Os “Sem-Terrinhas” – denominação dada às crianças que integram o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) – vieram para a Ilha do Desterro na Semana da Criança, nos dias 14, 15 e 16 de outubro. Eram mais de quatrocentos, com idade entre sete e catorze anos, além dos cerca de cem adultos que os acompanhavam. Eram originários de diferentes regiões do estado.
Mas, afinal, o que os Sem-Terrinhas vieram fazer em Florianópolis e na UFSC? Eles queriam poucas coisas, a principal era reivindicar seus direitos a ter boas escolas no campo. Sabe-se que a educação vai relativamente bem nesses lugares isolados, mas quando chega o tempo de os estudantes passarem para o Ensino Médio, as dificuldades aumentam, pois as vagas e os recursos ainda são escassos. Queriam, portanto, realizar uma manifestação na Secretaria Estadual de Educação e conversar com os responsáveis, exigindo-lhes providências. Outra manifestação agendada seria realizada na Assembléia Legislativa.
O segundo desejo dos Sem-Terrinhas era conhecer uma parte pouco visível de nossa linda cidade, buscando dialogar com jovens de movimentos sociais urbanos da periferia, realizando trocas de experiências. As lideranças do Movimento queriam que as crianças desmistificassem a idéia de que no morro vivem apenas bandidos, tal como são apresentados os moradores na grande mídia.
Outro desejo era conhecer a UFSC, pois, assim como as crianças ouvem falar das maravilhosas praias da capital, elas também têm boas notícias de nossa universidade, seja através da televisão ou mesmo pelo contato direto de nossos estudantes e professores, muitos dos quais em atividades de ensino, pesquisa e extensão no interior de acampamentos e assentamentos.
Tendo em vista seus interesses em conhecer a UFSC, a Direção do Movimento fez antecipadamente um pedido para a Reitoria: que o evento, o IV Encontro Estadual dos Sem-Terrinhas, fosse realizado nesta universidade, necessitando-se para tanto providenciar abrigo, alimentação e condições de higiene para todos.
Infelizmente, tais pedidos não puderam ser atendidos e o MST teve que alojar as crianças no norte da Ilha. Nas negociações, a Reitoria alegava que seria mais fácil se o Encontro fosse realizado no final de semana. No entanto, o Movimento não queria apenas conhecer as estruturas da UFSC, mas sim a vida da instituição, permitindo-se o contato direto e interação com seus professores, técnicos e estudantes em seus locais de estudo e trabalho.
Assim, na quarta-feira, dia 15/10, o MST reuniu sua turminha e fez um ato no saguão da Reitoria, agradecendo a boa intenção, mas também questionando sobre o caráter público de uma Universidade que não atende a uma demanda importante do movimento social que tem sido freqüentemente “objeto” de estudo (de fato, tem-se produzido teses, dissertações e TCCs a respeito deles na maioria de nossos Centros).
Após este ato de agradecimento e protesto, duas crianças, acompanhadas por uma jovem liderança do Movimento e por mim, subimos ao Gabinete do Vice-Reitor e lhe entregamos uma cesta com produtos da Reforma Agrária. No diálogo com o Vice-Reitor, este lembrou de seus velhos tempos de extensão universitária, em que ele próprio, com outros colegas da área da Saúde, realizava projetos junto a assentamentos no interior do estado. Por fim, ficou o lamento de não ter atendido a tal solicitação, expondo suas justificativas.
Isto posto, gostaria apenas de tecer algumas considerações sobre o desfecho desse encontro estadual. Em primeiro lugar, compreendo as dificuldades da UFSC para atender a diferentes demandas de movimentos sociais, na medida em que não contamos com alojamento, havendo inclusive poucas vagas na moradia estudantil. Contudo, é preciso vontade política, comunicação com os diferentes segmentos da UFSC e criatividade para buscarmos, de forma compartilhada, soluções alternativas, tais como as que são encontradas pelo próprio MST quando nos recebe para os trabalhos de campo. Pois, nestas situações, ao invés de nossos grupos ocuparem hotéis, o mais freqüente é sermos alojados nas casas dos camponeses ou instalados em galpões, escolas e agroindústrias. Obviamente, nossa presença altera suas rotinas, mas isso também faz parte do aprendizado coletivo.
Assim, fico pensando, por exemplo, na possibilidade de cada Centro ter oferecido ao menos uma sala para alojamento de grupos com até quarenta crianças, ou que os Sem-Terrinhas ocupassem um dos três ginásios do Centro de Desportos, apenas no horário do descanso das crianças, liberando-o para as aulas. Os banheiros e chuveiros poderiam ser aqueles “portáteis” utilizados em atividades com grande público. Enfim, são soluções simples, mas que dependeriam de muita conversa, disposição e trabalho.
E em que pese a UFSC não ter conseguido apoiar formalmente o evento (e os administradores têm meu respeito apesar disso), é preciso valorizar o que foi realizado por mais de cinqüenta pessoas espontaneamente. Pois, somente no que se refere a oficinas, foram oferecidas mais de trinta, envolvendo, por exemplo, capoeira, dança, teatro, fotografia, brinquedoteca e xadrez.
Aliás, após a ocupação do saguão da Reitoria e a conversa com o Vice-Reitor, algumas crianças foram parar literalmente no jogo de xadrez, sendo recebidas da seguinte forma por um acadêmico da Educação Física (Olímpio Pinto de Azevedo Neto):
“Em uma conversa inicial, enquanto faziam um lanche para o início das oficinas, apresentei-me para o grupo (…) de 20 crianças que participava das atividades com alegria e entusiasmo. Depois de explicar os movimentos de cada peça e as regras básicas, junto com a história e algumas curiosidades do jogo, partimos para a prática. Elas assimilaram rapidamente e captaram o espírito (…) Foi um grande prazer interagir com as crianças. Ensinar xadrez é potencializar habilidades e também repassar valores éticos como: responsabilidade, perseverança, auto-controle. Espero que possam seguir praticando o xadrez, uma atividade que trabalha o lúdico e exercita habilidades mentais (…).”
Assim, a passagem do MST pela cidade não foi de toda perdida pela UFSC. Aqueles que tiveram contato direto, ainda que breve, puderam confirmar ou alterar suas visões pré-concebidas a respeito de um movimento social que tem sido tratado, no senso comum e também no âmbito acadêmico, como baderneiro e terrorista.
Ao meu ver, como já afirmei em outras oportunidades, enquanto acadêmicos, não se trata de estabelecer amor ou ódio a esses grupos, mas sim de buscar compreende-los, para ajuda-los na medida do possível a conquistar a superação de seus problemas sociais. Dessa forma, é bem possível que, em meio ao trabalho solidário, especialistas, mestres e doutores nos reconheçamos como pessoas mais sensíveis a outras dimensões de nossas humanidades. Pois, no dizer de Eduardo Galeano, em “Granitos de Arena”:
“Culto não é aquele que acumula mais conhecimentos. Culto é o que melhor aprende a se entender com os demais. Culto é o que melhor aprende a recriar um mundo no qual o próximo seja uma promessa e não uma ameaça, no qual posso reconhecer no outro alguém com quem posso fazer uma comunhão, com quem tenho coisas a compartilhar. Alguém que tem algo a me dizer, que vale a pena escutar.”
Aguardo ansiosamente o próximo Encontro Estadual do Sem-Terrinha aqui na UFSC. Até lá!