Quando assinou a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel provavelmente não imaginava que, cerca de 121 anos depois, milhares de pessoas continuariam sendo escravizadas no Brasil. Nos dois primeiros meses deste ano, 173 trabalhadores foram libertados por fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Eram explorados em 21 fazendas onde viviam em condições degradantes, sem carteira assinada, impedidos de deixar o serviço e recebendo apenas comida como pagamento. No ano passado, mais de 5 mil operários foram localizados nessas condições, consideradas criminosas há mais de 60 anos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma frente parlamentar conjunta formada na semana passada no Congresso tentará aprovar até maio a emenda que prevê a expropriação de fazendas onde forem constatadas situações desse tipo.
Nos últimos oito anos, pouco mais de 31 mil pessoas foram libertadas pelo grupo móvel do MTE, que constatou a ilegalidade em mais de 1.700 fazendas. Quanto mais o governo apertou a fiscalização, mais descobriu escravos (veja quadro). Nesse período, os fiscais lavraram multas de quase R$ 48 milhões, questionadas na Justiça pelos fazendeiros. O Brasil reconheceu, há cinco anos, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), que existem pelo menos 25 mil pessoas reduzidas anualmente à condição de escravos no país. Mas as entidades públicas e privadas admitem que é difícil quantificar o número preciso dessas vítimas.
A estimativa foi feita pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Igreja Católica, e acatada como a projeção mais precisa, uma vez que a entidade recebe as denúncias e acompanha as libertações nos locais mais distantes. A maioria dos casos ocorre nas áreas de fronteira agrícola, onde os trabalhadores são recrutados por intermediários chamados de “gatos”. Normalmente, as pessoas exploradas são chamadas para trabalhar informalmente na abertura de novas áreas para a agricultura. Segundo dados oficiais, a escravidão moderna concentra-se em fazendas de sete estados: Pará, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Bahia, Piauí e Minas Gerais.
Somente no ano passado, foram libertados mais de 5 mil trabalhadores em todo o país. Desses, quase 600 eram escravizados em fazendas do Pará. Dados da fiscalização mostram que trabalhadores rurais, pobres e desempregados, ou favelados das periferias das capitais do Nordeste e do Norte, são as vítimas preferenciais dos “gatos”. O recrutamento é feito pelos intermediários que prometem ocupação imediata, mas terminam cobrando o transporte, a comida, as roupas e até as ferramentas usadas por quem foi aliciado. Além disso, como os locais de trabalho são geralmente muito distantes de cidades e longe do acesso ao sistema público de transporte, o escravizado termina impedido de deixar o local para onde foi levado.
Hoje, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e a ONG Repórter Brasil realizam um seminário em São Paulo para avaliar os resultados de quatro anos da assinatura do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Nesse período, mais de 180 empresários foram incluídos na “lista suja” do MTE por terem escravizado funcionários. Os empresários e organizadores do pacto pretendem aprovar no seminário um código de conduta para que companhias brasileiras não comprem produtos de fornecedores acusados da prática ilegal.
Impasse – O crime de trabalho escravo é caracterizado por três situações: jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e restrição à liberdade em razão de dívida contraída com o empregador ou seu superior. “Socialmente, esse é o problema mais vergonhoso do país, o que mais viola a integridade das pessoas”, lamenta Cláudio Montesso, presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra). Até os fiscais do trabalho correm risco. Em janeiro de 2004 três deles foram assassinados por fazendeiros em Unaí,(MG). Em uma situação inusitada, há três semanas a Justiça Federal do Pará condenou 27 pessoas pelo crime.
Apesar disso, há quase 14 anos senadores e deputados não conseguem resolver o impasse sobre a inclusão do termo “expropriação” da propriedade como punição constitucional da prática de escravidão. É a mesma sanção prevista para propriedades onde são cultivadas plantas psicotrópicas, como a maconha.
Para pressionar o Congresso a votar a emenda, o movimento pela erradicação do trabalho escravo já conta com mais de 200 mil assinaturas exigindo a votação imediata do texto. Criada por ONGs que lutam para acabar com o crime, a mobilização conta com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do escritório da OIT no Brasil.
Na quinta-feira passada, o presidente da Câmara, deputado Michael Temer (PMDB-SP), prometeu incluir a emenda na lista de prioridades para votação. O texto foi aprovado pelo Senado em 2004 e, no mesmo ano, em primeiro turno pelos deputados. Desde lá, no entanto, a Câmara não consegue votar o segundo turno exigido pelas normas de funcionamento do Legislativo. O impasse foi provocado pela bancada ruralista, que não admite a expropriação das propriedades onde a escravidão for flagrada e impede a votação (leia abaixo).
O senador José Nery (PSol-PA ) é o principal negociador entre os parlamentares para tentar aprovar a emenda. Ele defende a classificação do crime como grave violação aos direitos humanos. “Já é passada a hora de termos coragem e o devido rigor para enfrentarmos esses casos como uma violação de direitos humanos, que é exatamente o que eles significam”, afirma.
Medo de fraudes – Submeter alguém às condições análogas à de escravo é crime previsto no artigo 149 do Código Penal desde o início do século passado e, há mais de 30 anos, a lei 5.889 estendeu para a área rural todos direitos da legislação trabalhista para a contratação de pessoas. Além disso, o Brasil é signatário de acordos e convenções internacionais que condenam a escravidão contemporânea.
Fundador da União Democrática Ruralista (UDR) nos anos 1990, o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) lidera a bancada na Câmara que não admite a inclusão do termo “expropriação de terra” no artigo 243 da Constituição. A emenda puniria fazendeiros que escravizam trabalhadores tirando deles suas terras. “Podemos até decretar prisão perpétua nesses casos, mas não podemos colocar em risco o direito de propriedade”, argumenta Caiado.
Esse é o foco do impasse na votação em segundo turno do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 438. O maior temor dos ruralistas é a falsificação de laudos da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego para forçar uma expropriação da fazenda. “Corremos o risco de que entidades pró-reforma agrária forjem denúncias somente para forçar a ação expropriatória do governo”, alerta Caiado. Ele salienta que falta objetividade na caracterização de condições degradantes dos trabalhadores, como no caso do plantio de maconha, por exemplo.
Médio pecuarista em Goiás, o deputado alerta para a ação de movimentos sociais que podem, segundo ele, forçar a qualificação de um fazendeiro somente com o intuito de desapropriar a fazenda. O parlamentar teme que grupos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) possam criar falsas denúncias acatadas pela fiscalização do governo. “Esse movimento agora é porque os índices de produtividade das fazendas já estão sendo alcançados, o que impedirá desapropriações por falta de produção” , argumenta.
Caiado lembra que no caso de regiões ou segmentos importantes como o sucroalcooleiro ou automobilístico, por exemplo, o governo e os movimentos pró-reforma agrária não consideram passíveis de expropriação. Além disso, ressalta o parlamentar, casos idênticos de maus-tratos no trabalho são detectados no setor urbano — comércio e indústria —, mas não há nenhuma emenda prevendo a expropriação de fábricas ou lojas. Outro alerta feito por Caiado é sobre as condições de vida dos assentamentos rurais que se transformaram, segundo ele, em fonte de disseminação de doenças graves.