Fundações privadas se apóiam na universidade

Na segunda parte da entrevista concedida ao Boletim da Apufsc, o candidato a presidente do Andes-SN, nas eleições de 13 e 14 de maio, Ciro Correia, fala sobre o trabalho realizado durante sua gestão à frente da Adusp (Associação dos Docentes da USP) com relação ao papel e a atuação das fundações de apoio na Universidade de São Paulo. Também avalia a situação no conjunto das universidades por todo o país.  

Como foi o trabalho da Adusp no debate sobre o papel das fundações de apoio na USP?

A Adusp fez um grande levantamento que foi publicado entre 2001 e 2003 nas várias edições do dossiê fundações veiculado na Revista Adusp, que é uma publicação da entidade mas tem um conselho editorial independente, eleito periodicamente, renovável, onde a diretoria da entidade só tem um representante. A gente fez esse levantamento pela Revista Adusp porque nos anos 80 e 90 tentamos por todos os meios obter dados efetivos sobre o caráter dessas instituições privadas, sobre as receitas que elas movimentavam, os contratos que faziam, no sentido de verificar se era verdade o que elas diziam, que ajudavam a universidade pública a cumprir suas funções. A gente desconfiava que não era assim, mas tanto das fundações quanto da reitoria durante mais de 15 anos a gente só recebeu evasivas. No final dos anos 90 tivemos a idéia de propor ao conselho editorial que pautasse um levantamento jornalístico sobre as fundações para a revista. O conselho aprovou e daí a equipe de jornalistas saiu a campo para fazer esse levantamento e a gente viu que a decisão foi acertada. Na época a gente sequer sabia quantas fundações havia na USP. Falava-se em 10, 15, 20. O levantamento indicou 29. Pela primeira vez a reitoria veio a público para dizer que estava errado, não eram 29, eram 31, e hoje são 34 fundações privadas atuando na USP. Como esse pessoal teve a sorte, lá no ano 2000, de quando bateu nas portas do Ministério Público estadual, na curadoria das fundações, de ter lá um procurador substituto que entregou as peças e os relatórios das fundações, a gente conseguiu documentação quase todas as fundações da USP. As que não conseguimos, descobrimos em quais cartórios elas registravam seus documentos e passamos, através de certidões públicas, a pedir cópias. Então pudemos publicar o dossiê só com base em documentação oficial. 

E pública…

E pública. Só que nesse país precário de relação republicana nas diferentes instâncias, passados dois meses, o procurador titular da curadoria das fundações reassumiu o cargo e vedou o acesso à documentação, embora fosse pública e devesse ser de acesso público. Só que era tarde demais e xerocamos quase 80% do material. Com isso, conseguimos demonstrar com clareza – o material está disponível no dossiê fundações no site da Adusp (www.adusp.org.br) – o seguinte: as fundações são entidades privadas. Nunca destinaram, em conjunto, mais do que 2% do orçamento da universidade para a USP. Esses 2%, que são míseros, o que é muito bom, porque mostra que a universidade para fazer a função dela se mantém em São Paulo exclusivamente com recurso público. Esses 2%, na ampla maioria dos casos, as fundações investiram em sua estrutura própria para operar dentro da universidade, fazendo atividade regular na instituição pública como os cursos pagos. Descobrimos que elas movimentam um volume fabuloso de dinheiro, equivalente a 40% do orçamento da USP, que hoje é de R$ 2 bilhões, ou seja, movimentam cerca de R$ 800 milhões. Descobrimos que fundamentalmente o dinheiro que passa por ela vem de parcerias e contratos com órgãos públicos e não privados. Esse dinheiro passa pelas fundações e tem destinação privada, porque daí elas contratam professor que é da USP, empresas privadas geralmente ligadas a esses professores para supostamente executar esses contratos e receber o dinheiro. Então sob a proteção de estar apoiando uma entidade pública respeitada, você canaliza contratos sem licitação, o que é irregular, para fins privados. A gente viu que nos documentos das fundações que elas sabem que não são fundações e sim empresas. Elas se referem a elas mesmas como empresa e que para contornar a exigência legal de que fundação não pode ter lucro,  o que caracteriza a atividade comercial, mercantil, empresarial, elas dão um jeitinho de apresentar em seus balanços aquilo que é lucro como se fosse superávit ou excedente. E qualquer contador sabe que superávit ou excedente é sinônimo de lucro. Elas têm lucro, não deviam ser fundações, não deveriam ter aval para operar nesse sentido. A gente descobriu que, burlando completamente o que é a concepção de fundação, a priori um patrimônio qualquer colocado a serviço de uma causa de interesse público, essas fundações quando se constituíram não tinham patrimônio algum. Você o registro delas nos cartórios e elas tinham lá uma máquina de escrever, um computador velho, uma mesinha. Mais nada. Dois ou três anos depois elas têm prédios, sedes, frota de veículos, infra-estrutura, sala de aulas, até prédio na Avenida Rebouças. Ou seja, na verdade, em  vez de ser um patrimônio colocado a serviço do interesse público, as fundações são um conjunto de interesses particulares que se apropria  de um patrimônio público, que é a universidade, para construir um patrimônio privado. A gente conseguiu fazer um diagnóstico do problema. O Andes também criou um GT Fundações para estender esse tipo de estudo para o país e tem publicado levantamentos sobre o assunto. Ficou cabalmente provado que a forma que as fundações atuam em São Paulo é a mesma forma que atuam aqui em Florianópolis, no Ceará, no Rio de Janeiro, em Brasília, onde vimos o escândalo mais recente, em Santa Maria, em Porto Alegre, enfim, é um problema nacional. E que a revelia da legislação vigente, as autoridades competentes, sejam elas das administrações de cada universidade, sejam os conselhos de reitores das universidades estaduais ou federais, como a Andifes, seja o governo, através do MEC, não tomaram providência alguma porque o poder que as fundações têm em função dos conflitos de interesses que elas geram e do benefício financeiro que dão à grande parte das autoridades universitárias é muito grande. Isso precisa acabar. As medidas anunciadas pelo ministro da Educação por causa dos problemas da fundação da UnB após a renúncia do reitor só agravam o problema. Ele está propondo que os órgãos de administração das fundações passem a ter um terço de professores universitários. Isso é oficializar o que é absolutamente vedado na estrutura republicana de qualquer país moderno, que é a sobreposição de responsabilidades no setor privado em relação a agentes da administração pública. Ao fazer isso como solução, efetivamente vai aumentar o vínculo de administração e de conflito de interesses entre a autoridade universitária e a fundação privada, supostamente de apoio, mas, como vimos, que se apóia na universidade. Isso só vai piorar o quadro. A solução é muito simples e está prevista na legislação. A universidade não credencia nenhum órgão privado e ela faz os contratos e convênios com prazo determinado, com objeto determinado, como define a legislação, com prestação de contas, relatórios, tudo sob controle dos tribunais de contas dos estados e da União. E pronto. Aonde não precisa, não faz. O MEC e as autoridades têm que dotar as universidades de um corpo técnico para gerir contratos e convênios como qualquer universidade do mundo. A gente precisa parar aqui no Brasil de, ao em vez de tentar efetivamente resolver os problemas, e eles estão previstos na legislação, ficar apostando na ignorância das pessoas e no desconhecimento da sociedade para manter parcerias que só visam que algumas pessoas se locupletem delas. 

 

Sempre que o assunto fundações é discutido, aparece, como solução para o financiamento, a autonomia universitária. O que, na avaliação do senhor, impede que se discuta e se concretize essa prerrogativa das universidades e o que o Andes pretende fazer nesse sentido?

A autonomia de gestão administrativo-financeira está prevista na Constituição e não é implementada pelo governo federal. E não é implementada num quadro no qual existem interesses das administrações universitárias e do governo de não implementá-la por dois motivos: o governo sabe que não destina para as universidades os recursos necessários para que elas cumpram adequadamente suas funções, ampliassem seus campi e resolvam a carência de vagas no ensino superior, no qual chegamos ao absurdo de ter hoje 80% das vagas oferecidas por instituições privadas de má qualidade. Uma vez que o governo, politicamente, não investe direito, ele tenta confundir a sociedade, tentando convencê-la de que a educação não é um direito, é uma mercadoria, e incentivando o desenvolvimento de programas de bolsas para universidades privadas que não têm qualidade, e não vão ter porque tratam a educação como mercadoria, visam o lucro e não o processo educacional efetivo. Assim, dá isenção de impostos para essas instituições sem qualidade e o volume das isenções dadas pelo Prouni seria suficiente para dobrar o número de vagas nas instituições federais, que têm qualidade. Por outro lado, para escapar da responsabilidade de dar recursos o governo recorre a esses programas que confundem tanto a opinião pública interna, dentro das universidades, quanto externa. As reitorias como têm interesses políticos e de disputa de espaço junto ao governo, não fazem a denúncia pública de que o MEC não está cumprindo com suas obrigações e com o preceito constitucional. Elas usam a mesma desculpa de não ter financiamento adequado para justificar a presença das fundações privadas de apoio, que lhes oferece caixas não convencionais, para não falar em caixa 2, e assim as reitorias aumentam seu poder de barganha, cooptação e exercício de poder dentro das universidades. Esse tipo de postura que passa pela improbidade administrativa e resvala na delinqüência no meio acadêmico que tem impedido que efetivamente se cumpra o que está na Constituição e, por um lado, as instituições recebam dotações de verbas adequadas e, por outro, as administrações universitárias cobrem do governo infra-estrutura para fazer gestão pública autonomamente. È preciso reverter esse quadro e espero que isso seja possível. Eu fui chefe de um departamento do Instituto de Geociências da USP durante de quatro anos. O Instituto tem vários laboratórios de pesquisa de ponta, alguns deles os únicos na América Latina, com equipamentos instalados que superam os US$ 10 milhões. É absolutamente possível administrar, manter e estabelecer parcerias que não exijam complementação salarial nem interesse pessoal de nenhum docente e manter esses laboratórios adequadamente, é só ter vontade e compromisso com o princípio público de desenvolver a sociedade e não agir na administração por interesse próprio.