Nos primórdios da UFSC era diferente. As pessoas assumiam suas responsabilidades de ofício. Hoje impera a mais despudorada subserviência.
O curso de Engenharia Industrial, hoje em dia Engenharia Mecânica, oferecido pela UFSC, através da antiga Escola de Engenharia Industrial, “cellula mater” do Centro Tecnológico de hoje, corria normalmente.
Mediante convênio com a UFRGS, professores catedráticos, devidamente escolhidos, fundavam as várias Cadeiras (esta era a terminologia de então) e as tocavam com seus auxiliares, recém contratados. Estes, não raro, eram antigos alunos dos Catedráticos,- aqueles que melhor se haviam destacado.
A cada ano repetia-se o processo de contratação de novos auxiliares para as novas cadeiras.
Até que eclodiu a Redentora e o presidente de plantão, Castelo Branco, proibiu a contratação de novos servidores, a qualquer título, para o serviço público federal.
Pronto, estava vedada, por Decreto, a continuação do curso de engenharia industrial, já que ficavam proibidas as contratações de novos auxiliares de ensino.
Sem novos auxiliares, não haveria novo ano letivo.
Era o fim.
Ou seria o fim, não tivéssemos, na época, um Ferreira Lima como Reitor.
Ferreira Lima, como poucos hoje sabem, foi o idealizador, criador e consolidador da Universidade Federal de Santa Catarina.
Naquela época, os grandes jornais brasileiros avaliavam, anualmente, os reitores das universidades federais e Ferreira Lima figurou, mais de uma vez, como o melhor e mais produtivo dentre todos.
Pois este Reitor Magnífico (inverto a ordem, aqui, de propósito, para que Magnífico soe mais como adjetivo e não apenas como título honorífico) não se conformou com o decreto presidencial. Afinal, os alunos tinham prestado vestibular, isto é, tinham feito um concurso público e, ao serem aprovados, haviam adquirido um direito que o Decreto parecia lhes retirar.
Ferreira Lima mandou redigir uma série de considerandos, vazados nos argumentos acima, para concluir que certamente não teria sido intenção do governo seqüestrar o direito adquirido pelos alunos.
Concluía os considerandos contratando todos os auxiliares para as novas cadeiras.
Semanas depois o ministro da educação telefonou. Ferreira lima atendeu e o ministro foi logo perguntando: “Como vai o meu Reitor subversivo?”
“Vou bem, obrigado e Vossa Excelência?”
“Pois é, Reitor, levei ao Presidente seus considerandos e a sua Portaria, contratando os auxiliares, em franca desobediência ao Decreto presidencial”.
“Muito bem, Ministro, e daí?”
“Bom, Reitor, o Presidente leu as peças com muita atenção, sorriu e exclamou: É de homens assim que este País precisa”.
O curso de engenharia teve seqüência sem mais sobressaltos.
Ontem era assim, mesmo em plena ditadura.
Conto esta breve passagem relativa ao “Homo Faber”, João Davi Ferreira Lima, como uma expressão de saudade da época em que homem se escrevia com agá maiúsculo e significava pessoa com elevado ideal de servir, com discernimento e coragem na defesa do ideal, do interesse público, mesmo que no outro lado estivesse alguém com poderes discricionários para demitir, prender, aniquilar ou até fazer desaparecer.
Ferreira Lima foi um desses gigantes morais, rico em sonhos e ideais, mas também um homem extremamente cordato, simples, afetuoso.
Conto também este episódio,um entre tantos outros, para mostrar como esteve certa a Câmara dos Vereadores de Florianópolis, ao instituir a Medalha João Davi Ferreira Lima, a ser outorgada a pessoas com considerável folha de serviços prestados ao ensino superior em Santa Catarina.
Numa época em que a autofagia de valores é a pedra de toque das administrações acadêmicas, esta decisão da Câmara caminha num salutar caminho contrário.
Mas, conto ainda esta breve história para mostrar como regredimos em valores, coragem e brio. Essas virtudes, hoje, parecem até objeto de chacota e quem as proclama e cultiva, o faz com certo constrangimento.
Hoje somos, a maioria dos professores, detentores de uma decisão judicial, transitada em julgado, que nos concede uma reposição salarial, conseqüência do famigerado plano Bresser.
Falo da conhecida URP.
Pois a AGU arvorou-se em interprete da ação transitada em julgado, (como se tivesse esta competência constitucional), em que a Juíza manda, com letras maiúsculas, incorporar aquela correção salarial na folha de pagamentos.
Sem sentença judicial em contrário à anterior, determina a AGU, num rompante de autoridade que a constituição não lhe confere, o cancelamento do pagamento da URP.
Ora, até a pedras sabem que só uma outra sentença judicial poderia determinar a supressão do pagamento. Só a Justiça poderia determinar, em casos especialíssimos, a revogação de uma decisão transitada em julgado.
Mas isto jamais foi feito! Não existe tal sentença! O que existe é apenas uma interpretação torta da AGU.
Ora, a AGU pode interpretar o que bem quiser. Se achar algo que presuma ilegal, que acione a UFSC, requerendo à Justiça a suspensão da suposta ilegalidade.
Mas não pode, ela mesma, se arvorar em interprete das decisões judiciais e emitir ordens e determinações administrativas a uma universidade, com base no seu único juízo.
Decisão judicial, transitada em julgado, não se discute: CUMPRE-SE.
Este “não se discute” vale para pessoas físicas e jurídicas, entre estas a AGU.
Além do mais, a AGU não é órgão administrativo superior à reitoria para estar determinando ao Reitor que faça isto ou aquilo.
E o que faz, hoje, a administração universitária?
Encara e enquadra a AGU e cumpre seu dever de ofício, pagando a URP, como manda a sentença transitada em julgado?
Inspira-se no exemplo de discernimento e coragem de Ferreira Lima?
Não, muito pelo contrário!
Aceita o cabresto, verga a coluna dorsal de borracha e faz tudo o que seu mestre mandou…
Isto acontece hoje, quando vige o Estado de Direito.
Ontem, quando imperava a ditadura, tivemos a altivez, o discernimento do que é certo e justo e a coragem de encarar a causa do interesse público.
Hoje observamos o servilismo, o medo, a covardia e o encolhimento subalterno e moral.
Ontem, tínhamos Ferreira Lima!
Hoje,…Bem…Deixa pra lá…