Nos laboratórios do curso de engenharia química da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), em São Paulo, o doutorando Adilson José da Silva, 27 anos, trabalha no aprimoramento da primeira vacina nacional contra a erisipela suína, vacina esta que ele próprio havia criado durante o seu mestrado. Agora, sua pesquisa evoluiu e utiliza recursos de manipulação genética. Poderia ser uma história prosaica de sucesso acadêmico de um jovem de classe média alta, perfil mais freqüente do estudante das universidades públicas brasileiras. Mas não é.
Adilson é um egresso da escola pública. Nunca teve recursos para freqüentar a rede particular e escolheu a Ufscar pelos programas de auxílio a alunos de baixa renda. Para ingressar, teve a sorte de passar por uma boa escola pública no ensino fundamental – a Escola Estadual Maria Justina de Camargo, em São Bernardo do Campo – e por uma escola técnica, a Lauro Gomes, na mesma cidade. Além disso, investiu muito esforço pessoal, estudando sozinho por um ano, após o ensino médio. Ainda assim, Adilson acha que teve mais sorte que seus amigos de infância, que freqüentaram escolas de menor qualidade e não tiveram o mesmo sucesso. “Tive ótimos professores e uma boa formação”, assegura.
A história de Adilson ilustra alguns dos grandes desafios da educação brasileira. É uma prova irrefutável do imenso potencial humano desperdiçado nas escolas municipais e estaduais que atendem cerca de 87% da população de 7 a 14 anos no Brasil. Não se fala aqui de gênios ou superdotados – que também existem, mas em proporção ínfima. Trata-se, simplesmente, de milhões de crianças e jovens que, apenas com uma educação de qualidade, poderiam seguir carreiras de sucesso nas empresas, universidades ou no terceiro setor e, no entanto, se perdem nos remendos de um sistema de baixa qualidade e repleto de gargalos.
A questão proposta pela trajetória do pesquisador é que, enquanto ainda se discutem formas de evitar que as crianças passem pela escola sem aprender a ler, escrever e contar minimamente, faz muita falta, nas discussões acadêmicas e, principalmente, nas políticas públicas brasileiras, uma definição mais clara dos parâmetros de qualidade que se buscam para a Educação Básica.
Para o sociólogo Simon Schwartzman, a Educação Básica tem de ser capaz de ofertar condições semelhantes para todos. “Mas as pessoas não têm uma idéia clara sobre isso, tanto que boa parte da sociedade considera que a escola pública é boa. Nosso problema continua sendo a falta da importância do tema”, diz. “A situação é tão precária que nem estamos exigindo ainda que se defina o que entendemos por qualidade de ensino. A atual definição é ter boas notas em português e matemática. Mas quem afirmaria que esses são os únicos objetivos da educação da juventude? Estamos anos-luz longe deste debate”, acrescenta o pesquisador Luiz Carlos de Freitas, da Universidade Estadual de Campinas.
Um dos paradigmas mais aceitos acerca da qualidade acadêmica de uma escola é sua capacidade de formar jovens aptos a freqüentar um bom curso de nível superior. Sem dúvida, o tema é complexo, e está permeado por questões como a baixa expansão das vagas nas universidades públicas e mesmo na diferenciação dos objetivos dos alunos do ensino médio, que podem simplesmente optar por não cursar o ensino superior, preferindo um diploma técnico. Mas não deixa de ser significativo saber que nem 1% dos formados no ensino médio público paulista chega à principal universidade brasileira, a USP, onde cerca de 75% dos alunos vieram da rede particular de ensino.
Ter condições de cursar um bom ensino superior é, como se sabe, um passo decisivo na sociedade contemporânea, onde a principal moeda é o conhecimento. É justamente para levar os alunos a ocupar as melhores posições nas universidades brasileiras que um número seleto de escolas vêm investindo, com ênfase cada vez maior, em diversas partes do país, como uma verdadeira corrida pelos melhores espaços em uma sociedade cada vez mais competitiva.
Em Pernambuco, o Colégio Motivo coloca anualmente seus alunos em um dos mais concorridos exames do país, o do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), bem como nas duas principais instituições públicas estaduais e federais do Recife. Para os que querem entrar no ITA, as aulas do ensino médio acontecem das 13h20 às 20h, e também aos sábadosd+ os simulados muitas vezes são aplicados em domingos e feriados. Nos dias de vestibular, a escola monta barracas com psicólogos, chocolate, água, como se estivessem em uma maratona.
Em São Paulo, o Colégio Bandeirantes coleciona indicadores invejáveis, como o posto de escola que mais aprova na USP. “Dos 16 médicos escolhidos pelos próprios profissionais da área, segundo uma pesquisa do DataFolha, 25% foram formados pelo Colégio”, orgulha-se o diretor Mauro Aguiar. Um dos segredos de sucesso da escola, para ele, é o foco em objetivos claros: preparar alunos de forma vitoriosa. “Nunca tivemos medo da palavra conteúdo”, diz.
Falsa polarização
Não se trata de afirmar que as escolas públicas possam ou devam chegar ao nível de especialização de colégios como o Bandeirantes, que se dá ao luxo de enviar sua equipe de professores de ciências a parques temáticos europeus apenas para trazer inovações para a feira científica interna e para enriquecer as aulas nessa área. Mas a discussão sobre que grau de eficiência acadêmica as escolas devem buscar, seja no campo da rede pública, seja na esfera da privada, sem dúvida é oportuna em tempos em que a palavra qualidade é tão utilizada.
O primeiro passo, na visão de muitos especialistas, é fugir da eterna polarização rede pública x rede privada, em que o público surge como sinônimo de ruim e o privado como garantia de bom. A coisa não anda bem para ninguém. Um estudo realizado a pedido do Banco Interamericano de Desenvolvimento pela Fundação Getulio Vargas e pelo Instituto Futuro Brasil, detalhando os dados obtidos nas provas do Pisa, mostrou que apenas 0,6% dos alunos brasileiros de 15 anos que participaram do exame de matemática, em 2003, atingiram a faixa mais elevada de aproveitamento. Apenas 30% dos alunos da rede privada e 10% dos da rede pública atingiram a média considerada aceitável no exame.
O estudo mostrou também que não há apenas grandes diferenças entre as escolas quando comparadas entre si, mas que no Brasil chamam a atenção as disparidades existentes dentro de cada escola. “Quando se comparam as diferenças de notas, percebe-se que 35% do total relaciona-se às médias das escolas, mas 65% referem-se às diferenças de desempenho dos alunos de uma mesma escola, mesmo quando se trata de instituições que atendem a população de classe média alta”, diz um dos autores do estudo, o economista André Portella, da Fundação Getulio Vargas. “Isso não acontece na mesma intensidade em outros países, como Argentina, México e Peru”, diz.
Esse dado dá a dimensão da complexidade do problema no Brasil, que já parte da grande disparidade de aproveitamento acadêmico dos alunos em uma mesma instituição. Não se trata apenas de comparar escolas. Se os alunos de uma classe freqüentemente alcançam níveis de aprendizagem muito diferentes dos obtidos pela turma da classe ao lado, parece claro que há algo de muito errado no estabelecimento dos padrões de aproveitamento desejados, na gestão, na formação do professor, nas estratégias de ensino e no apoio ao seu trabalho.
O que influi na aprendizagem
Mas quais são as variáveis que levam à qualidade acadêmica? Uma das dificuldades dos estudiosos é isolar os fatores. Afinal, como diferenciar itens como o ambiente cultural familiar, a influência de professores e mesmo as aptidões de um aluno ou o grau de interesse de uma turma?
Para o economista Cláudio de Moura Castro, um dos ingredientes que torna uma escola melhor do que outras é a existência de metas estáveis e a mobilização para atingi-las, sob a batuta de um bom gestor. “Qualidade é assunto de persistência e consistência”, diz. Segundo Castro, uma pesquisa realizada com alunos das dez escolas brasileiras mais bem posicionadas no Enem tem, entre os fatores comuns, a seleção dos professores, um ambiente que favorece o trabalho escolar e alunos pressionados a estudar por muitas horas a cada dia, com ênfase nas leituras e na formação geral.
Nesse quadro se insere, por exemplo, o Colégio Móbile, na zona sul de São Paulo, que sempre aparece na lista dos melhores do Enem. Para a diretora Maria Helena Bresser, o que faz sua escola alcançar excelentes resultados acadêmicos é a soma de um projeto pedagógico claro para toda a comunidade e um corpo de professores altamente selecionado, em um processo que envolve provas e entrevistas. “A qualidade dos professores é decisiva”, diz Maria Helena. “Isso quer dizer que eles precisam dominar profundamente a matéria de sua disciplina e saber como os conteúdos se relacionam em cadeias, conhecer como pensa o aluno da faixa etária para a qual leciona, sistematizar bem as informações e estar profundamente identificado com a proposta pedagógica”, completa.
Mas, para outro grupo representativo de analistas, a complexidade da educação escapa às análises de características isoladas. “Fala-se muito no efeito do papel do diretor na escolad+ da formação de professoresd+ no número de alunos em salad+ do salário. Mas a escola é um organismo complexo e nenhum desses fatores atua isoladamente. A eficácia da escola resulta de uma série de elementos, provavelmente todos esses, associados às condições concretas de seu funcionamento que podem valorizar uns mais que outros”, analisa o pesquisador Freitas.
Essa lógica possibilita esperar das escolas resultados acadêmicos adequados, dentro de uma grande multiplicidade de variáveis locais. É o que vem acontecendo, por exemplo, no Centro de Ensino Fundamental Ginásio Pernambucano, do Recife, escola pública piloto do projeto Procentro, que hoje já atinge 55 escolas e estende-se para outros Estados do Nordeste. Primeiro lugar no Enem entre as escolas públicas da capital pernambucana, até 2004 o Centro não passava de uma escola antiga e depredada. Hoje, caracteriza-se, segundo a diretora Thereza Barreto, por uma proposta que envolve a autonomia de gestão, premiação dos professores por resultados acadêmicos alcançados e avaliação da qualidade. Nas escolas do Procentro, a possibilidade de demissão dos professores é contrabalançada pela definição de melhores salários e bônus.
Um dos fatores que certamente tem impacto fica, desde logo, fora das políticas públicas: a participação dos pais. Não apenas a formação escolar dos adultos influi diretamente no futuro da vida escolar dos filhos, mas a própria presença no dia-a-dia da criança e do jovem impacta na aprendizagem. Ficaram célebres estudos feitos nos Estados Unidos, durante a década de 90, sobre o melhor desempenho das comunidades orientais, mesmo com as dificuldades da língua. Nesses estudos, descobriu-se, por exemplo, que as mães chegavam a comprar dois livros didáticos iguais, para estudar com os filhos.
“Ocorre que é muito difícil implantar políticas de intervenção junto às famílias, a não ser para estimular o não-abandono”, explica o sociólogo Márcio da Costa, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Assim, todas as políticas de aprimoramento de ensino acabam sendo focadas no professor, e é dentro de sua realidade que a questão deve ser enfrentada, na visão do especialista em avaliação José Francisco Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para ele, a questão da qualidade pressupõe o apoio concreto ao trabalho do professor. “É um erro pensar em condições finlandesas que certamente estão fora do horizonte brasileirod+ já temos um milhão de professores que estão aí e não serão substituídos. Por isso, o professor brasileiro precisa ter um protagonismo viável.” Para Soares, um especialista em avaliação, o desafio da qualidade passa para a resposta imediata a questões como, por exemplo, o ensino dos alunos das periferias e das áreas de vulnerabilidade social. “Aí, vemos que nossas pesquisas estão muito defasadas”, diz. “É como se diz ironicamente nos Estados Unidos: todas as inteligências estão em Wall Street”.
Atração perversa
Para complicar de vez o cenário das discussões sobre a qualidade acadêmica, outro fator cada vez mais lembrado é o que Márcio da Costa chama de “efeito tostines” (está sempre fresquinho porque vende muito ou vende muito porque está sempre fresquinho?). No paralelo com a educação, essa brincadeira traduz algo sério: a tendência de as escolas melhores atraírem os melhores alunos, gerando um círculo virtuoso, mas intrinsecamente excludente.
Isso significa que o repertório dos alunos que ingressam – ou que sobrevivem – nas escolas também é um componente da qualidade que não pode ser desprezado. São cada vez mais freqüentes estudos que buscam identificar o chamado “valor agregado” da escola, ou seja, medir a diferença que a instituição de fato fez na trajetória escolar do aluno. São estudos de alta complexidade estatística, e por isso mesmo ainda em consolidação, mas que representam as últimas tendências na avaliação.
Um estudo desse gênero foi realizado pelos pesquisadores José Francisco Soares, Cláudio de Moura Castro e Leandro Molhano Ribeiro, em 2007, e mostrou, na pesquisa O Provão: os cursos A são os que mais oferecem aos alunos?, que cerca de 80% dos resultados obtidos pelos alunos de ensino superior no Provão nas áreas de Administração, Direito, Engenharia Civil resultavam de conhecimentos adquiridos antes do início do curso. “Se é assim, grande parte dos resultados de uma escola depende da qualidade dos alunos que logra atrair”, considera Castro.
O pesquisador Freitas avançou também nessa área, estudando o desempenho dos alunos na região de Campinas. Vendo apenas o final da história, nada podem dizer de como ela começou. Acontece que o fim tem que ver com o começo. Seu estudo mediu a aprendizagem das crianças quando chegaram à escola e ao final do primeiro ano. Em uma escala de 0 a 250 pontos, as escolas municipais receberam alunos com 88 pontos, as estaduais com 100 pontos e as particulares com 125 pontos, em média. Quando os pesquisadores voltaram a avaliar os alunos, dois anos depois, a média das escolas municipais e das estaduais avançou 36 pontos e a das particulares 32. “Quem ensinou mais? Provavelmente as diferenças não sejam relevantes e todas avançaram, mas, considerando que as públicas receberam crianças menos preparadas, então é claro que o esforço delas foi maior”, analisa o pesquisador.
O mesmo efeito já vem sendo identificado empiricamente por muitos estudiosos, como Márcio da Costa, que estuda o tema do prestígio de escolas municipais do Rio de Janeiro junto à comunidade, no estudo denominado As escolhidas. “É um risco que a escola que pratica a segregação seja vista como uma boa escola”, diz o pesquisador. Por isso, ele acha que o Ideb trouxe um grande avanço, ao incluir na medida o fluxo escolar, já que a retenção dos alunos fracos também distorce as notas médias e pode ser um instrumento de produção de melhores resultados acadêmicos.
Márcio identificou em sua pesquisa escolas com altos resultados acadêmicos cujo “segredo do sucesso” é uma seleção social velada. “Encontrei escolas com alunos predominantemente brancos e de classe média, ao lado de outras, a 500 metros, que atendiam crianças negras, de favela”, diz. Essa competição que acontece nas sombras faz, segundo diz, que uma escola dificulte as condições de ensino-aprendizagem das outras.
Em seu estudo, concluiu também que o prestígio construído pelas escolas junto às comunidades pouco ou nada tem que ver com qualidade, principalmente porque os pais não têm sinalizações claras do aprendizado dos filhos. Não é à toa que a divulgação das notas médias das escolas no Enem se tornou um sucesso entre as famílias de classe média-alta, que saem com os resultados sob o braço para escolher as escolas para os filhos – para desespero dos especialistas em avaliação, que apontam a impossibilidade técnica de utilizar o exame do ensino médio como medida de qualidade da escola. “Isso é um erro, pois o Enem não pode ser comparado ano a ano, é focado no aluno e não foi criado para medir a eficiência das escolas”, afirma a consultora Maria Inês Fini, uma das responsáveis pela implementação do exame, há 10 anos. Mas, para uma sociedade totalmente carente de informações sobre um dos serviços de maior relevância para as possibilidades de ascensão social, o exame, por via tortas, cumpre o papel de indicador disponível, quando não o é.
Os pais que escolheram escolas públicas sequer se valem desse instrumento, calcado apenas no ensino médio. Para uma parcela expressiva da população da rede pública, qualidade significa apenas um ambiente disciplinado, baixo absenteísmo e limpeza, diz Costa. Por isso, em sua visão, será também necessário oferecer às famílias critérios mais claros e transparentes para que a pressão social favoreça a reorganização da escola e das políticas públicas. Quem sabe, então, o Brasil consiga estabelecer um padrão mínimo e mais democrático de qualidade para suas escolas, abrindo possibilidades reais para que a escola cumpra o seu papel republicano de aproximar as oportunidades para crianças provenientes de diferentes estratos sociais.