha também é bastante articulado e conta com lideranças em atuação em diversos países. No auge das manifestações do ano passado, era comum ver militantes italianos colaborando com a ocupação do campus da Universidade Complutense, em Madri.
O movimento estudantil acusa o Plano de Bolonha de promover uma privatização velada do ensino público, ao reduzir a relevância da graduação básica e passar aos alunos o ônus de uma formação mais específica. A maior crítica se dá na estruturação de carreiras. Seguindo a escola anglo-saxã e germânica, a graduação será composta por cursos de formação mais geral, compreendendo uma carga de estudos de até sete horas diárias. A qualificação específica viria depois, ou em programas de doutorado, com caráter mais acadêmico, ou por meio de másteres e pós-graduações de um a dois ciclos, dirigidos ao mercado laboral. “Na prática, Bolonha pretende nivelar por baixo o sistema de ensino europeu”, afirma Tohil Delgado, secretário-geral do Sindicato dos Estudantes de Madri. “A carreira universitária básica só dará acesso a empregos precários para os filhos de famílias trabalhadoras, beneficiando aqueles que têm mais recursos para investir num curso de especialização”, acrescenta.
A Espanha é mais resistente a Bolonha, porque os másteres dedicados ao mercado de trabalho não estão ainda consolidados no país, embora a oferta venha crescendo rapidamente em âmbito público e privado. Em tese, o modelo espanhol tem por objetivo conciliar o conhecimento teórico à aplicação prática no primeiro ciclo de graduação, fazendo com que os cursos complementares funcionem como uma opção para quem almeja se destacar no mercado. Concretamente, prevalece a linha latina, mais acadêmica, de extensão por doutorados.
Em linhas gerais, o que Bolonha pretende é permitir a homologação imediata de diplomas em todo o continente, facilitando que estudantes possam se deslocar a qualquer país-membro para concluir ou estender sua formação acadêmica. O processo também tem um claro objetivo de aproximar os jovens do mercado de trabalho, com a ampliação dos cursos de especialização profissional existentes.
“A Europa não se constrói só com a moeda única, mas também com universidades. Dentro de um continente com sistemas de educação tão distintos, me parece estupendo estimular a mobilidade dos títulos e também dos profissionais formados”, defende Carlos Berzosa, reitor da Universidade Complutense de Madri, a mais importante instituição de ensino superior público da Espanha, ao lado da Universidade de Barcelona.
O Processo de Bolonha tem como eixo central o padrão de crédito universitário ETCS (do inglês European Transfer Credit System). Com cada crédito variando entre 25 e 30 horas/aula, o ETCS permite a homologação imediata dos diplomas entre os países signatários, dando mais mobilidade a estudantes e profissionais de nível superior em toda a zona. A graduação tem de cumprir um mínimo de 60 créditos, nos quais pesa também o tempo de estudos extra-aula. Na Espanha, há dois títulos universitários básicos, a “diplomatura”, que compreende cursos de três anos, e a “licenciatura”, que chega a cinco anos. Para entrar em acordo com Bolonha, todos os cursos passarão a ter quatro ciclos.
“A complexidade para pôr em prática esse protocolo se dá pelas grandes diferenças entre os modelos acadêmicos latinos, anglo-saxões e nórdicos, mas, ao final, o processo de integração será extremamente positivo”, compara Pilar Alcover, diretora de desenvolvimento internacional da Universidade Antonio de Nebrija, uma das mais conceituadas instituições privadas espanholas.
Parte do professorado também se opõe ao Plano de Bolonha, acusando o Estado espanhol de promover a privatização velada do sistema de ensino. Para Berzosa, a insatisfação tem outras origens. “O processo de implementação levou muito tempo, houve indefinição das diferentes gestões nos Ministérios da Educação, e caímos em um vício que é muito corrente neste país, a burocracia, em vez de dar mais autonomia às universidades para adaptar os títulos para Bolonha. Por esse motivo, uma parte do professorado está desanimada e outra é contrária”, analisa. Outra queixa dos professores é que o peso das atividades fora da sala de aula aumentará. Como a quantidade de alunos por classe chega a 40 ou 50, o volume de trabalho crescerá sem que haja contratação de novos docentes.
Na Espanha, ser contra ou a favor do tratado expõe o conflito entre dois modelos distintos de ensino superior, no momento em que o país discute um de seus maiores problemas, agravado pela crise econômica: a falta de competitividade. Os partidários de Bolonha acreditam que o plano irá preparar melhor as novas gerações do mercado de trabalho e aproximará as empresas da educação formal, ampliando o conhecimento científico e a qualificação profissional. A unificação de expedientes acadêmicos também dará novo fôlego ao Erasmus, um programa de intercâmbio entre os países que compõem o EEEs, permitindo que os alunos façam parte da graduação no exterior. Fundado em 1987, o projeto visa derrubar uma das maiores barreiras de integração europeias: as diferenças culturais e de idioma. “O intercâmbio será muito facilitado depois de Bolonha estar plenamente em funcionamento, pois os alunos não terão mais de rever todo o seu plano de estudos, crédito por crédito, que era a loucura em que vivíamos até agora”, acrescenta Pilar.
Quem se opõe a Bolonha acredita, por outro lado, que a universidade ficará mais distante de sua verdadeira vocação social. “Nós queremos, sim, conversar com a Europa e seguir o exemplo de países avançados, que financiam até 40% dos alunos com bolsas, não os 15% que oferece o Estado espanhol hoje. Queremos também que se adotem as mesmas políticas de países como a Finlândia, que dedica 2% de seu Produto Interno Bruto à educação universitária, e não 1,1% como aqui”, diz Delgado.
Na prática, o modelo acadêmico apresenta deficiências importantes. O país ostenta um baixo índice de geração de patentes e está muito atrasado em relação a outras potências europeias em áreas como Tecnologia da Informação (TI), indústria química ou engenharia aeroespacial. Embora esteja entre as quatro maiores economias da Eurozona, a Espanha ocupa apenas o 17º posto no ranking continental de inovação, atrás de países como Chipre, Eslovênia e Estônia. Os líderes são a Suécia, a Finlândia e a Alemanha.
O excesso de burocracia das instituições também acaba “expulsando” os grandes cérebros do país, muitos deles há anos trabalhando em países como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha.
Na mesma medida, são poucos os professores estrangeiros que se interessam em lecionar na Espanha, que oferece salários baixos e estruturas inferiores em relação a outros países ricos. Enquanto a Holanda, com a metade da população espanhola (45 milhões de habitantes), possui 17 vencedores do prêmio Nobel, o país ibérico ostenta somente dois.
“O Ministério da Educação tem feito uma política de recuperação dos pesquisadores que estão no estrangeiro nos últimos anos, mas isso não é suficiente, sobretudo em relação aos mais consagrados, que não veem a Espanha em igualdade de condições com os Estados Unidos por exemplo. Tudo isso é fruto um pouco da falta de sensibilidade dos governos e das dificuldades burocráticas. Nós somos assim”, lamenta Berzosa.
Aaprovação do Processo de Bolonha pode não só criar novas metas para os países mais atrasados em inovação, como estimular o avanço do ensino privado e as contribuições de empresas, que ainda são incipientes. “A Espanha possui um mercado ainda muito jovem de ensino privado, até 1995 nós não podíamos existir oficialmente. Outro agravante é que não existe uma cultura de apoio financeiro de pessoas bem sucedidas ou empresas às instituições, como nos Estados Unidos. Felizmente, isso começa a mudar”, explica Pilar, destacando que a Universidade de Nebrija já tem duas cátedras ligadas a economia e administração de empresas patrocinadas pelo banco Santander. Para suprir deficiências acadêmicas, algumas Comunidades Autônomas também recorrem ao modelo de fundações para financiar a atração de talentos estrangeiros.
Na visão do movimento estudantil, a cumplicidade entre escola e empresa é danosa ao ensino público. “O ensino público ficará absolutamente degradado, já que o Estado renunciará ao papel de financiador, buscando recursos na iniciativa privada. Na prática, multinacionais poderão decidir para onde os recursos da educação deverão ir”, acusa Delgado. O reitor da Universidade de Madri acha que Bolonha não tem nenhuma relação com isso. “Dependendo de quem estiver no poder, haverá mais estímulo à universidade privada ou pública”, acredita.
Tudo indica que o Plano de Bolonha entrará em vigor na maioria dos Estados signatários. No caso da Complutense, a maior universidade espanhola, 40 cursos, principalmente os mais tradicionais, estarão adaptados até 2010, enquanto outros 30 se adequarão no período seguinte. O resto das universidades do país segue ritmo semelhante. O movimento estudantil, contudo, promete não ceder tão cedo.
Entenda o Tratado de Bolonha
– Firmado em 1999 na cidade italiana de mesmo nome, o tratado estabeleceu as diretrizes de integração dos sistemas de ensino do Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES), que atualmente conta com a adesão de 48 países.
– O Processo ou Plano de Bolonha, como é mais conhecido, está previsto para entrar em vigor em 2010 e se baseia num modelo único de créditos, o ETCS (do inglês European Transfer Credit System). Cada crédito corresponde a uma quantidade entre 25 e 30 horas de aula, sendo necessários 60 créditos para se concluir a graduação. O objetivo é assegurar a homologação automática de diplomas em qualquer país signatário.
– A estrutura de ensino será composta por um curso de graduação com três ou quatro anos de duração e conteúdo mais generalista, dependendo do país. Em seguida, o estudante optaria por programas de pós-graduação ou másteres de um a dois anos, dirigidos ao mercado de trabalhod+ ou à extensão acadêmica tradicional, por meio de doutorados.
– Embora obrigue as universidades a seguir diretrizes comuns, cada instituição pode adaptar, mediante o consentimento de seus respectivos Ministérios da Educação, o conteúdo acadêmico às particularidades do país ou região.
– Os defensores do programa dizem que, quando entrar em funcionamento, o sistema facilitará a mobilidade de estudantes e trabalhadores na Europa. Outro argumento a favor é que o Tratado também poderá dar mais impulso ao Erasmus, programa de intercâmbio que possibilita aos alunos cursar parte da graduação em outro país.
– O acordo é bem recebido pelas universidades privadas, cujos cursos de especialização ganham mais competitividade. Outra ideia favorável é que o programa também facilita os convênios escola-empresa e a preparação dos estudantes para o mercado de trabalho.
– As críticas vêm do movimento estudantil e de parte do professorado, que acusam o Processo de Bolonha de privatizar a educação pública. Esse argumento está baseado principalmente no fato de que os preços dos másteres seriam aumentados, sob o argumento de que os governos ajudariam a financiar a graduação básica. Os reitores contra-argumentam que o Estado financiará mais másteres de valor reduzido.
– Os segmentos contrários ao Tratado alegam que o primeiro diploma universitário seria esvaziado, dificultando o acesso dos alunos de menor poder aquisitivo ao mercado de trabalho.Os críticos ao Processo veem ainda como perigosa a presença das empresas nas escolas, sob o argumento de que o Estado perderia sua independência na orientação acadêmica.