Podemos aprender o sentido poético das coisas? Existiriam modos (que não se reduzissem a técnicas) de alguém preparar-se para viver um grande amor? Haverá um mestre a nos ensinar a arte de negar, ou ao menos relativizar, a morte? Ou a arte de descobrir a beleza em suas inusitadas manifestações?
Ler poesia é oportunidade de estudar o ser humano e refletir sobre suas questões mais urgentes. Questões tão urgentes que permanecem esquecidas, porque problemas outros (todos legítimos) vêm ocupar nossas mentes: a sobrevivência, os prazos da vida profissional, a busca da diversão e do prazer, os mil e um afazeres cotidianos, sejam eles básicos ou sofisticados, incômodos ou indiferentes.
Nós, ocupados e dispersos, preocupados e distraídos, necessitamos então que os poetas nos digam, aqui e agora, o que é urgente lembrar.
Penso em Vinicius de Moraes (1913-1980) como um desses professores da existência. Reconhecer a dimensão educadora dos seus versos (e de sua prosa) faz-nos aprofundar temas sobre os quais os filósofos, psicólogos e teólogos também escrevem, mas numa linguagem talvez menos acessível.
O poeta, que acredita como ninguém na palavra, sente e entende demais. Não se trata de sonhos ou delírios. Aí está o paradoxo: o poeta é mais realista do que nós. Há mesmo excesso de realidade em sua percepção de mundo. E tal excesso se reflete (outro paradoxo!) nas palavras mais simples – terra, hora, corpo, criatura, cócegas, jantar, peixe, água ou braço… Tudo é real e inspirador.
O nariz do poeta – O poeta inspira e expira, aspira e respira intensamente. O seu nariz capta no ar milhões de cheiros. Vinicius refere-se a essa capacidade poética na crônica “Sentido da primavera” (no livro Para uma menina com uma flor, 1966): “Os cheiros mais estranhos, os mais perversos, os mais doces, os do amor, os da solidão”. Esta “sinfonia de cheiros” atinge-nos, cativa-nos, convida os nossos sentidos para explorar o mundo:
O perfume do mar […]. Cheiro horrível era o de uma mosca que naquela ocasião voejava à minha volta […]. Tantos cheiros, tantos… O cheiro do teu riso, minha adorada, de tua boca quente e sem malícia. O cheiro de tua pureza, coisa inefável, parecendo sândalo ou alfazema.
E além dos cheiros, os subcheiros, como o da água com que se “batiza” o leite carioca em tempos de guerra (a crônica foi escrita em 1944), ou o do polvilho que está no talco, e que por sua vez está na pele da filhinha de Vinicius, pele de criança pequena com aquele “cheiro morno” de que fala no famoso “Poema enjoadinho”.
A realidade repleta de cheiros, odores, aromas, fedores é complexa e fascinante. Vinicius nos ensina a flagrar tudo o que, ao nosso redor, envia mensagens secretas, ondas perfumadas ou deterioradas. A sensibilidade do poeta nos provoca, provoca uma busca olfativa, busca apaixonada e radical. Queremos “saborear” com ele cheiros inebriantes e assustadores, sórdidos e mágicos, para nos sentir mais vivos, para sentir mais vivo o mundo em que vivemos…
Num poema de 1937, “Soneto da intimidade”, Vinicius mergulha na realidade animal, compartilha a natureza em seu estado bruto, e experimenta, outra vez pelo olfato, o quanto é bom estar vivo:
Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
O nariz capta no ar o “de repente”, a súbita presença de algo que, antes de ser vista, ouvida, degustada ou tocada, penetra em nós graças à antena nasal, vanguarda do nosso rosto. Para o poeta, tudo é “flor que se cheire”, mesmo que não cheire a flor. Tudo o que está presente neste instante merece ser conhecido.
Não mais que de repente – A sensibilidade do poeta registra o “de repente”, locução adverbial que, no contexto poético, no clima poético, perde o que tem de estereotipado, de automático, de impensado, e ganha (ou recupera!) novidade, eloqüência, sentido.
O “Soneto de separação”, escrito em 1938, quando o poeta, com 25 anos de idade, partia para a Inglaterra, a bordo do Highland Patriot, concentra nosso olhar no momento dramático em que o riso torna-se choro, a calma torna-se tempestade, a proximidade torna-se distância:
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
O “de repente” reaparece em outros poemas de Vinicius. Na hora da morte, os amantes sentirão “no rosto, de repente / O beijo leve de uma aragem fria” (“Soneto da hora final”). “De repente nunca mais esperaremos”, e na morte nasceremos (“Poema de Natal”). E o poeta que andava na escuridão… “de repente” é assaltado pelo amor, luz que veio habitá-lo, fogo que veio arder, sentimento que lhe dá medo e ao mesmo tempo veio encorajar (a canção “Escravo da alegria”, com Toquinho).
Reconhecer o “de repente” como um fato constitutivo da vida. Não somos onipotentes nem oniscientes. Nossos planos, por mais elaborados que tenham sido, podem ser modificados de repente. Nossa rotina pode ser alterada, de repente, não mais que de repente. Nossos desejos podem ser frustrados, de repente. Nossos esforços podem ser recompensados, de repente. O súbito nos espreita. O imprevisível nos rodeia. Teremos já aprendido que a vida, feita de hábitos, de costumes e repetições… a qualquer momento poderá se transformar de modo absolutamente inesperado?
No dia-a-dia escolar, o “de repente” é a descoberta entusiasmante, a combinação original de ideias emprestadas, a “sacada”. O aprendizado se faz de repente, quando menos se espera – heureca! De repente, da ignorância faz-se o conhecimento. De repente, do acostumamento faz-se a revelação, a admiração, a invenção.
O “repentismo” de Vinicius consiste em aprender no momento certo, criando o melhor momento, vivendo intensamente cada momento, sorvendo o gole do momento, mergulhando nele, e nele encontrando-se como ser efêmero e ansioso de coisas infinitas.
Na mesma ocasião em que, a bordo do Highland Patriot, escrevia o “Soneto de separação”, o jovem Vinicius flagrou, na paisagem marítima, o céu iluminado:
De repente o mar fosforesceu, o navio ficou silente
O firmamento lactesceu todo em poluções vibrantes de astros
E a Estrelinha Polar fez um pipi de prata no atlântico penico.
De repente, da noite fez-se a luz. E foi tão marcante para o poeta este momento, que a ele voltou no poema “A estrela polar”, publicado em O encontro do cotidiano (1946):
Eu vi a estrela polar
Chorando em cima do mar
Eu vi a estrela polar
Nas costas de Portugal!
O poeta fez da estrela – ponto de referência no céu – o símbolo da pureza, da inocência. Mais ainda: o poeta é a criança e a estrela, o desejo de carinho e o norte de nossas viagens. É ele quem faz pipi e chora no meio do mundo.