As forças conservadoras jamais aceitaram a derrota sofrida em 1988. Desde os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte (ANC) recorrem sempre ao falso argumento de que os gastos são insustentáveis e o “déficit” da seguridade será um tsuname devastador das contas públicas.
Durante a acirrada disputa na ANC destaca-se um ato emblemático do presidente José Sarney. Quando teria início a votação da última fase dos trabalhos da ANC, numa derradeira tentativa de modificar os rumos da ANC, Sarney convocou cadeia nacional de rádio e televisão para “alertar o povo e os constituintes” para “os perigos” que algumas das decisões contidas no texto aprovado no primeiro turno representavam para o futuro do país. A principal tese defendida era de que o país tornar-se-ia “ingovernável”. O inimigo da governabilidade era a seguridade, que causaria uma “explosão brutal de gastos públicos” (Sarney vai à TV criticar o projeto. Gazeta Mercantil. 27/7/1988).
O discurso de Sarney provocou a imediata e memorável defesa da ANC feita pelo deputado Ulysses Guimarães. A Constituição será a “guardiã da governabilidade”, sentenciou. Reportou-se a um conjunto de aspectos “inaugurais” do texto que seria submetido ao crivo da revisão constituinte. Em seguida, concluiu seu discurso fulminando, magistralmente, a tese do “desgoverno”: “Senhores constituintes: a Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida, são ingovernáveis. A injustiça social é a negação do governo e a condenação do governo (…)” (Ulysses Guimarães. “Esta constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo”. Folha de S. Paulo, 28/7/1989).
Após quase 20 anos, não se pode afirmar que a seguridade tenha quebrado o país ou que ela seja a principal vilã do ajuste fiscal e do desgoverno. Por outro lado, ela é, sem dúvidas, um dos principais pilares da governabilidade, como profetizou Ulysses Guimarães. Entre 1988 e 2006, o número de benefícios do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) aumentou de 11 para 25 milhões, entre trabalhadores urbanos (INPS Urbano), trabalhadores rurais (Previdência Rural) e benefícios assistenciais (Loas). Seu formidável efeito distributivo fica mais evidente se contabilizarmos também os seus beneficiários indiretos. Segundo o IBGE, para cada beneficiário direto há 2,5 beneficiários indiretos, membros da família. Dessa forma, a seguridade beneficia, direta e indiretamente, cerca de 87 milhões de pessoas. Quase 70% dos benefícios são equivalentes ao piso de um salário mínimo. Sem ela, a população em situação de pobreza seria 11% maior. Hoje, mais de 80% dos idosos recebem aposentadoria ou pensão. Por conta disso, a taxa de incidência da pobreza nos grupos etários com mais de 65 anos é de apenas 10%. Sem os benefícios, mais de 70% dos idosos estariam abaixo da linha de pobreza.
A despeito desses fatos, a partir de 1990 os mesmos argumentos baseados nas mesmas teses apocalípticas voltaram a ser evocados para justificar novas rodadas de reforma. Foi assim durante o governo Collor enquanto aguardava a revisão constitucional prevista para ocorrer em 1993 – que acabou não ocorrendo por conta do impeachment – para enterrar de vez a seguridade.
O governo FHC teve maior êxito. A Reforma da Previdência realizada em 1998 desmontou parte das conquistas de 1988. Para justificar esse legado, além dos argumentos falaciosos de sempre, seu governo inovou ao difundir a visão do aposentado como portador de “privilégios” inaceitáveis, um verdadeiro “marajá”, que ameaçava a estabilidade. O próprio presidente da República denominou-os de “vagabundos”.
O governo Lula não foi diferente. Em meados de 2005 a área econômica reprisou os mesmos mantras para justificar o programa visando ao “déficit nominal zero”. O ajuste repousava sobre o que restou da seguridade. Raul Veloso, conhecido membro da ortodoxia, foi direto ao ponto: “O superávit primário acabou. (…) A única saída seria cortar despesas constitucionalmente obrigatórias – em bom português previdência, saúde, educação e assistência social” (Folha de S. Paulo, 2/9/2005).
Outro especialista reeditou a tese do país ingovernável, ao recomendar que todos os esforços fossem concentrados “na mãe de todas as reformas, que será a previdenciária, sem a qual o país será inviável” (sic) (Fabio Giambiagi, Valor, 18/10/2005).
Bombardeada pela ministra Dilma Roussef – que considerou o plano uma “simplificação grosseira” – essa proposta voltou ao centro da agenda do candidato derrotado à presidência da República em 2006.
Em janeiro de 2006, o então ministro da Previdência, Nelson Machado, escancarou o que a Constituição da República havia consagrado duas décadas antes. De forma correta, os critérios de apuração do “déficit” foram alterados e ele reduziu-se dos “alarmantes” R$42 bilhões para R$ 4 bilhões. A ortodoxia ficou à beira de um ataque de nervos. Em uníssono, argumentaram tratar-se de “manipulação contábil” que equivale a não enfrentar os problemas de fundo e “varrer a sujeira para debaixo do tapete”.
Na atual conjuntura, não há nada de novo no front conservador. A recente instituição do Fórum Nacional da Previdência Social proporcionou outra enxurrada de revelações apocalípticas. Campos e Pochmann (2007, 65) têm razão quando afirmam que o debate sobre a previdência no Brasil ainda permanece contaminado por idéias “fora de lugar”. Segundo esses autores, algumas das propostas de reforma do sistema previdenciário em discussão “são estritamente focadas no próprio sistema, esquecendo (ou simplesmente desconsiderando) que os problemas aí existentes radicam na verdade fora dele, quer dizer, radicam mais propriamente no mercado de trabalho”.
De fato, no debate em curso tem prevalecido a visão de que a natureza da questão financeira da Previdência Social no Brasil decorre, exclusivamente, de fatores endógenos ao próprio sistema. De forma simplificada, argumenta-se que o desequilíbrio financeiro seria conseqüência do crescimento dos gastos com benefícios, reflexos da suposta “generosidade” do atual plano de benefícios. O ritmo de crescimento das despesas se intensificará no futuro. A transição demográfica seria um componente adicional de expansão dos gastos com aposentadorias e o “déficit” do sistema, hoje crítico, seria insustentável em 2050. A experiência de outros países comprovaria a tese de que os gastos com aposentaria no Brasil estariam muito acima dos padrões internacionais. O suposto excesso dos gastos à luz da experiência internacional reforçaria o argumento de que a Previdência se constituiria no principal obstáculo ao desenvolvimento econômico, dado que não deixa espaço orçamentário para investimentos em infra-estrutura. Nesta perspectiva, a única saída para equacionar o problema seria fazer novas rodadas de reformas, feitas para corrigir as benesses do sistema e para reduzir o patamar de gastos. (Giambiaggi, 2007d+ Tafner, 2007d+ e Caetano Eampd+ Miranda, 2007).
Ao contrário, a natureza da questão do financiamento da Previdência Social é preponderantemente exógena e reflete as opções macroeconômicas adotadas nas últimas décadas, que fragilizaram o mercado de trabalho e estreitaram os mecanismos de financiamento das políticas sociais, em geral, e da Previdência Social, em particular (Fagnani, 2005). Mais precisamente, o cerne da questão do financiamento da Seguridade Social é a redução do patamar de receitas, decorrente do baixo crescimento econômico e seus impactos negativos sobre o mercado de trabalho.
Portanto, uma agenda alternativa mais justa e eficaz deve, necessariamente, mudar o foco das despesas para o das receitas. O crescimento econômico é condição necessária para isso. O início do segundo mandato do presidente Lula teve o mérito de recolocar a questão do crescimento econômico no centro da agenda governamental. Trata-se de fato alvissareiro e bem-vindo que não ocorria há mais de duas décadas. A redução das taxas de juros – que ainda permanecem elevadas – foi um dos fatores centrais para o início da retomada do crescimento.
A doutrina e a ideologia de que o país não poderia crescer mais de 3,5% ao ano, tantas vezes represadas, estão sendo negadas pela realidade. O PIB cresceu 5,4% em 2007. Foram criados mais de 1,8 milhões de empregos formais. Em setembro foram criados mais de 251 mil empregos com carteira assinada, o melhor resultado desde 1992. O desemprego estrutural caiu para 14,25% em dezembro de 2007, o melhor resultado desde 1998. O desemprego médio em 2007 medido pelo IBGE caiu para 9,3%, a menor taxa em cinco anos. A arrecadação tributária até setembro aumentou 11% em relação a 2006. O governo arrecadou até outubro de 2007 mais de R$ 36 bilhões acima do previsto. A dívida líquida do setor público caiu para 43% do PIB, o menor valor desde 1999. O crescimento do investimento no País acumulado entre 2006 e 2007 é de 18%. O investimento deve crescer 20% nos próximos 5 anos, estima o BNDES. No final de 2007, 85% da indústria produzia acima da média dos últimos dois anos. O consumo de máquinas cresceu 29% no 3º trimestre de 2007. A rentabilidade da indústria voltou a subir após dois anos. O consumo avançou 5,9% no primeiro semestre, a maior taxa desde 1997.
Em agosto, as contratações de empregados com carteira assinada ajudaram a previdência social a apresentar pela primeira vez desde meados de 1990 uma redução de 20% no alegado “déficit” em suas contas em relação a agosto de 2006. No final de 2007, o secretário de Previdência Social do MPS, Helmut Schwarzer, coordenador do Fórum Nacional da Previdência Social, admitiu a melhoria das contas da previdência, ante os fatos positivos decorrentes do crescimento econômico. Segundo Schwarzer, o alegado “déficit” do INSS está caindo e pode fechar menor do que em 2006. Pela primeira vez desde 1995, o déficit da Previdência Social acumulado no ano (janeiro a outubro) apresentou queda na comparação com igual período do ano anterior. E prossegue Schwarzer: “Essa queda é sinal do momento excepcional favorável da previdência. A arrecadação cresceu fortemente e o gasto com benefícios está praticamente estável”, avalia o secretário de Previdência Social do MPS. A redução já pode ser considerada como uma nova tendência das contas do regime geral de aposentadorias (Déficit na previdência cai pela primeira vez desde 95, Folha de S.Paulo, 23/11/2007).
Assim, após opções macroeconômicas inspiradas na cartilha neoliberal, esses sinais de reversão da tendência de estagnação contradizem frontalmente as profecias pessimistas de que a economia não poderia crescer mais de 3,5% ao ano porque geraria inflaçãod+ de que sem a Reforma da Previdência o País não cresceriad+ de que sem a reforma da Previdência o País não investiriad+ de que sem a reforma da Previdência, “a mãe da todas as reformas, o pais se tornará ingovernável”, dentre tantos outros dogmas falaciosos difundidos como cortina de fumaça, por trás da qual se escondem os objetivos de capturar esses recursos da Seguridade para a gestão financeira da dívida. A continuidade desse ciclo de crescimento por mais alguns anos colocará por terra muitas das teses catastróficas difundidas há mais de vinte anos pela ortodoxia econômica. Sem crescimento não há saídas civilizadas para a Previdência Social – nem para o país.