Somos um grupo de profissionais da UFSC (docentes e STA) que vem desenvolvendo trabalhos de ensino, pesquisa e extensão acerca das questões que envolvem políticas e práticas de inclusão educacional. Atuamos no CED e no CFH e conhecemos de perto a trajetória escolar do estudante Thiago Evangelista. Em vista de tais condições, o texto “Paralisia Cerebral”, de autoria da professora Cristina Scheibe Wolff e publicado no Boletim da Apufsc número 636 (12 de maio de 2008), provocou nosso interesse em dar continuidade ao debate, apresentando outros argumentos que merecem ser levados em consideração.
Nesse artigo, a professora discute os encaminhamentos dados pelo colegiado do curso de Agronomia, a respeito da solicitação do estudante Thiago de continuar freqüentando as disciplinas do curso através de matrícula de disciplina isolada. Para nossas reflexões, vamos trazer alguns dados e argumentos, visando a contribuir para o debate levantado pela professora naquele veículo de informação.
Os dados do Ministério da Educação demonstram um significativo incremento no ingresso de alunos com deficiência na Educação Superior nos últimos anos. Em 2005, no último levantamento realizado por esse Ministério, tínhamos cerca de 12 mil alunos com deficiência nas universidades, em sua maioria pessoas com deficiência física, visual e auditiva, diferente do ensino fundamental, no qual a deficiência intelectual é o diagnóstico mais freqüente. Nesse bojo, um dado chama atenção: a maior parte destes alunos concentra-se nas universidades privadas, nas quais o ingresso se dá por formas mais diversificadas do que nas instituições públicas, muitas vezes prescindindo de exames vestibulares, uma vez que a concorrência pelas vagas é menor ou inexistente.
Cruzando tais dados com outros do IBGE que caracterizam a população com deficiência no Brasil, verificamos que apenas uma parcela mínima de pessoas com deficiência chega até o ensino superior. Essa conquista ainda se deve muito ao esforço e investimento de suas famílias e pelas lutas pessoais de cada uma delas, embora também não se possa negar que alguns avanços foram propostos em termos de políticas e legislações voltadas à garantia do acesso e participação desse grupo social no sistema educacional. O fato é que, no contexto atual, a presença de uma pessoa com deficiência na Educação Superior se dá após uma trajetória exaustiva de superação de um conjunto enorme de barreiras, preconceitos e práticas de exclusão ainda existentes nos diferentes níveis do ensino.
Pois bem! Concluído o ensino médio, como qualquer jovem em sua idade e condição social, Thiago, personagem do texto da professora Cristina, cuja trajetória é exemplar do que vivem pessoas com deficiência no processo de escolarização, resolve fazer vestibular para o Curso de Agronomia, já sabendo que enfrentaria sérias dificuldades para competir em condições de igualdade com seus colegas de concurso. Sua participação em diferentes vestibulares da UFSC evidenciou, por outro lado, impasses no esforço ainda insuficiente do sistema de ingresso da instituição em atender às condições de tempo e de apoio técnico para que um candidato com dificuldade de coordenação de movimentos voluntários, como é o caso dele, precisaria para responder adequadamente às questões das provas. A necessidade de maior tempo e os limites humanos de energia e disposição para a realização de uma prova tão densa em condições árduas chocaram-se com a pressão social pela rápida divulgação do gabarito, o que resultou em problemas ainda maiores dele em dispor de igualdade na realização das provas.
Cansados de lutar por melhores condições de realização do concurso vestibular, Thiago e sua família resolvem recorrer às vagas para matrículas em disciplinas isoladas no Curso de Agronomia, cursando tantas matérias quanto eram permitidas pelo estatuto da universidade. Cabe aqui ressaltar que mais uma vez sua família precisou atuar para estabelecer algumas condições mínimas para o acesso e a permanência de Thiago no curso, numa prática que poderíamos relacionar com o conhecido projeto “Amigos da Escola” no ensino fundamental. Também é importante relatar que, embora tenha cursado algumas disciplinas, de fato estava freqüentando o curso e desenvolvendo muitas aprendizagens no campo das ciências agrárias. Contudo, em 2007, extrapolou o limite de disciplinas disposto no estatuto da UFSC, o que culmina com a decisão do Colegiado de Curso em não atender a solicitação de continuidade desse recurso.
Entendemos que o artigo da professora explicita questões fundamentais sobre as formas de exclusão em que vivem estudantes com a condição de Thiago, e concordamos quando ela chama a atenção para um problema que, para nós, demonstra a necessidade de uma política mais clara na instituição sobre as condições de acesso e participação de alunos com deficiência na UFSC. Somos também solidários à família dele, compreendendo e apoiando suas lutas, que transcendem à inclusão de seu filho no ensino superior. O que discutimos, entretanto, é que não se trata, na realidade, de uma decisão que tenha privado o referido estudante de participar socialmente com suas formas próprias de interação e comunicação. Aliás, com ou sem um diploma de graduação, Thiago tem muito a contribuir para a sociedade e, ademais, seu universo de possibilidades é ainda maior do que os argumentos da professora Cristina sugerem.
Acreditamos que o foco desse debate deveria recair, em primeiro lugar, na necessidade de continuar aprimorando as condições do sistema vestibular da UFSC para que ele efetivamente permita a alunos com deficiência iguais condições na disputa por uma vaga. Afinal, as barreiras vividas por Thiago na ocasião das provas provavelmente serão vividas por outros em condições semelhantes, o que exige esforços nossos de adequação cada vez mais amplos para garantia de acesso universal às vagas. Por outro lado, deveríamos refletir sobre as políticas de inclusão na Educação Superior, encabeçadas por ações como o “Programa Incluir: igualdade de oportunidade e direito à universidade”, os quais nem sempre contemplam medidas concretas para melhoria do acesso às vagas, concentrando-se mais nas condições de acessibilidade para alunos já matriculados.
Os dados que trouxemos sobre a concentração dos alunos com deficiência nas instituições particulares de ensino superior refletem essas fortes barreiras no acesso às vagas e à necessidade de garantir a acessibilidade e a inclusão desde o sistema de seleção das vagas públicas da Educação Superior. Isso não implica no abandono das ações já em andamento para a melhoria da participação de alunos com deficiência na universidade, nem a necessidade de se rever decisões embasadas no estatuto da universidade, mas na revisão do que consiste o foco de nossas ações diante de situações como a levantada no artigo aqui discutido.
Outros cursos da universidade também vivem o desafio da inclusão e da acessibilidade ao conhecimento por parte de alunos com deficiência. Nestes, diferentes questões são levantadas, a partir da relação entre as diferentes culturas educacionais de cada curso com as diferentes condições e características dos alunos com e sem deficiência. Essa realidade será cada vez mais presente para todos os cursos de graduação e pós-graduação em um futuro breve, bastando acompanhar o significativo aumento da presença das pessoas com deficiência nos diferentes níveis do ensino, cujo registro nos dados do Inep/ MEC apontam que entre 1998 e 2006 houve um aumento de 640% da presença de alunos com deficiência nas escolas comuns de Educação Básica.
Para tanto, precisamos incluir no planejamento institucional medidas que permitam a esses alunos iguais condições de participação, desde o acesso às vagas até a participação e avaliação no decorrer de sua formação profissional. Já há portarias do Ministério da Educação que obrigam determinados recursos e práticas para a inclusão de alunos com deficiência, como a portaria 3.284, de 7 de novembro de 2003. No entanto, dificilmente um mecanismo legal contemplará a complexidade dessa realidade, as demandas de cada caso e as características da instituição. Por isso, precisamos continuar aprimorando as ações em curso e fazer avançar as medidas de acessibilidade e inclusão para alunos com deficiência, de modo que não sejam mais esforços isolados e de caráter privado os que permitem a participação desses alunos na universidade. Assim, desejamos que sua inclusão seja tão pública, gratuita e universal quanto as demais ações desta instituição, para que se reconheça a participação dessas pessoas não mais um “problema” a ser encaminhado em reuniões de colegiado, mas como um acontecimento que faz avançar práticas de ensino, processos de interação e políticas institucionais. Que as ações políticas, institucionais e pedagógicas da UFSC sejam pela participação ampla da população e não pelo cerceamento do acesso ao conhecimento e à formação de nível superior.