Fraudes e fraudes

Por que os cientistas cometem falsificações? Será que o número de fraudes em pesquisa está aumentando? São perguntas difíceis de responder.

Fabricar ou adulterar dados é a mais completa negação da ética científica (e jornalística, aliás). Veracidade, mais até do que fidedignidade e precisão, constitui a pedra angular da ciência. No dia em que não for mais possível confiar nas informações de artigos de pesquisa enviados para publicação num periódico científico, o alicerce da ciência estará arruinado.

Há muita gente convencida de que a quantidade de contrafações está, sim, em expansão. Gente como Horace Freeland Judson, que aprendi a admirar depois de ler seu monumental “The Eighth Day of Creation” (O Oitavo Dia da Criação, monumental história da biologia molecular, de 1978, até hoje sem edição em português).

Em outro livro, “The Great Betrayal” (A Grande Traição), de 2004, Judson traça um panorama sombrio da pesquisa contemporânea. Há incentivos demais para obter resultados e publicar, rápido. Jovens pesquisadores competitivos e supervisores lenientes, na sua avaliação, compõem a mistura corrosiva que solapa as fundações do edifício científico.

Essa parece ser a raiz mais comum da falsificação, fonte das dezenas de casos noticiados a cada ano. Poucos se tornam notícia de primeira página, como os falsos clones humanos do sul-coreano Woo-Suk Hwang. Não merecem manchetes doutorandos ou pós-doutorandos ávidos por resultados que os mantenham no páreo por bolsas e posições no laboratório.

Vários são estudantes estrangeiros, como Nima Afshar, da Universidade da Califórnia em São Francisco, que adulterou imagens de chips de DNA para fazer aparecerem os efeitos esperados com culturas de leveduras. Ou como Peili Gu, do Baylor College of Medicine, do Texas, outro caso de PhotoShop. Ou como Mai Nguyen, que falsificou dados de estudo sobre câncer -todos casos pescados na newsletter “The Scientist”.

Há ocorrências muito mais graves, porém, por afetar milhares de pessoas. Um caso recente é o de Scott Reuben, respeitado anestesiologista de Massachusetts, nos Estados Unidos, acusado de falsificações em 21 artigos, segundo noticiou “The Scientist” na quarta-feira. Esses trabalhos ajudaram a estabelecer o estado-da-arte em analgesia multimodal, uso combinado de medicamentos para tratar dor pós-operatória.

Parece inacreditável que alguém fabrique resultados cuja falsidade pode levar as pessoas a sentirem mais dor, mas acontece. Por essas e por outras é que não se deve confiar cegamente nos cientistas (nem nos jornalistas), ainda que a maioria seja veraz.

Nada se compara em matéria de dano social, contudo, a Andrew Wakefield. Ele é o autor de um artigo de 1998 no respeitado periódico médico “The Lancet” tido como o iniciador da popular hipótese de que o autismo é causado pela vacina MMR (contra sarampo, caxumba e rubéola).

A taxa de vacinação britânica caiu de 92% para menos de 80%, desde então. Os casos de sarampo passaram de 56 em 1998 para 1.348 em 2008, com duas mortes.

O jornal “The Sunday Times” noticiou em 8 de fevereiro que Wakefield teria alterado dados sobre pelo menos 11 das 12 crianças descritas no estudo.

Tudo, claro, para reforçar o suposto vínculo entre o autismo e a vacina -coisa de que muitos pais brasileiros desinformados e irresponsáveis se acham convencidos, a despeito do que lhes dizem os médicos.

MARCELO LEITE é autor da coletânea de colunas “Ciência – Use com Cuidado” (Editora da Unicamp, 2008) e do livro de ficção infanto-juvenil “Fogo Verde” (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (http://cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: [email protected]